AS TRÊS MARIAS
O ESPANHOL, A PRAGMÁTICA E A CORTESIA
Maristella Gabardo (UFPR, CELIN e CELEM)

 

O jogo lingüístico que perpassa a nossa linguagem diária, vai um pouco mais além de meras quimeras e jogos entre palavras, está também no que cotidianamente chamamos de conhecimento de mundo. Explico, é a forma como analisamos o que nos cerca, o que sentimos e como nos relacionamos com tudo isso. A forma como jogamos com as palavras e com a construção de nossas frases e intenções é a forma que temos de mostrar e compartilhar com os outros o mundo que temos internamente. É visto que muitos destes mundos ou melhor dizendo, muito do que esses mundos têm não são particularidades de cada ser humano, mas fazem parte de um universo maior e que em sua maioria são dados sócio-culturalmente. (BROWN e LEVINSON, 1987: 10-13)

Quer dizer que somos, então, feitos à imagem e semelhança da sociedade em que vivemos? Não exatamente, mais precisamente, da sociedade em que fomos criados e do imaginário em que fomos inseridos desde pequenos, uma sociedade patriarcal, capitalista, conservadora, católica, machista etc. Esses conceitos, despojados de qualquer preconceito que as últimas gerações possam ter agregado, são o cerne de nossa sociedade. A forma como um budista o mundo seguramente não é a mesma de um crente nordestino. Numa certa ocasião fui a uma danceteria na Argentina.Acostumada com os moldes brasileiros, fui inocentemente pedir uma água ao garçom. Após alguns instantes de estranhamento e a constatação de que era estrangeira, ele me disse que ali não se vendia água e que se eu quisesse podia tomar da pia do banheiro. Ora, isso para os nossos moldes sociais, é, no mínimo, nojento, mas em um país com um dos melhores tratamentos de água do mundo (de acordo com informações deles) isso é normal. Então, tudo o que eu sei está errado? Não, mas o que podemos ter como comportamento esperado é um mero espelhamento da nossa realidade no outro (MOESCHLER, 2004: 49), e não a realidade na qual este está inserido. No entanto, a forma como vemos o mundo vai variar de cultura para cultura e – porque não? – de casa para casa, de família para família, uma vez que cada uma dessas pode vir a constituir um universo cultural à parte. Antigamente, cada ser humano, principalmente as mulheres, imersas nas relações restritas com algumas pessoas do seu grupo, ou seja, a família e os amigos ou amigas mais intimas, que eram normalmente os primos e primas (HINTON, 2000). Hoje em dia, o indivíduo circula entre os diversos grupos lingüístico-culturais aos quais pertence no trabalho, em casa, na escola, no seu fórum de discussão virtual, assim moldando o seu modo de falar a cada um deles inconscientemente. Se vivêssemos isolados, não nos daríamos conta dessas relações quase quenaturais” ao nosso ser, mas quando se têm amigos e se viaja,ou seja, quando se atua socialmente, é que essas relações tomam dimensões perceptíveis a olho nu. Nem sempre o que consideramos educado e verdadeiro o é para o outro, etc. Pior ainda se essas coisas estiverem ditas em uma língua estrangeira. Aqui o jogo consiste em conhecer o “tabuleiro”: a conversação na qual o falante está inserido, com suas regras pragmáticas. Dado que, para que o jogo se inicie, um mínimo de “peças”: regras gramaticais e fonéticas devem ser conhecidas da língua na qual se estão comunicando, no caso aqui o espanhol, e os movimentos ou lances, nos quais o conhecimento pragmático da cortesia é fundamental para que não se cometam deslizes que possam acarretar no fim do jogo.[1]

Se aplicarmos esses conceitos-metáforas em uma sala de aula, esse jogo fica ainda mais claro, uma vez que, além de saber um idioma, para que um aprendiz de LE se considere realmente fluente, o ensino da pragmática se faz necessário (GUTIÉRREZ, 2004: 549) Impressionou-me o relato de um grupo de empresários brasileiros que em negociação com uma empresa venezuelana que não fechou um negócio porque os venezuelanos eram “grossos demais” e ainda diziam que os brasileiros eram muitocheios das coisas”. Percebi, então, que essas questões estão além de ensinar o que dizer, quando dizer e que palavras utilizar, é reflexionar com o aluno no sentido de descobrir o que se transmite ao dizer o que se diz, como se diz, onde se diz e, principalmente, para que e para quem se diz.

