PRONOMES ADVERBIAIS U E ONDE
NAS CANTIGAS DE AMIGO GALEGO-PORTUGUESAS
TRAJETÓRIA DE UMA GRAMATICALIZAÇÃO

Maria Regina Pante (UEL)

Bittencourt (2003: 160), após analisar dados coletados de Marinho (1999), o qual desenvolveu pesquisas sobre o emprego da forma onde em textos acadêmicos, esclarece que o alargamento sintático-semântico que vem sendo sentido no emprego de onde no português atual

Não é prerrogativa do estágio atual da nossa língua, mas já se verifica no português arcaico. Nesse período ele ocorre paralelamente à partícula também de acepção locativa u (hu), acabando por suplantá-la em meados do século XV.

Em seguida, a autora procede a um levantamento parcial das formas u (hu) e onde nas Cantigas de Santa Maria (CSM), acompanhado de uma abordagem semântica dessas formas no corpus em questão.

Levantamento semelhante já havia sido realizado por Mattos e Silva (1989), com os Diálogos de São Gregório (DSG), texto do século XIII, assim como as CSM.

A fim de averiguar o emprego dessas duas formas em outro corpus de mesmo período, tomamos como corpus de nossa abordagem as Cantigas de Amigo (CA), pertencentes aos séculos XII, XIII e XIV.

Etimologia de u e de onde

Segundo Câmara Jr. (1975), etimologicamente, o onde é proveniente da forma latina ŭnde, que significava lugar donde. No sistema latino clássico, havia as formas latinas ūbi, indicando lugar fixo, lugar onde; ŭnde a proveniência, ‘lugar de onde’; quo, a direção, ‘lugar para onde’ e qua, ‘passagem por um lugar’, ‘por onde’. Quo e qua são o caso ablativo singular dos pronomes relativos, com função de complemento circunstancial ou de adjunto adverbial; ūbi e ŭnde, advérbios de lugar interrogativos e relativos.

No latim clássico, parece existir uma regularidade maior no uso dessas formas, que apresentam, por assim dizer, uma perfeita correspondência forma/função. Ao lado do latim clássico, dos textos literários, fluía uma língua do falar espontâneo, de que derivaram as línguas românicas, o latim vulgar. No latim vulgar, ūbi era, às vezes, empregado para substituir quo, ‘para onde’, e ŭnde, para substituir freqüentemente ūbi, ‘lugar onde.

Na fase arcaica da língua portuguesa, há registros de ŭnde e de ūbi fazendo as vezes de pronomes relativos. O uso pronominal desses advérbios é considerado muito antigo, remetendo ao latim arcaico.

As formas latinas clássicas, relativas ao atual onde, como foi visto de forma sintética acima, eram organizadas em um paradigma de quatro formas, passaram por processos de variação e de mudança, ao longo dos séculos, pressionadas por fatores cognitivos e pragmáticos das situações de uso.

No português arcaico, conforme registros de Mattos e Silva (1989), permanecem basicamente duas formas que acumulam significados e funções: hu (de ūbi), significando ‘onde’ e ‘para onde’, e onde (de ŭnde), significando ‘de onde’. Ambas ocorrem em sentenças interrogativas diretas e indiretas e em sentenças afirmativas.

Câmara Jr (1975) afirma que a partícula ubi, que persistiu em italiano e em francês, apareceu no português arcaico sob a forma u, mas predominou a adoção de onde (do latim ŭnde, conforme o que foi citado anteriormente) para a situação. Nota-se, também, que foram usadas as preposições a e de para, com a mesma partícula, apontar a direção e a proveniência (onde e donde).

Com o passar do tempo, o advérbio u começou a desaparecer e assim seu uso, tanto na escrita, quanto na oralidade, ficou escasso, vindo a tornar-se raro na linguagem quinhentista e seiscentista.

Ao lado da forma hu, a mais empregada, Mattos e Silva (1989) registrou algumas ocorrências da variante u, sempre precedida da preposição per, indicando ‘por onde’. Com exceção dessa preposição, a autora não encontrou registros dessa forma precedida das preposições a, para, de; além disso, o pronome onde não aparece precedido de preposição. Bittencourt (2003), por sua vez, ao analisar a CSM, encontrou registro da forma u precedida da preposição per e de onde, precedida da preposição de.

As duas autoras constataram que, nesse período, o emprego de u é muito superior ao emprego de onde; além disso, algumas vezes ocorria o emprego de um pelo outro, geralmente com acepção de ‘ponto em que’ e de ‘ponto de onde’. Outras acepções encontradas para a forma u foram as de tempo, posse, modo, causa ou explicação, direção, instrumento; a forma onde, bem menos freqüente, aponta para um valor discursivo, indicando quase sempre uma idéia conclusiva, como marcador argumentativo.

Posteriormente, hu foi enjeitado pela língua culta, permanecendo (conforme já citado) o onde, assumindo significados e funções das outras formas, por vezes precedido de preposição, quando requerida.

U e onde nas Cantigas de Amigo

U

As Cantigas de Amigo, que nos servem de corpora para o presente trabalho, pertencem aos séculos XII, XIII e XIV, portanto, contemporâneas aos Diálogos de São Gregório (doravante DSG) e às Cantigas de Santa Maria (doravante CSM), ambos do século XIII.

Analisadas as 512 cantigas que constituem o corpus, chegamos, em linhas gerais, aos seguintes aspectos morfossintático-semânticos de u e de onde, para os quais ilustraremos com alguns exemplos.

