A transitividade, as vozes verbais
e o
ensino da gramática
O
problema de critérios semânticos
na
definição das funções sintáticas

Christiana Lourenço Leal

 

Introdução

algum tempo vêm se realizando estudos em torno da questãocomo ensinar gramática?”. Há quem chegue a afirmar que se deveria abolir o ensino da gramática de modo a tornar a Língua Portuguesa mais acessível aos alunos.

Todas essas questões são suscitadas pelo fato de os alunos considerarem tal disciplina extremamente difícil e complexa. O que realmente preocupa é que um falante da Língua parece não dominar seus sistemas tendo em vista que esses sistemas não se encaixam nos moldes da situação real de comunicação desse falante.

É com base nesses fatores bem como na análise das chamadas “gramáticas clássicas” que esse trabalho se propõe a explicitar conteúdos gramaticais implícitos. Dessa forma, acreditamos que estaremos, não solucionando, mas fornecendo caminhos para uma melhor aceitação da Língua materna por parte, não só do aluno, mas também de qualquer falante de Língua Portuguesa.

A proposta da pesquisa é uma análise crítica das definições dadas pela Gramática Tradicional, de modo a aplicá-las na realidade de ensino da Gramática Normativa. Dessa forma, a partir dos casos que envolvem a predicação e as vozes verbais, tentar-se-á tornar “explícitas” determinadas doutrinas gramaticais “implícitas”, como já foi mencionado.

Além disso, esse trabalho lança a proposta de aproximar a gramática ensinada nas escolas de ensino fundamental e médio à situação real de comunicação do aluno. É claro que tudo o que proporemos é apenas uma forma de tornar o conteúdo gramatical mais acessível aos alunos que tanto o repudiam.

Dessa forma, pretendemos, com esse trabalho, não lançar um molde de como ensinar gramática nas escolas, mas sim aclarar a mente de estudiosos da Língua e professores de Língua Portuguesa, de modo que cada um possa tornar a Gramática Tradicional o mais agradável e essencial na vida dos alunos falantes e escreventes de nossa língua.

 

A predicação verbal

A NGB divide os verbos, quanto à predicação, da seguinte forma: verbos transitivos; verbos intransitivos; verbos de ligação. E as gramáticas escolares os definem dessa forma (ERNANI e NICOLA, 2001: 108/109):

1) Intransitivos: são verbos significativos, capazes, sozinhos, de constituir o predicado. Não necessitam de complemento, já que possuem sentido completo.

2) Transitivos: são verbos significativos, incapazes de, sozinhos, constitui o predicado, já que, tendo sentido incompleto, exigem um complemento. Subdividem-se em:

a) Transitivos diretos: quando exigem complemento sem preposição obrigatória, denominado objeto direto.

b) Transitivos indiretos: quando exigem complemento com preposição obrigatória, denominado objeto indireto.

c) Transitivos diretos e indiretos: quando possuem dois complementos, um sem preposição (objeto direto) e outro com preposição (objeto indireto).

3) de ligação: são verbos vazios ou quase vazios de significado, que servem como elo entre o sujeito e o predicativo do sujeito.

Essas definições apresentam, claramente, alguns problemas. O primeiro deles reside no fato de não se considerar o sujeito como um termo “pedido” pelo verbo.

É muito importante que o verbo seja analisado de modo que, antes de qualquer coisa, ele exija um sujeito para si. Sendo assim, os verbos transitivos diretos, por exemplo, são aqueles que exigem um sujeito e um objeto direto e os intransitivos, são aqueles que exigem apenas um sujeito.

Essa exigência do verbo por um sujeito é confirmada pelo fato de o verbo ter, necessariamente, de concordar com o sujeito. E essa é uma doutrina gramatical que, implicitamente, está contida em toda gramática, mas que não é explicitada, não permitindo ao aluno sua explanação lógica.

Um segundo problema é que as gramáticas escolares não definem claramente o que seria um verbo intransitivo nem tampouco um verbo de ligação.