Toda comunicação tem um intuito mínimo que não necessariamente é o de comunicar algo (VIDAL; 2004) novo, ou acrescentar algo ao conhecido. Isso não é uma necessidade, ou seja, não há nenhuma informação nova a ser acrescentada, quando em uma conversa no elevador alguém pergunta: Será que chove? Na verdade, em 90% dos casos, pouco importa se realmente vai chover ou não, porque a carta da vez não é o clima, mas a interação social. O para quê das frases do nosso cotidiano é por vezes muito mais importante do que o quê dizemos. A comunicação humana, quando produzida focando um para quê, é fortemente baseada na quebra das Máximas de Grice (1975), como ser relevante e econômico no que se diz.

Voltando ao tema da cortesia e analisando agora um movimento do jogo, tentarei levantar possibilidades de movimentação com relação ao imperativo em espanhol.

“Sujétamelo” me disse uma amiga espanhola. “Como assim?”, me perguntei. “Quem é essa para me ordenar algo assim, sem pelo menos dizer um...’por favor’?”...O choque foi tão grande que, além de não segurar o seu casaco, tive a certeza de que realmente todos os espanhóis eram muito grossos (VIDAL; 2004). De acordo com Moescheler, “misunderstandings are not due to misunderstanding about what is said, but about what is implicated.” (MOESCHLER, 2004)

Agora percebo que fui mais uma vítima dos estereótipos negativos. Quando não se conhece muito bem uma cultura, o mais comum é que alguns traços da mesma (que algum dia foram muito evidentes a uma pessoa ou a um grupo) fiquem “fossilizados” como as principais características desse povo ou grupo social. Num primeiro momento, são essas características aprendidas socialmente que nos guiam a definir as coisas a nosso arredor. O fato de, ao vermos uma pessoa mais velha, nos sentirmos intimidados pelo seuconhecimento”, seja ele qual for, é um estereotipo. Explico-me: nãonada intrínseco a nenhuma pessoa idosa que afirme que esta tenha mais conhecimento que um jovem, mas assim o reconhecemos porque assim nos foi transmitido. De forma semelhante funcionam outros estereótipos: para os representantes de outros povos, todos os brasileiros são mulatos, todos os colombianos traficantes, todos os paraguaios falsificadores, etc... Chega-se às vezes até ao estereótipo-preconceito: todo latino não presta. O próprio conceito de latino que alguns teriam pode em si ser negativo, Vê-se uma charge publicada na revista HISPANIA (1996: 50) em que se tem o típico indígena latino com os seus artesanatos perguntando a um turista se esse também é latino-americano, e esse responde enfaticamente que não, que ele é brasileiro.Deixo esse tema para trabalhos posteriores, voltemos a minha história... Depois de um tempo, vi que essa coisa de mandar em todos era muito comum aos falantes nativos da língua espanhola, fossem eles quem fossem: espanhóis, argentinos, uruguaios, colombianos. Comecei a reparar que esse tipo de atitude, para estes, era normal e inclusive os aproximava entre si, e que a minha forma preferida “¿Podrías sujetármelo?” soava um tanto falso e, digamos, “metido”. Félix-Brasdefer (2005: 76) em seu trabalho sobre as expressões indiretas e sobre a polidez no espanhol do México concluiu que, quando os falantes do espanhol se encontram em situação de igualdade, o comportamento mais esperado é o do uso das formas diretas e mais imperativas, diminuindo assim as distancias e mostrando um comportamento solidário com relação a polidez.

Em sala de aula, o problema é mais delicado, pois, como mostra BaniI (2004), a maioria dos manuais didáticos apresenta o uso do imperativo como algo rude e que deva ser evitado. Quando este não está descrito assim, aparece como uma forma gramatical que serve basicamente para dar instruções ou vem suavizado pela repetição do mesmo verbo no imperativo duas vezesvete, vete que ya es hora”. Neste mesmo trabalho, Bani questiona se o imperativo é mesmo um tempo gramatical descortês por si , como afirmam Mattoso Câmara e Cunha e Cintra. Há outros aspectos a serem levados em conta, como: entonação, relação entre o falante e o ouvinte, entre outros. “El enunciado ha de analizarse siempre calculando la relación entre coste y benefício para el hablante y el interlocuto.” (BANI, 2004: 10). Inclusive, não sendo uma forma descortês por natureza, quando acompanhado de suavizadores como o por favor ou o Si no te importas... “podría convertirse en un ruego” (id., ibid.)

