Traduzindo a língua e o estilo
do
De Vulgari Eloquentia

Cosimo Bartolini Salimbeni Vivai (USP)

Idealizado e composto nos primeiros anos do exílio (1303-4), o De Vulgari Eloquentia é contemporâneo ou pouco anterior ao primeiro livro do Convivio, obra na qual, sob outro ponto de vista, mas com evidente analogia de conceitos, aborda o mesmo problema da língua e da arte em vulgar. É intenção de Dante ensinar a teoria da eloqüência vulgar, ou seja, da arte de dizer em língua vulgar: dirigindo-se aos eruditos, aos letrados do seu tempo, ele escreve na língua para eles usual e por eles tradicionalmente considerada de longe superior, isto é, em latim.

A finalidade didática na qual se inspira coloca a obra no âmbito da retórica tradicional: era endereçada especialmente aos rimadores dotados de cultura e de engenho a fim de que, nas suas composições, não procedessem casualiter, levados somente pela onda da inspiração, mas dominassem regulariter, com arte, a matéria. Concebida como síntese e somatória de todas as experiências lingüísticas e estilísticas através das quais passara sua arte, o tratado de Dante devia demonstrar aos especialistas as razões e os meios que pautavam o recente sucesso literário do vulgar (e então do próprio poeta) e que podiam levar a língua materna a resultados não distantes, e talvez até superiores, daqueles tradicionalmente conseguidos pelos auctores latinos.

O tratado deveria constar de pelo menos quatro livros, mas se interrompe repentinamente na metade do capítulo XIV do segundo livro.

O primeiro livro trata da origem da linguagem humana, da sua fragmentação em diversas línguas das quais os vulgares atuais seriam a direta descendência. Esclarecido o conceito de linguagem, na sua universalidade de natureza, e o de língua literária ou “gramática” (como o latim), nascida da necessidade de uma língua inalterável através dos tempos e lugares, Dante passa a comparar as três línguas literárias (francês, provençal e italiano) oriundas de uma origem comum na Europa meridional, reconhecendo uma certa superioridade à última. Analisando os vulgares itálicos, que ele agrupa em 14 idiomas principais, chega à conclusão de que nenhum deles, nem o toscano, merece o título de língua excelente: língua que deve ter quatro atributos fundamentais, ou seja, ser ilustre, cardinal, áulica e curial.

O segundo livro é uma indagação mais particular e analítica do que se torna necessário para que uma língua possua tais requisitos: quem possa utilizar o vulgar ilustre, como o estilo deva adequar-se à matéria de que trata, como a canção seja a expressão poética na qual esta língua mais perfeitamente se realiza.

Considerado obra menor, pouco difundido, utilizado por séculos (devido à grande autoridade do poeta) mais como fonte de polêmica na “questão da língua” do que como objeto de pesquisa científica, o tratado foi reavaliado no seu valor e nas suas reais características, relativamente a uma exata compreensão e apreciação das doutrinas de Dante, a partir dos últimos decênios do século XIX. Além da sua importância para colher no seu conjunto a personalidade artística do poeta, à obra é conferida uma particular relevância pelos modernos historiadores da lingüística: relatamos alguns dos muitos pareceres, que por si mesmos justificam não só a simples leitura, como também estudos aprofundados.

O DVE seria a primeira obra, no Ocidente, que pode ser considerada, com todo direito, a precursora da lingüística moderna: particularmente importante de um ponto de vista geral, porque apresenta pela primeira vez o conceito do desenvolvimento histórico da língua (Tagliavini, 1963: 35).

A novidade introduzida por Dante consiste no fato de que o conceito do variar das línguas não é mais um conceito abstrato, como nos tratados escolásticos, mas torna-se concreto, sólido, histórico (Nardi, 1990: 190).

Dante foi o primeiro a oferecer um quadro lingüístico suficientemente completo e preciso de uma vasta região geográfica da Itália do seu tempo: a descrição que ele faz é um elemento novo, a sua é a primeira classificação dos dialetos italianos (D’Ovidio, 1876: 67; Schiaffini, 1959: 121)). Usamos anacronisticamente a definição de “dialetos”, uma vez que no século XIV, como se sabe, na Itália faltava uma língua comum (Baranski, 1996: 46).

É o primeiro, com método comparativo, a explicar com particularidades a origem comum das línguas neolatinas por ele desconhecidas: na opinião de Francesco D’Ovidio, seria um dos precursores da moderna glotologia e da moderna filologia românica (Marigo, 1948: XC - XCII).

Devido ao interesse que possui no âmbito dos estudos das línguas, especialmente neolatinas, consideramos importante possibilitar o acesso à leitura do tratado dantesco a um público de língua portuguesa: para esta finalidade está disponível uma única edição do DVE na tradução de Pe. Vicente Pedroso (Editora das Américas, 1958), que no entanto, à primeira vista, peca por apresentar contínuas incorreções e autênticos erros de tradução. Para uma correta interpretação, tratando-se de um tratado teórico e doutrinal, é necessário que o texto corresponda o mais exatamente possível não só ao original latino, mas também ao pensamento e à intenção do autor.

