O QUE ARISTÓTELES NÃO DISSE SOBRE O TRÁGICO

Carlinda Fragale Pate Nuñez (UERJ)

 

Para quem a Poética de Aristóteles, fica claro porque é mais econômico estudar a tragédia que a narrativa, se se quer dominar a mekhané do texto mimético.

Umberto Eco, para descrever a obra de ficção e o processo ficcional, faz a opção oposta à de Aristóteles: adota a composição narrativa como paradigma, através da metáfora silvestre – o bosque da ficção: nesse espaço primordial, extra-urbano e desconhecido para o homem da pólis, seja ela antiga ou contemporânea, encontra-se uma abundância de signos, confusão de sinais, pluralidade de abordagens possíveis (os muitos caminhos, sendas, picadas e veredas que constituem o bosque propriamente dito). À variedade de microssistemas que o bosque abriga corresponde o ecossistema narratológico da épica, do romance, da novela.

Aristóteles, que não está interessado no todo, mas na minúcia, no detalhe e na filigrana textual, elege a tragédia, porque ali, ao contrário da multivariedade que se encontra no bosque, tudo é essencial. Analogamente à espécie textual que prioriza (a tragédia), no texto acromático[1] do filósofo, qualquer digressão que se afaste da compreensão dos aspectos formais e funcionais dos gêneros em mira – o trágico e o épico – é rigorosamente eliminado, ao preço de torná-lo elíptico, reticente, enxuto. As remissões ao nuançamento do discurso trágico (que lhe conferem um caráter muitas vezes enigmático, ameaçador, estranho), à plissagem retórica da tragédia (que em suas dobras e reduplicações torna seus sentidos mais sintéticos e coerentes); ao aspecto dinâmico (articulatório com instâncias extraformais e lógicas) que deflagram na tragédia a sua natureza própria – a tragicidade ou o trágico (das Tragik) – são deixadas intencionalmente em aberto, às ilações dos discípulos (e à posteridade filosófica assumida pela geração dos idealistas alemães – Schelling, Hölderlin, Hegel, Scheler, Nietzsche, Solger, Schopenhauer, Vogel, Kierkegaard – este, sendo dinamarquês, escreveu em alemão – e outros).

A questão, por conseguinte, que nos impacienta é: Por que Aristóteles não elegeu o poema lírico, em sua concisão, em seu minimalismo, para desenvolver suas lições sobre poética?

Para essa indagação existe uma resposta com duplo argumento. Primeiramente, porque falta à máquina enxuta do poema, individualista e auto-refernciado, cuja proposição de realidade é estipulada a partir do eu lírico mesmo, esta confrontação de valores e o questionamento das normas que dilatam o homem trágico às dimensões do mundo (situação diferente do “eu-no-mundo” lírico, a Stimmung, diluição da identidade poética na realidade circunstante. Ao contrário, trata-se da manutenção de duas realidades que se colocam em choque, desafiando-se e testando suas identidades e resistências). E mais: na tragédia, o homem é o agente, que se encontra na encruzilhada de uma ação. No poema lírico, atividade e passividade não se diferenciam.

No interior do drama se desenrola uma pesquisa que não tem a ver exatamente com o Direito, mas cuja base é o próprio homem, conflituado num mundo que se tornou legalista, enquanto ele permanece o mesmoimpulsivo, imprevisível, múltiplo. Suas criações são fenomenais, mas ele constitui – ainda assim – a maior de todas as maravilhas (pollà tà deinà..., “dentre todas as maravilhas, a maior é o homem”, esse é o mote de uma das mais impressionantes e magníficas páginas da dramaturgia e da poesia mundiais, introduzida pelo Coro, no primeiro estásimo da Antígona de Sófocles, v. 332).

A tragédia quer saber: Qual é o lugar do homem, no horizonte ambíguo, divino e humano, dilacerado por contradições, onde forças (daímonesoriundos da pólis e da psykhé) estão em perpétuo confronto, a verdade se desloca e está sempre sujeita a aparentar o seu contrário?

Para Walter Nestle (in Vernant e Vidal-Naquet: 1977, 35-64), a tragédia (uma instituição e realidade textual e artística com existência física, empírica e assim tratada por Aristóteles) nasce quando se começa a olhar o mito com olhos de cidadão. Esta abordagem é totalmente diferente da aristotélica, porque leva em conta a dimensão histórica do gênero, o horizonte de expectativa de uma sociedade que transcendeu a si mesma. Esta segunda abordagem desborda para o trágico (uma essência / natureza / identidade, para a qual o acroama aristotélico aponta, mas não explicita, pois depende de todo o sistemanatural, físico, metafísico, político – anteriormente descrito, na primeira tópica, esotérica, da grande obra). Aristóteles não tinha a intenção de fazê-lo. Queria manter-se restrito aos elementos da tékhne poemática e ao comentário da autonomia de alguns procedimentos estéticos (assim se explica a valorização excepcional das noções de necessidade, de caráter sistêmico do poema e de constructo a que a obra-de-arte se reduz[2]).