Mas será que se faz mesmo tão relevante este estudo contrastivo do imperativo em português e em espanhol? Blum-Kulka e House (1989: 134) afirmam que existe uma preferência em espanhol para a formação do pedido usando as formas imperativas de 40%, sobre a dos falantes de língua inglesa que preferem essa forma 10%.Conclusão, ou os hispanofalantes são muito rudes, oualgo distinto no frame (HYMES: 1974), ou seja, no esquema mental, que esses têm do imperativo. Para essa analise, há de ter em conta dois fatores de contraste: o fator de distancia /familiaridade e o de status social.

O status é a hierarquia que um falante tem sobre o outro, por exemplo, entre dois colegas de classe pode ser (ou não) igual, enquanto a distancia entre esses e um professor varia de acordo com o grau de intimidade que esse professor permite, pois seu status, por definição é superior. Em uma empresa essas relações são ainda mais claras, entre colegas de um mesmo setor e um superior. a familiaridade é o quanto você conhece uma pessoa, ou ainda o grau de intimidade que o falante e o ouvinte têm. Partirei para a minha analise somente da questão da familiaridade. Imaginemos essas duas situações[2]:

Uma pessoa pára o carro atrás do seu e você, precisando sair, diz: “Tira o teu carroou ainda, “Tira o teu carro?” ditos em português aqui, no Brasil, não provocarão nenhum estranhamento. O uso da ordem imperativa, nesse caso, é muito aceita e – por que não? – aconselhada. Claro que as estratégias utilizadas no primeiro exemplo e no segundo são distintas. No primeiro, temos uma estratégia totalmente bold, ou seja, direta e sem muitos rodeios, uma ordem quase sem possibilidade de recusa, na segunda existe a atenuação da primeira forma com uma pergunta. Uma outra forma de atenuar essa ordem seria o uso do por favor, mais ainda assimTira o teu carro, por favor” continua sendo uma frase de ordem que ameaça a imagem do seu ouvinte. Vejamos uma outra situação. A mãe chega em casa e encontra o quarto do seu filho uma bagunça. Esta então carinhosamente lhe pede: “Você poderia arrumar o teu quarto?” (estratégia de polidez negativa), ou aindaFilhinho, você poderia guardar as tuas coisas...” Aqui vemos o uso de outras estratégias. Aqui o mando não se da de forma enfática, mas em forma de pedido, bem suave. No primeiro exemplo o pedido é feito de uma forma que a negação ao mesmo, se não compreendido o jogo, seria possível. no segundo o pedido é ainda mais suavizado pela expressão filhinho que tenta acariciar a imagem positiva do filho, dizendo-lhe a mamãe gosta tanto de você e por isso você deveria guardar as suas coisas.

Analisemos agora as mesmas situações em espanhol. Na situação do carro as respostas mais esperadas seriam: “Quisiera usted sacar su coche, por favorou ainda “¿Perdón molestarle, pero ¿podría usted sacar su coche?”, aqui se uma diferença no tipo de estratégia que é utilizada no âmbito público. Seguem sendo estratégias de polidez negativa muito suavizadas, como se fossem quase uma suplica em forma de pergunta. a mãe em casa diria a seu filhoarregla tu habitación” ou ainda “guarda tus cosas, por favor”, porque essa é a atitude mais esperada quando a familiaridade entre os falantes é muito alta, ou seja, utilizar essa forma é marcar a informalidade entre ambos.