Observando os exemplos abaixo, fica claro que a definição da maioria das gramáticas é falha:

(1) Ele mora em Brasília.

(2) Ele morreu em Brasília.

(3) Ele está em Brasília.

De acordo com a Gramática Normativa, os três verbos dos exemplos acima são classificados como intransitivos e o complemento “em Curitiba” seria, portanto, um adjunto adverbial de lugar.

No entanto, é inegável que esse termo “em Curitiba” representa relações diferentes em cada um dos casos. Apenas em relação ao verbo “morrer”, esse complemento pode ser considerado como não exigido.

Em (1) e (3), o complemento é, de certa forma, necessário. O professor Rocha Lima, em sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa chega a levantar a bandeira de que esses verbos pudessem ser classificados como “transitivos circunstanciais”, o que parece uma definição bastante aplicável.

A confusão que se faz entre adjunto adverbial e, possivelmente, objeto indireto, nesses casos, deve-se ao fato de que, de acordo com a doutrina gramatical explícita, todo o complemento verbal preposicionado é classificado como objeto indireto.

Posto tal dificuldade de classificação, é imprescindível que se revele ao aluno uma doutrina gramatical implícita que diz que todo termo que seja resposta para a pergunta “Onde?” é, antes de tudo, um adjunto adverbial de lugar.

Em relação ao exemplo (3), utiliza-se um verbo listado na maioria absoluta das gramáticas escolares como de ligação. No entanto, nesse caso, funciona como verbo intransitivo.

Deve-se classificar o verbo de ligação com base em dois critérios: ser um verbo não-nocional (ou seja, não representar uma ação do mundo biossocial) e ser um verbo que liga o sujeito ao seu predicativo. Somente se o verbo atender a essas duas exigências, simultaneamente, será de ligação.

(4) Maria é bonita

(5) Ele morreu doente.

Em (4) tem-se, claramente, um verbo de ligação. Já em (5), o verbo morrer liga o sujeito a seu predicativo, mas é um verbo relacional e, portanto, não pode ser de ligação.

Sendo assim, no exemplo (3), o verbo estar, apesar de aparentemente nocional, não está ligando o sujeito ao seu predicativo. Logo, não se trata de um verbo de ligação, mas sim de um verbo intransitivo. O verbo estar, e muitos outros listados como de ligação, podem funcionar, ainda, como verbos auxiliares, como em:

(6) Está ventando muito lá fora.

Dessa forma, de nada adianta pré-classificar verbos. É necessário um contexto que delimite sua significação. Além disso, é importante que as gramáticas revejam suas definições visto que, diante de alguns exemplos, elas são inaplicáveis.

É importante ressaltar que a Gramática não exclui tais teorias. Muito pelo contrário. As doutrinas gramaticais implícitas são teorias extraídas de algumas “brechas” da Gramática Tradicional. No entanto os gramáticos não as mencionam, o que torna o estudo gramatical muito mais complexo.

 

As Vozes Verbais

Tradicionalmente pode-se encontrar a seguinte subdivisão, retirada da Nova Gramática Aplicada da Língua Portuguesa do professor Manoel Pinto Ribeiro( 2002: 194):

Voz ativa – O verbo indica que o sujeito pratica a ação.

Voz passiva – O sujeito recebe a ação verbal.

Voz reflexiva –O sujeito pratica e recebe a ação verbal

Essa é, portanto, a doutrina gramatical explícita. No entanto, em sala de aula, o professor se depara com exemplos do tipo:

(7) O rapaz se feriu com a faca

(8) Eu levei um soco.

(9) Roberto tem 22 anos.

(10) Vende-se casas.

De acordo com a modalidade culta da língua as classificações para as orações acima, em relação às vozes verbais seriam: em (7) voz reflexiva; em (8) voz ativa; em (9) voz ativa; em (10) voz passiva. Além disso, ressaltar-se-ia que no exemplo (10) há um desvio em relação à norma, tendo em vista que “casas” é o sujeito do verbo vender que, portanto, deveria estar na 3ª pessoa do plural (Vendem-se casas).