Quando tratou da personagem trágica, Aristóteles mencionou sua natureza problemática. Mas não disse em que consistia seu problema: essa superposição de ser cívico e ser psicológico, simultâneos, dialetizando-se, no homem do século V.

Jean-Pierre Vernant se incumbirá de fazê-lo, melhor e de forma mais clara que muitos outros que certamente lhe forneceram subsídios: “A grande arte trágica consistirá em tornar simultâneo o que é sucessivo” (op. cit.).

A ação trágica, mais intensamente, como um experimento que condensa, concentra e exponencializa os expedientes estéticos da arte, se desenrola em dois patamares – responsáveis pelas peripécias do drama, mas são inseparáveis na tragédia: de um lado, o éthos (caráter, formado na pólishedonista / xenófoba / intelectualista / higiênica / atlética – e nos valores da democracia – a isagoria e a isonomia, fundamentalmente); de outro, o daímon (índole, material arcaico, de proveniência filogenética, criativo e violento[3]).

Dois seres num , como Heráclito anunciara através do aforismo por todos conhecido: éthos anthrópo daímon, “O caráter é o. demônio no homem.” Mas também “O demônio, no homem, é o caráter.” Não se trata apenas de constatar a ambigüidade, mas de adotar a lógica ambíguanão renunciar a nenhuma das leituras.

Na tragédia nunca se chega a uma solução que resolva os conflitos.

O agón que a peculiariza e que ela instaura, de um lado é uma situação de conflito permanente, desde o início até o fim; de outro, nãoresposta possível (postula o inexorável). Não por outra razão, na língua trágica, encontram-se tantos dissoì lógoi, os mal-afamados discursos duplos nos quais os sofistas se tornaram exímios. Os processos do discurso birrefringente, ambíguo, dialético, opera e sedimenta os procedimentos estilísticos do gênero, cujos carros-chefes são: 1 - a sobrecodificação do discurso (a um só tempo poético, mítico, político, jurídico, religioso, administrativo, psicanalítico, antropológico, clínico, zoológico, astrológico...), 2 – a construção dialética do discurso já no seu interior.

O trágico, ou seja, o que é essencial na tragédia e lhe confere sua natureza própria, é transportado pelo drama, na cena que se desenrola simultaneamente ao nível da vida cotidiana, do tempo humano e sucessivo, e além da vida, no tempo divino e dinâmico dos três tempos (passado, presente e futuro), através de acontecimentos que se ocultam tanto quanto se revelam.

Ainda assim, levando em conta tudo o que se disse, é imperioso frisar que a tragédia é filosófica, mas não é, nem quer ser, filosofia. Para constituir-se, sustenta a dúvida, o estado problemático.

A filosofia, por seu turno, capitaliza a dúvida como tema, porque quer entendê-la, sem arruinar com sua densidade problemática. Para diferenciá-las, alguns conceitos filosóficos são bastante úteis: é no confronto / jogo entre alétheia (verdade) e apáte (engano) que os domínios da poesia e da filosofia podem ser, ao menos teoricamente, diferenciados:

alétheia (verdade)

apáte (engano)

Tomadas antitéticas e complementarmente

Capitalizada pelas seitas filosófico-religiosas.

Como conceito, mantém continuidade, mas também ruptura entre pensamento religioso e filosófico

Domínio da Sofística, da Retórica e da Poética

Tragédia: seculariza a palavra, institucionaliza a tensão.

No horizonte da tragédia, os planos de interesses rivais se tornam transparentes, e se opõem nitidamente, embora pareçam inseparáveis.

Quando a tragédia explora as ações humanas em confronto com as potências divinas, quer exatamente testar as fronteiras entre os domínios de alétheia e apáte, forçar os limites e as resistências desses termos tão extremados quanto desafiadores. O que a tragédia, afinal, quer provar é que os níveis humano e divino são opostos e complementares: dois pólos de uma mesma realidade ambígua.

Atos humanos articulados com potências divinas assumem sentidos integrados numa ordem que ultrapassa o homem e a ele escapa.

Na famosa “cena do tapete” do Agamemnon de Ésquilo, os atos humanos de montar uma amardilha mortífera (por parte de Clitemnestra) e de a ela não se poder furtas (por parte de Agamemnon) se acoplam com um ritual religioso que a dramatização evoca (a bouphónia[4]). A um só tempo o espectador acompanha a encenação de um texto dramático organizado através de dissoì lógoi (discursos duplos), finamente retóricos e poéticos, e evoca as emoções do rito sacrificial muito conhecido e anualmente praticado em Atenas, em que um boi é atraído a uma altar repleto de iguarias (homólgo ao tapete vermelho que Clitemnestra oferece ao marido); delas se serve (Agamemnon caminha sobre a trilha purpúrea) e é imediatamente sacrificado pelo sacerdote, que manipula um machado (como a rainha micênica o faz). Agamemnon, no centro nervoso do discurso dramático, atua como a vítima a caminho do sacrifício, não como um rei que chega para ser glorificado: as poucas falas que o texto lhe reserva potencializam seu valor patético quando, não como o maior dos generais que foram a Tróia, mas como alguém que aceita seu destino, emudece, serem descalça suas sandálias e aceita o caminho indicado por quem, ali, comanda o espetáculo – Clitemnestra.