Assim, o imperativo como forma de pedido se usaria de maneira diferente no espanhol e no português. Em português haveria uma preferência pelo uso do imperativo no âmbito público (para marcar a distância entre os falantes, ou seja, “eu não te dou muitas liberdades e nem te agrado muito porque não te conheço”, enquanto que no espanhol haveria uma tendência ao uso dessa forma no âmbito privado para dar uma impressão de aproximação entre os falantes como visto acima. Para fazer conclusões mais precisas sobre as razões dessas situações opostas, se faz necessário uma analise profunda de corpora ou ainda de experimentos, como aqueles feitos por Blum-Kulka (1989) (roll plays), para uma coleta de dados consistente. A minha suposição é a de que o frame (HYMES, 1974) que permeia a visão sobre o uso do imperativo em português do imperativo é a de uma ordem depreciativa, de “jogo”de status, ou seja, que, ligada a esse imperativo vêm a idéia de superioridade do falante com relação ao ouvinte, de subordinação de um pelo outro. em espanhol o imperativo seria interpretado como um marca de companheirismo entre falante e ouvinte, isto é, como uma estratégia de aproximação entre ambos, marcando assim o aspectosimpático” dessa forma gramatical em espanhol.

Esse trabalho não pretende fechar o tema e muito menos ser um trabalho conclusivo, mas, mesmo assim, aponta para a possibilidade do tratamento pragmático do fenômeno do uso do imperativo a partir da teoria da cortesia lingüística, incluindo aqui o falante e o ouvinte e analisando mais que somente frases. A contribuição disso para o ensino de idiomas está longe de ser efêmero, sendo um dos pilares que deve ser contemplado de agora em diante. Os estudos nessa direção são cada vez mais sólidos, facilitando, assim, o trabalho dos professores de LE em geral que muitas vezes se enfrentavam com didáticas falhas que em nada ajudavam o aluno a desenvolver uma competência comunicativa verdadeira. Sair das frases prontas e analisar o quando, o onde e o para que produzir certos enunciados é o que realmente transforma um aprendiz em um falante comunicativamente proficiente.

 

Referencias Bibliográficas:

BANI, Sara e NEVADO, Almuedena Aproximación a la cortesia verbal em manuales de E/LE. In: Artifara n 4 (Gennaio-Giugno) Sezione Monographica, 2004.

BLUM-KULKA Shoshana, HOUSE, Juliane, KASPER, Gabriele Cross – Cultural Pragmatics: Requests and apologies. New Jersey: Ciblex Publishing, 1989.

BROWN, Penelope LEVINSON, Stephen C. Politeness Some universals in language usage. New York: Cambridge University, 1987.

CAMPOS, Simone Nascimento e DUARTE, Cristina Aparecida. Las Dificuldades Pragmáticas de los Aprendices Brasileños al usar el Imperativo en Español. Disponível na página  www.cambridge.org.br/articles/articles_16.htm

EDSTROM, Anne Expressions of disagreement by Venezuelans in conversation: reconsidering the influence of Culture. In: Journal of Pragmatics 36, 2004 (1499-1518)

ESCANDELL, M. Victoria Vidal. Aportes de la Pragmática IN: Enseñar español como segunda lengua (l2)/ Lengua extranjera (LE). Vademécum para la formación de profesores. Madrid: SGEL, 2004

FÉLIX-BRASDEFER, J. César. Indirectness and Politeness in Mexican Requests. In: Selected Proceedings of the 7th Hispanic Linguistics Symposium. Ed. David Eddington, 66-78. Somerville, MA: Cascadilla Proceedings Project, 2005.

GUTIÉRREZ, Salvador Ordóñez La subcompetencia pragmática IN: Vadécum. Para la formación de profesores Enseñar español como L2 /LE. Dirigido por Sánchez, Jesús Lobato y Santos, Isabel Gargallo. Madrid: SGEL, 2004.

HADLEY, Alice Omaggio. Teaching for Cultural Understanding. In: Teaching language in context. Heile, 1993.

HINTON, Perry R. Sreotypes, Cognition and Culture. SA: Psychology Press, 2000.

HISPANIA, Revista Número 1, Año Uno. Hispania Editora. Mayo/Junio, 1996.

HYDES, D. On communicative Competence, Filadélfia: Universidade de Pensilvânia, 1971.

MOESCHLER, Jacques. Intercultural pragmatics: A cognitive approach. In: Intercultural Pragmatics 1, 2004 (49-70)

 


 


 

[1] Observa-se que o mero fato de eu estar utilizando este tipo de representação é um uso pragmático, uma vez que em outras culturas, provavelmente este artifício dificultaria,mais do que explicaria, o que quero transmitir.

[2] Essas análises serão feitas de acordo com a classificação de Brown e Levinson (1987)

 

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