O latim no qual é escrito o tratado não é o latim clássico, mas a língua que a tradição douta da idade média e a Igreja transmitiam. A cultura de Dante apóia-se sobre a auctoritas dos escritores antigos, mas para um espírito medieval e cristão come o seu não pode faltar também a influência das Escrituras com toda a sua tradição filosófica e teológica. Ante os tratados quais a Ars Poetica de Horácio, as obras de Cícero, de Quintiliano, a Rhetorica ad Herennium, o seu latim se ressente dos ensinamentos das retóricas medievais por ele conhecidas, resultando numa língua de características peculiares: é claro portanto que a tradução perde o seu sentido se não se procurar dar o significado mais apropriado às expressões e palavras “técnicas” dessa língua; e, uma vez encontrado o seu correspondente no nosso idioma, será preciso verificar a sua coerência dentro do pensamento dantesco.

Damos a seguir alguns exemplos desse - às vezes trabalhoso - processo de tradução, extraídos dos capítulos iniciais da obra.

Começamos pelo título, o qual não deriva de uma precisa indicação do autor, mas da referência que faz à obra em Convivio I, V: “Di questo si parlerà più compiutamente in um libello ch’io intendo fare, Dio concedente, di Volgare Eloquenza”, a qual retoma como declaração programática em DVE I, xix, 2: “intentio nostra ... est doctrina de vulgari eloquentia tradere”.

A respeito do termo vulgaris, é claro o sentido etimológico; deixando a tradução literal não se corre o risco, mesmo que se trate de um leitor relativamente leigo, de uma interpretação na moderna acepção pejorativa. O termo será utilizado normalmente na obra como “língua vulgar”: nota-se porém que o adjetivo, utilizado no início do capítulo para qualificar outra palavra (vulgarium gentium) poderá ser traduzido não por “vulgar”, mas sim , conforme o Convívio I, IX, 5, “volgari e non litterati”, por “gente comum”.

Na Antigüidade e na Idade Média distinguiam-se (e assim o próprio Dante pouco adiante contrapõe os dois termos) a eloquentia, ou expressão artística, da locutio, ou língua: como à primeira correspondia a arte da retórica, à segunda correspondia a arte da gramática. Conforme a tradição da retórica grega e da Rhetorica ad Herennium que colocava no mesmo plano, em relação à doutrina da elocutio, prosadores e poetas, eloquentia abarcava na Idade Média não somente a prosa ornamentada da Ars dictamini, mas também a poesia: trata-se então da língua dirigida pela arte, da “arte de dizer”. Deve assim ser desconsiderada a interpretação que, influenciada talvez pela preponderância do conteúdo do primeiro livro introdutório (que efetivamente trata de língua) sobre o restante inacabado da obra, traduz eloquentia por “língua”, como faz a edição que citamos acima. Acompanhando o pensamento de Dante e o plano por ele estabelecido, no decorrer da nossa tradução manteremos o termo “eloqüência”, que melhor se aproxima do original, a não ser quando for mais conveniente traduzi-lo por “arte de dizer”. Quanto ao título, a fim de evitar inúteis paráfrases (“A arte de dizer em língua vulgar”), seguiremos a tendência encontrada na maioria das edições estrangeiras, deixando-o na sua versão original latina.

Discretionem”: etimologicamente “discretio”, deriva de “cernere”, que significava “escolher”, “passar no crivo” e depois mais genericamente “distinguir”, “discernir”: o substantivo “discretio” e o adjetivo “discretus” são termos técnicos na linguagem da retórica medieval, aplicados à estética e à arte de imagens, e conceitos extraídos da moral. Para Dante a “discretio” é a capacidade de compreensão, o uso sapiente dos meios de expressão: ele pretende fornecer as cognições técnicas necessárias àqueles que desejam expressar-se eloqüentemente em vulgar de modo a fazer uso delas com discrição. Na tradução não utilizaremos o termo “discrição”, a fim de evitar a conotação usual de “discreto”, “modesto”, “parcimonioso”, e o substituiremos por “discernimento”.

Gramaticam”: aqui “gramatica” tem o sentido de “língua literária regrada” e será traduzido simplesmente como “gramática”. Nota-se porém que a teoria de Dante contrapõe o vulgar, língua natural e variável, ao latim, artificial e estável, a língua regulada por excelência: assim o termo “gramatica” será freqüentemente utilizado no sentido específico de “latim”.