Outro exemplo dessa construção em duplo patamar do texto trágico se encontra nas Eumênides, também de Ésquilo – Orestes é absolvido, mas não inocentado. Encontra-se aí uma espécie de equilíbrio que é mantido entre a antiga díke das Erínias e o sistema dos deuses novos; as virtudes do Areópago, peithó (persuasão) e philía (amizade, garantia de tolerância no démos) são desfiadas pela timé (honradez) erínica, temor e coerção, terror (tò deinón) útil ao projeto civilizatório dos atenienses. O discurso das Erínias, na peça, é pontual e insofismável: o medo age por si, contra toda anarquia e despotismo. O que se obtém, como solução intelectual a que Atená conduz o tribunal, é o acordo entre poderes contrários, que devem equilibrar-se, sem se destruir. A resultante trágica, plasmada no e pelo discurso, é a “augusta Erínia” (Semnaì Erinýes), espalhando respeito, temor e terror, na mais moderna instituição da Atenas democrática, o Areópago, tribunal maior que a Ekklesía, a Boulé, a Gerousía...

Associando as Erínias-Eumênides à função do Areópago, a peça de Ésquilo reforça a tradição religiosa: do monte judiciário partem os animais sacrificiais (phármaka) que serão imolados pelo bem da pólis. E o poema registra, na estrutura mesma da tragédia com happy-end, a sua natureza contraditória, antitética, dialética.

Para concluir, Aristóteles foi preciso, ao opor esquematicamente poesia e história (cap. 9 da Poética), mas está claro que a história não se opõe à poesia. No caso da tragédia, a história é uma vertente internalizada, que possibilita a irrupção do trágico. Se essa dinâmica histórica não se efetiva, o que ocorre é a mera repetição de uma tragédia do passado, em palcos do futuro. O trágico só se organiza (e só se pode reatualizar) graças à vertente histórica que o atravessa, ou seja, em decorrência da dialética histórica que o constitui..

Sobre isso – o que torna a tragédia um experimento (empireía) trágico – Aristóteles nada disse.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Poética. Trad., pref., introd., coment. e apêndices Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1992.

BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Rio de Janeiro: M.A.F.C., 1978.

FOUCAULT, Michel. A Verdade e as formas jurídicas. Cadernos da PUC, n° 16. Rio de Janeiro: PUC, 1974.

LESKY, Albin. A Tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1970.

NUÑEZ, Carlinda F. Pate. Electra ou uma constelação de sentidos. Goiânia: Ed. Da Universidade Católica de Goiás, 2000.

PAVIS, Patrice. Dictionnaire du théâtre. Paris: Dunod, 1996.

RORTY, Amélie Oksenberg (ed.). Essays on Aristotles’s Poetics. Oxford: Princeton University Press, 1992.

SELIGMANN-SILVA, M.. Arte, dor e kátharsis, ou variações sobre a arte de pintar o grito. In: Keil, Ivete; Tiburi, Márcia (org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004. p. 61-80.

SEGAL, Charles. Sophocles’ tragic world: divinity, nature, society. Cambridge: Harvard Universty Press, 1998.

SÓFOCLES. Antigone. Trad. Paul Mazon. Introd., notes, posface Nicole Loraux. Paris: Belles Lettres, 1997.

SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

VERNANT, Jean-Pierre e VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. Trad. Ana Lia A. de Almeida prado, Filomena Hirata, Mª. da Conceição Cavalcante. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

WARTELLE, André. Léxique de la “Poétique” d’Aristotle. Paris: Belles Lettres, 1985.


 


 

[1] De “acroama”, discurso articulado, aberto à harmonização com outras vozes, pode referir-se também a preleções perante discípulos. Na classificação da obra aristotélica, o termo se refere a textos da maturidade, de construção sintética, menos conceituais que os textos esotéricos (da juventude). A parte acromática ou apodíctica do Corpus aristotelicum se constitui de obras que desdenham questões políticas; dedicam-se à descrição de sinais (sêmeia) e testemunhos (tekméria). A Poética é um típico texto acroamático, porque supõe a complementação oral de suas elipses, alusões e exemplificações. Lamentavelmente o Filósofo deixou perdidas no tempo suas explanações, talvez a mais elucidativas, sobre a mímesis e a hýbris...

[2] Atenção: essa redução não significa diminuição ou inferioridade. Ao contrário: é na redução que sua especificidade e identidade assomam.

[3] Pode-se dizer que o daímon é uma força pré-lógica, pré-categorial, arcaica e, nesse sentido, primitiva, porque anterior à era das regulamentações.e da pólis legalista da qual Atenas se tornou o maior emblema.

[4] Para maiores detalhes, cf. NUÑEZ, 2000: 57-70.

 

 

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