Mais uma vez é importante repetir que não queremos refazer análises já feitas. No entanto, a explicação para que uma frase como (8), por exemplo, esteja em voz ativa não pode ser dada através da doutrina gramatical explícita, pois é completamente incoerente.

Parece claro que sujeito algum pode praticar a ação de levar um soco, ou, ainda, que ter 22 anos não é uma ação praticada. Logo, é importante que se revele uma doutrina gramatical implícita em relação às vozes verbais.

Antes de qualquer classificação, é importante ressaltar que, apesar de a maioria das gramáticas começar pela voz ativa, é pela voz passiva, que possui maiores características, que se deveria iniciar a classificação. Assim:

→ Voz passiva – é aquela que apresenta marcas de voz passiva. São marcas de voz passiva:

·   voz passiva analítica: verbo ser + particípio do verbo principal + agente da passiva

·   voz passiva sintética: verbo principal ligado a um pronome apassivador (se)

→ Voz reflexiva – é aquela que apresenta marcas de voz reflexiva. A marca de reflexiva é:

·   pronomes oblíquos me, te, se, nos, vos coincidindo com o número e a pessoa do sujeito

→ Voz ativa – é aquela que não apresenta marcas de voz passiva nem de reflexiva.

A análise sintática está no plano do significante e não no plano do significado. É quase que como uma função matemática em que um termo varia em relação a outro. Dessa forma, analisar a gramática através do plano dos significantes, no plano sintático e não no semântico, é mais lógico para qualquer estudante de Língua Portuguesa.

A doutrina gramatical explícita necessita de um contexto extralingüístico grande demais para se fazer real. Esse contexto causa uma dependência de dimensões enormes para o aluno. É sempre melhor que se trabalhe no plano concreto e não no abstrato.

Após essa nova análise, parece claro que em (8), apesar da passividade clara inerente à semântica do verbo “levar”, temos um caso de voz ativa. No exemplo (10), temos claramente uma voz passiva sintética ou pronominal e, por isso, o verbo tem de concordar com o sujeito.

O que acontece no exemplo (10) é um caso de tendência que temos de indeterminar o sujeito em construções desse tipo. Até porque, quando se fala uma frase desse tipo, na verdade, o que se quer é a questão da indeterminação mesmo.

No entanto, é importante tornar explícita a seguinte doutrina gramatical implícita: tudo o que o verbo precisa é de um sujeito. Apenas em casos em que não há como determinar um sujeito, haverá o sujeito indeterminado. E, só em último caso, haverá uma oração sem sujeito.

(11) Come-se bem aqui nesta cidade.

(12) Come-se bem aqui nesta cidade uma bela feijoada.

No exemplo (11) temos um caso de sujeito indeterminado. Mas isso só acontece porque não há termo na oração que possa funcionar como sujeito, visto que todos são adjuntos adverbiais. Logo, “alguém come”, mas não se pode precisar quem.

Já no exemplo (12) há um sujeito simples: “uma bela feijoada”. É equivalente a “Uma bela feijoada é comida”. Como se pode observar, foi só aparecer um termo que pudesse se adequar à função de sujeito que se transformou uma oração de sujeito indeterminado em uma oração caracterizada por verbo em voz passiva.

Esse é outro conceito que não é explicitado pelas gramáticas (a tendência de o falante indeterminar o sujeito que é aceita pela gramática apenas em último caso). No entanto, por tratar-se de uma tendência, é provável que os alunos convivam com essa questão mais naturalmente do que com a classificação de uma frase como a (10) como voz passiva pura e simplesmente.

É importante mostrar para o aluno que em “Vendem-se casas”, temos um termo que funciona perfeitamente como sujeito e, por isso, temos uma voz passiva. Já em exemplos do tipo “Precisa-se de empregadas”, aí sim, temos um sujeito indeterminado visto que não há termo apto a tornar-se sujeito (é bom lembrar que o sujeito nunca pode vir preposicionado).

