A realização do plural –ão
na Língua Portuguesa

Ana Paula Fernandes Silva (UERJ)

 

Verificamos muito sucintamente que o espanhol e o português, embora tendo como tronco comum o latim ibérico, apresentam diferenças em todos os seus aspectos, desde os fonético-fonológicos até os lexicais, sem deixar de lado algumas diferenças morfológicas e sintáticas. Não há dúvida de que para uma simples compreensão, principalmente da língua escrita, a semelhança pode ajudar e muito a aprendizagem de aspectos gramaticais. Assim, a comparação entre as línguas nos parece ter um caráter contíguo. Aqui apresento apenas algumas justificativas, como era meu propósito. Embora haja semelhanças muitos maiores, as que aqui venho ressaltar referem-se primordialmente à organização do discurso, às preferências vocabulares etc.

O propósito deste artigo é justamente esclarecer algumas questões morfológicas concernentes à formação do plural de palavras terminadas em ão na língua portuguesa, a partir de um estudo comparativo entre as duas línguas. É óbvio que muitas vezes não será suficiente ater-se apenas ao português ou somente ao espanhol. Em alguns momentos será necessário tomar como parâmetro a língua que originou esses dois idiomas, assim como as línguas neolatinas – o latim.

A priori, falemos um pouco da origem do espanhol e suas principais diferenças com o português:

– Mais que uma simples sucessão de fatos, a origem do espanhol é um relato apaixonante. A história tem início com os povos que habitavam a Espanha antes da chegada dos romanos no ano de 218 a. C., os quais tinham cada um, a sua própria língua. Os romanos também trouxeram a sua língua – o latim – a partir da qual se originaria o castelhano. Mais tarde, a influência árabe marcaria durante séculos a cultura espanhola, em particular a língua espanhola, na qual ainda hoje é possível detectar 4 mil arabismos. Nessa época o castelhano não era mais do que um pequeno dialeto encurralado no norte da Espanha, mas que começaria a expandir-se dando origem ao que hoje conhecemos como o idioma espanhol.

Em língua espanhola foi-nos deixada uma preciosa herança literária por intermédio de personagens como Cervantes, Nebrija, Borges e Lorca entre tantos outros, tendo sido também nas últimas décadas atribuídos vários prêmios Nobel de literatura em língua espanhola, nomeadamente aos espanhóis José Echegaray y Eizaguirre e Camilo José Cela, ao chileno Pablo Neruda, ao colombiano Gabriel García Márquez, e ao mexicano Octavio Paz. Do universo cultural de expressão espanhola, são ainda conhecidos e reconhecidos os realizadores de cinema Buñuel e Almodovar, os pintores Picasso, Goya e Frida Kahlo, os músicos Astor Piazzola, Cameron de La Isla e Buena Vista Social Club.

O foco principal deste trabalho, contudo, é transmitir a riqueza morfológica do idioma, facultando-lhes as ferramentas necessárias à sua correta utilização em qualquer tipo de situação lingüística. Com este fim, é abordado a flexão de nomes terminados em ão, que gera algumas dificuldades, mesmo aos próprios falantes da língua, ao precisar flexionar em número tais vocábulos.

Observe que a língua apresenta uma série de palavras com terminações de ditongos nasais flexionadas em número – –ãos, –ões, –ães, do português (coração, condições, órfão, cidadãos, catalães, irmã, irmãs). Espanhol: corazón; condicións, orfo, cidadáns, cataláns, irmá (ou irmán), irmás (ou irmáns). Este tipo de palavras será tratado de forma bastante especial, mas a intenção é tentar encontrar algum critério para mostrar que há uma norma para se escolher um ou outro plural para cada vocábulo terminado em ão.

Atente para o fato de que na língua portuguesa a palavra “mãe” foi a única que consegui encontrar com esta respectiva terminação, ou seja, seu plural é formado pelo simples acréscimo de um “s’ ao final da palavra, sob a mesma situação geral das demais palavras sem especificidades. Contudo, meu foco de pesquisa não são os casos gerais, mas sim os específicos. Comecemos então a explicar a tendência da língua:

Como se pode perceber facilmente no discurso oral das pessoas de todas as camadas sociais, não estamos, portanto, falando aqui daquelas que possuem um letramento, a preferência na flexibilidade de um vocábulo terminado em –ão é justamente a forma –ões. E este fato da língua pode também ser reconhecido como um caráter especial da linguagem que, dependendo do tipo de relação que existe entre o emissor, o destinatário e a mensagem a ser transmitida, poderá adquirir no contexto um valor emocional, afetivo, repreensivo, ofensivo etc. Nesta análise podemos incluir todos os aumentativos, que por esta tendência, farão seu plural em –ões.