Com esses poucos exemplos esperamos ter explicitado a metodologia que entendemos seguir para a tradução da língua do DVE. As palavras e expressões que tenham um valor relevante para a compreensão do texto serão analisadas nos seus aspectos etimológicos e históricos, com base na tradição do latim clássico e das sucessivas interpretações medievais, a fim de esclarecer sua efetiva significação; procurar-se-á então o seu significado na língua portuguesa moderna, buscando eventualmente sinônimos que permitam evitar ambigüidades. Com base nas opiniões dos críticos modernos, o resultado da tradução será analisado no âmbito do pensamento dantesco, a fim de verificar eventuais incongruências ou contraste com suas teorias.

É supérfluo dizer que uma tradução deve resultar em uma língua e um estilo quanto mais fluidos e agradáveis, de modo que um leitor interessado, mesmo fora do ambiente especializado e acadêmico, possa aproximar-se ao texto de uma maneira fácil e prazerosa. Para conseguir tal resultado seremos obrigados a efetuar algumas intervenções no trabalho, contradizendo ao menos em parte a sistemática acima enunciada. Voltamos ao campo semântico de eloquentia , locutio e dos outros termos que comparecem posteriormente no tratado: elocutio, loquela, lingua, ydioma, primiloquium, todos susceptíveis de uma própria análise crítica e conseqüente diferenciação na hora da tradução. Sendo então freqüentemente próximos quanto ao significado e sendo sua interpretação nem sempre indiscutível, é possível que sejam traduzidos de uma maneira e não de outra, mais apropriada, a fim de produzir os seus efeitos estilísticos e evitar uma versão por demais repetitiva e árida.

A respeito do DVE, Aristide Marigo (1948: 316) comenta que pode-se falar de estilo também em sentido moderno, ou seja, da vida que assume o vigoroso tratamento da matéria, ora polêmico – irônico ou veemente –, ora expositivo, conforme o poeta o sente como apaixonante e atual o problema que lhe assalta o espírito. Por ser escrito em boa parte por impulso conservou o atrativo da espontaneidade, pela qual os artifícios do estilo escolástico e ditatório parecem freqüentemente superados e absorvidos na veste da composição.

Esse estilo que permeia a matéria poderá em parte ser mantido mediante um acurado uso das possibilidades da língua; em compensação, onde o estilo utiliza-se de todos aqueles artifícios do ornamento retórico ensinados nas escolas, seus efeitos tenderão a perder-se, não permitindo a língua moderna o uso excessivo dos mesmos, sob pena de o texto tornar-se demasiadamente pretensioso e artificial. Em particular é estranho à prosa moderna o uso do cursus, ou seja a cláusula rítmica que fecha harmoniosamente os períodos, cujo uso é solicitado, nas pausas mais importantes, pelo tom do trecho em discussão.

Visando deixar mais harmonioso e menos árido o período, procuraremos simplificar a complexa estrutura sintática, favorecendo a parataxe em detrimento da hipotaxe, acompanhando assim as tendências da moderna língua portuguesa.

Não serão traduzidos freqüentemente, por serem desnecessários ao sentido da frase, os advérbios como scilicet (como mais adiante quippe, equidem, etc.), os quais são introduzidos no período por Dante puramente como ornamento retórico, conforme os ditames das escolas.

Esperamos com o nosso trabalho contribuir para a difusão do conhecimento desse pequeno mas fundamental tratado, parto da mente daquele que é unanimemente considerado o pai da língua italiana.

REFERÊNCIAS BibliogrÁFICAS

Baranski Z. G.. Sole nuovo, luce nuova – Saggi sul rinnovamento culturale in Dante. Torino: Gravinese, 1996.

Alighieri, Dante. Obras Completas volume X. São Paulo: Américas, 1958.

––––––. De vulgari eloquentia, Ridotto a miglior lezione, commentato e tradotto da A. Marigo. Firenze: Le Monnier, 1948.

––––––. Opere minori, tomo II, a cura di P.V. Mengaldo, B. Nardi et alii. Milano e Napoli: Ricciardi, 1979.

Devoto, G. Il linguaggio d’Italia – Storia e strutture linguistiche italiane dalla preistoria ai nostri giorni, Milano: Rizzoli, 1995.

D’Ovidio, F. Sul trattato “De Vulgari Eloquentia” di Dante Alighieri. Archivio Glottologico Italiano. Roma, Torino, Firenze: Loescher, 1876.

Mengaldo, P. V. Un contributo all’interpretazione di “De vulgari eloquentia” I i-ix, In: Belfagor XLIV, 1989.

Nardi, B. Dante e la cultura medievale, Bari: Laterza, 1990.

Peirone, L. Il “De Vulgari eloquentia” e la linguistica moderna, Genova: Tilgher, 1975.

Schiaffini, A. Lettura del “De vulgari eloquentia” di Dante, Roma: Edizioni dell’Ateneo, 1958/9.

Tagliavini, C. Storia della lingüística, Bologna, Patròn, 1963.

Tavoni, M. Contributo all’interpretazione di “De vulgari eloquentia” I 1-9, In: Rivista di letteratura italiana, 1987 V, 3.

 

 

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