 

Considerações Finais

É claro que, após tantas críticas espera-se uma solução para a questão do ensino de gramática. Mas, como foi mencionado no início desse trabalho, nossa proposta nunca foi a de traçar um manual de “como ensinar gramática nas escolas”.

Muito pelo contrário. Acreditamos que tal manual nunca existirá, visto que é importante que o ensino da gramática se adapte à realidade “sócio-comunicacional” do aluno. Segundo Moura Neves (2003: 85):

Adquirimos nossa língua (e, portanto, a “gramática” que a organiza) sem nunca termos tido aulas, e essa aquisição refere-se especialmente à capacidade que todo falante tem de, jogando com as restrições de sua língua materna, proceder a escolhas comunicativamente adequadas, operando as variáveis dentro do condicionamento ditado pelo próprio processo de produção. Isso significa dizer que não há discurso sem gramática, mas que também não há gramática sem discurso.

O que se quer afirmar é que o professor não pode manter a sua sabedoria estanque, reproduzindo um conteúdo ultrapassado, recheado de exemplos que só funcionam para confirmar uma teoria já pré-estabelecida.

Se o ponto de partida para o ensino de gramática fosse os exemplos que os alunos pudessem levar para o contexto de sala de aula, o estudo da língua tornar-se-ia mais necessário e concreto para o estudante.

Todavia, antes de se adaptar a essa nova proposta, é importante que o professor conheça todas as lacunas deixadas pelas Gramáticas Tradicionais. Isso significa que o professor precisa desvendar as doutrinas gramaticais implícitas que estão escondidas por trás das doutrinas gramaticais explícitas.

Quando o professor mantém-se na postura autoritária de detentor único do saber e não se propõe a aprender com o aprendizado de seus alunos, o resultado é a restrição do ensino de Gramática a uma mera taxonomia, isto é, à classificação descontextualizada.

Dessa forma, podemos entender que uma análise gramatical não pode ser suficiente apenas por rotular termos e funções. Deve-se, antes de tudo, trabalhar com uma situação real de comunicação.

Esperamos que tenha ficado claro que nossa teoria não culmina com a abolição do ensino de gramática nas escolas. É muito importante que os alunos tenham acesso à reflexão sobre seu próprio sistema lingüístico.

Dessa forma, livros que proponham a extinção do ensino da gramática das escolas são extremistas, tendo em vista que esta seria uma atitude, no mínimo, radical. A solução não é abolir o ensino da gramática, mas sim torná-lo mais concreto em relação aos seus fundamentos.

O problema do ensino da sintaxe é que não podemos rotular funções sintáticas, mas sim identificá-las com base em substituições e colocações utilizando critérios práticos.

Deve-se fazer a discussão sintática sem recorrer ao sentido até quando for possível. Sabemos que não se pode estruturar e analisar sintaticamente qualquer elemento descontextualizado. No entanto, essa contextualização não pode ultrapassar os limites semânticos e atingir as definições sintáticas. Não podemos, portanto, apelar para elementos extralingüísticos ao analisarmos sintaticamente qualquer conteúdo gramatical.


 

Referências Bibliográficas

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CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

HENRIQUES, Claudio Cezar. O santo guerreiro e o dragão da maldade (resenha de Gramática nunca mais, de Luiz Carlos de Assis Rocha). Matraga, 14. Rio de Janeiro: Caetés, 2002, p. 177-180.

LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 41ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola? Norma e uso na língua portuguesa. São Paulo: Contexto, 2003.

PERINI, Mário A. Para uma nova gramática do português. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2000.

––––––. Sofrendo a gramática. São Paulo: Ática, 1997.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado das Letras, 2003.

RIBEIRO, Manoel Pinto. Nova gramática aplicada da língua portuguesa. 12ª ed. Rio de Janeiro: Metáfora, 2002.

TERRA, Ernani & NICOLA, José de. Gramática, literatura e redação para o ensino médio. Rio de janeiro: Scipione, 2001.

 

 

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