Seguindo esta linha linear de pensamento tem-se que, quando a palavra é desconhecida do falante, a tendência é que ele forme seu plural com o acréscimo do sufixo –ões. Inclusive porque vários substantivos em "-ão" ainda não encontraram uma forma definitiva para o plural, se bem que a flexão "-ões", por ser mais eufônica, se venha impondo vitoriosamente. Sob esta perspectiva temos alguns vocábulos que admitem o plural de duas formas distintas. Aqui estão alguns exemplos:

(1)           guardião – guardiões, guardiães;

(2)           verão – verões, verãos;

(3)           anão – anões, anãos;

(4)           cirurgião – cirurgiões, cirurgiães;

(5)           corrimão – corrimões, corrimãos;

(6)           vilão – vilões, vilãos;

(7)           zangão – zangões, zangãos

(8)           artesão – artesães, artesãos[1]

(9)           faisão – faisães, faisões

(10)        hortelã – hortelãos, hortelões

Algumas gramáticas registram a tripla possibilidade de formação para algumas palavras. É o caso, por exemplo desses vocábulos:

(11)        vilão (vilões, vilães e vilãos)

(12)        aldeão (aldeões, aldeães e aldeãos)

Esta triplicidade optativa para uma ou outra forma confundindo o falante da língua devido a uma não uniformização, apenas reflete o estado de hesitação que a língua apresenta dependendo do contexto social o qual está inserida, que teve paralisado, pela difusão do texto escrito, um movimento em direção a uma forma única de plural (-ões, sem dúvida alguma). Diante de tanto impasse entre esta difícil normatização do plural na língua, faz-se aqui uma sugestão, à semelhança do que já existe no espanhol, em relação aos problemas flexionais a fim de que se diluam por completo e deixe de ser uma problemática desnecessária à aquisição da linguagem.

Essa seria a situação ideal: ou teríamos três singulares, correspondendo aos três plurais diferentes, ou apenas um singular correspondente a um e apenas um plural. No entanto, ficamos assim suspensos no meio da evolução, com um único singular e três plurais distintos, e temos de conviver com isso. E, como já dito previamente, todos os aumentativos fazem plural em –ões e este fato só vem a reforçar e credenciar esta terminação como marca plural canônica do ditongo –ão.

Os outros (poucos) que escolhem "-ãos" e "-ães" são memorizados pelos falantes (mão, mãos; irmão, irmãos; pão, pães), isso quando não terminam também aderindo ao genérico "-ões": é o caso de corrimão, cujo plural original é corrimãos (já que vem de mão), mas que aparece também, em todos os dicionários, com a possibilidade de um corrimões.[2]

Dentre os vocábulos que formam seu plural em ões, e já vimos que a regra geral da língua é essa, inclui-se o grupo de todos os substantivos flexionados em grau (aumentativo):

(13)        amigalhão – amigalhões

(14)        bobalhão – bobalhões

(15)        casarão – casarões

(16)        chapelão – chapelões

(17)        dramalhão – dramalhões

(18)        espertalhão – espertalhões

(19)        moleirão – moleirões

(20)        narigão – narigões

(21)        pobretão – pobretões

(22)        rapagão – rapagões

(23)        sabichão – sabichões

(24)        vagalhão – vagalhões

Um reduzido número de vocábulos muda o final –ão em –ães:


 

 

(25)        alemão – alemães

(26)        bastião – bastiães

(27)        cão – cães

(28)        capelão – capelães

(29)        capitão – capitães

(30)        catalão – catalães

(31)        charlatão – charlatães

(32)        escrivão – escrivães

(33)        guardião – guardiães

(34)        pão – pães

(35)        sacristão – sacristães

(36)        tabelião – tabeliães

Um número pequeno de oxítonas e todas as paroxítonas acrescentam simplesmente um –s à forma singular:

(37)        cidadão – cidadãos

(38)        cortesão – cortesãos

(39)        cristão – cristãos

(40)        desvão – desvãos

(41)        irmão – irmãos

(42)        pagão – pagãos

(43)        acórdão – acórdãos

(44)        bênção – bênçãos

(45)        gólfão – gólfãos

(46)        órfão – órfãos

(47)        órgão – órgãos

(48)        sótão – sótãos

A explicação inicial e genérica para esta diferença está relacionada com a origem latina dessas palavras. Assim, mão vem do latim ‘manu(m)’. Durante a evolução perdeu o –n– intervocálico (que caiu sempre nesta posição e quando não correspondia a consoante dupla) e ganhou o til que faz a nasalação. Este fenômeno aconteceu com os três exemplos e com a maioria das palavras terminadas em ditongo nasal. Todas elas, no singular, se fixaram em –ão; porém, no plural, apresentam marcas mais evidentes da palavra de origem. Por isso dizemos mãos, pois a seguir ao –n– que caiu havia um –u, que passou a –o. No caso de pão, a palavra latina é ‘pane(m)’, que origina o plural pães. Por seu lado, em leão, a palavra de origem é ‘leone(m)’; daí o plural leões.

A justificativa para a escolha de uma ou outra forma na formação do plural de palavras terminadas no ditongo nasal “ão” é, como analisado previamente, dada de forma sincrônica. Ou seja, através da origem latina de cada um desses vocábulos.

Com tudo, podemos ter justificativas cabíveis também nas línguas neolatinas, que oriundas do latim, algumas, como o espanhol, conservaram marcas evidentes para que selecionássemos um ou outro plural de forma menos duvidosa que na língua portuguesa.

Nesses casos, o que nos ajuda mesmo é olhar por cima do muro e ver o que nosso vizinho de sempre, o Espanhol, anda fazendo, pois lá existem três singulares para três plurais: hermANO, hermANOS; leON, leONES; alemÁN, alemANES! A boa notícia é que podemos aproveitar isso para nossa língua (há estudos sérios sobre o assunto, mas vou simplificar): "-ano, –anos" correspondem aos nossos "-ão, –ãos" (hermano, hermanos: irmão, irmãos); "-on, –ones", aos nossos "-ão, –ões" (leon, leones: leão, leões); e "-án, –anes", aos nossos "-ão, –ães" (alemán, alemanes: alemão, alemães). Pode haver um ou outro vocábulo desviante, mas em geral o sistema funciona direitinho.

Por exemplo, vamos ao plural da palavra afegão: a maioria dos falantes do Português prefere afegãos; uma pequena minoria opta pela variante afegães, que não pode ser condenada, mas que vai certamente sumir no passado. Se visitarmos o Espanhol, encontramos "afgano, afganos", uma agradável confirmação de que a intuição majoritária de nossos falantes coincide com a estrutura que descrevemos no parágrafo acima.

Desde o início da minha pesquisa que minha intenção sempre foi fazer um estudo analógico e comparativo, a fim de tentar uniformizar uma forma não obsoleta para o plural das palavras terminadas em –ão. E, de fato, o castelhano servirá como uma língua alternativa para a verificação desses plurais, a partir de algumas regras básicas que mantém uma ligação que será de muita valia para a transposição desses vocábulos para o português.

Quando a tradução da palavra portuguesa para o castelhano resultar em vocábulo terminado em –ón (canção-canción; coração-corazón; nação-nación), é quase certo que o plural seja –ões.

Nos casos em que a tradução for uma palavra terminada em –án ou –an (alemão-alemán; capitão-capitán; pão-pan), boa possibilidade haverá de que o plural do vocábulo português termine em –ães.

Finalmente, quando a terminação espanhola for –ano (cidadão-ciudadanos; cristão-cristiano; irmão-hermano; mão-mano), a palavra portuguesa terá seu plural com –ãos.

Exceções haverá (verão-verano, plural "verões", muito embora se admita "verãos"), mas suponho que a analogia com o castelhano, na forma acima proposta, funcionará como regra em mais de 99% dos casos. Afinal, nenhuma regra é 100%, de forma que sempre deve-se abrir espaço para uma pequena margem de erro.

Essa similaridade das línguas se dá pelo fato de que ambas são línguas românicas. E, a proposta que faço de uma possível analogia com o castelhano, é devido às opções que se tem neste dialeto, com regras bastante claras. Ou seja, neste idioma, não há apenas uma forma plural, como no português. Há três formas singulares distintas representativas de cada plural. Trocando em miúdos, posso afirmar que os três ditongos (–ãos, –ões e –ães) são resultado da diferente etimologia dos vocábulos na evolução da língua. Porque o português perdeu algumas das características, mas o castelhano as manteve fervorosamente.

Assim, comecemos a estudar o léxico desta língua a fim de encontrarmos na evolução, explicações lógicas para esses plurais. Mas não esqueça: o bom falante da língua é aquele que domina as exceções e, mesmo que haja uma corrente moderna apontando para novas tendências, o estudo dos tradicionalistas é de grande valia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. Petrópolis: Vozes, 2004.

CUNHA, Celso & Cintra, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BARROS, Frederico Pessoa de. Dicionário espanhol-português. A-F. Volume I. São Paulo: Mestre Jou, [s/d.].

ELIA, Sílvio Edmundo. Dicionário gramatical português. 3ª ed. [São Paulo]: Globo, 1962.


 


 

[1] Quando se refere ao indivíduo que tem por ofício as artes que dependem de habilidade manual, o feminino é "artesã", e o plural é "artesãos". No entanto, a palavra "artesão" também se usa em arquitetura, com o sentido de "adorno que se coloca entre molduras em abóbadas e tetos". Neste caso, o plural é "artesões". Disso se conclui que é possível dizer que "os artesões de determinada igreja foram produzidos por famosos artesãos".

[2] “Corrimão”, como composto de mão, deveria apresentar apenas o plural “corrimãos”; a existência de “corrimões” explica-se pelo esquecimento da formação original da palavra.

 

 

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