A forma u aparece documentada 6 vezes precedida da preposição per, sempre com o valor de por onde:

I, 19-21: “Mal ti venha per u fores, / ca non és se non mia morte, / ai, amor!”

CCXCVIII, 13-14: E sempre catan estes olhos meus / per u eu cuido que á de viir

e 17 vezes precedida da preposição de, com acepções diversas:

XCI, 7-8: querria, per boa fé, / seer du está mia madre, (= onde)

DV, 22-23: E enton pode perder seu pesar, / du que[n] el vira ir veer tornar. (de quem/possessivo)

Conforme Mattos e Silva constatou (1989), a maioria das ocorrências de u se dá como relativo em frases afirmativas, sendo que ele pode se referir a um lugar explícito (25 ocorrências) ou não (46 ocorrências), além de também poder estar precedido dos substitutos locativos ali/aqui (11 ocorrências) ou apresentar valor temporal (28 ocorrências), além de ser empregado em lexias complexas (10 ocorrências). Eis alguns exemplos:

LXXV, 23: e lhis secastes as fontes u se banharam: (= as fontes)

XXII, 13-14: E, quand’el ven u vos sodes, razon / quer catar que s’encoberta e ten

XXV, 1-3: ― Amiga, faço-me maravilhada / como pode meu amigo viver / u os meus olhos non pode veer,

XXVII, 16-19: ― Non querrá Deus esso, senhor, / mais, pois, u vós fordes,

XXIX, 1-7; 11; 17; 19-20: ― Non poss’eu, meu amigo, / con vossa soidade / viver, ben vo-lo digo, / e por esto morade, / amigo, u mi possades / falar e me vejades./ Non poss’u vos non vejo (...) / Guarrei, ben o creades, senhor, u me mandades.

LXXXIII, 7: Non foi u ir avia,

V, 13-15: Amiga, o coraçom seu / era de tornar ced’aqui, / u visse os meus olhos em mi,

XLI, 1-4; 11-12: Chegou-mi, amiga, recado / d’aquel que quero gram ben: / que, pois que viu meu mandado, / quanto pode viir ven; (...) / se non ali u eu for, / u é todo seu cuidado.

IX, 19-20: E gran perda per fazedes, / u tal amigo perdedes.

XXIV, 7: U vos en tal ponto eu oí falar, / senhor, que non pudi depois ben aver

XXX, 7: Disseste-me, u vos de min quitastes:

XXXI, 10-13: tod’este mal é por esta razon: / porque non cuida de min ben aver, / viv’en coita, coitado por morrer. / Morrerá d’esta, u non pod’aver al,

CIV, 9-10: ca, se vos fordes e vos eu non vir, / non viverei, amig’, u al non á;

CCXVII, 7-9: Que trist’oje que eu sejo! / e, par Deus, que pod’e val, / morrerá, u non jaz al;

A respeito dos últimos três exemplos, Bittencourt (2003: 163), ao analisar as CSM, registra a expressão u non aja al com valor conformativo

Serren a eigreja, u non aja al. (Cant. 27, v. 31)

diferentemente de Nunes (1928: 580-581), que a registra como locução adverbial: u non jaz al; u al non á; u non pode aver al (= certamente, sem dúvida), possibilidade semântica que nos parece realmente a mais adequada em todas as 10 ocorrências analisadas.

Onde

Encontramos, nas CA, 18 ocorrências da forma onde e 1 ocorrência da forma donde, as quais apresentam as seguintes idéias:

ONDE relativo com antecedente de lugar explícito
(1 ocorrência)

CCLXXIX, 9-10: e parte s’ome da terra ond’é, / e parte-s’ome du [mui] gran prol ten,

Note-se que, no exemplo acima, o ponto de que algo procede é definível no espaço. Nos outros casos em que onde funciona como relativo, a referência é feita a um ponto abstrato ou nocional.

ONDE referente a um ponto abstrato ou nocional
(11 ocorrências)

LIII, 5-7: mais pero tanto vos digo: / que lhi non tornei recado / ondel ficasse pagado.

CVI, 3: Pero vos ides, amigo, / sen o meu grad’alhur viver, / non vos ides, ondei prazer,

CLXXXIII, 1-3: Par Deus, amigas, já me non quer ben / o meu amigo, pois ora ficou / onde m’eu vin e outra o mandou,

CCLI, 13-15: Vós non quisestes que el veess’aqui, / o meu amig’, ondavia sabor / de o veer e quis Nostro Senhor,

ONDE com valor temporal
(5 ocorrências)

LXIV, 5-6: E, se m’outren faz ondei despeito, / a el m’assanh’e faço dereito

CXL, 1-2: Quand’eu sobi nas torres sobe-lo mar / e vi onde soia a bafordar / o meu amig, ’amigas, tam gram pesar

CCXXXV, 1-3: Dizia la ben talhada: / agora viss’eu, penada, / ondeu amor ei.

ONDE com relação de posse (de que/de quem)
(1 ocorrência)

CLXX, 7-8: Dizede-lh’ora que se parta já / do meu amor, onde sempr’[o]uve mal;

Donde (1 ocorrência)

CCCCLVIII, 1-6: Fostes-vos vós, meu amigo, d’aqui / sen meu mandad’e nulha ren falar / mi non quisestes, mais oj’ao entrar, / se por mesura non fosse de mi, / se vos eu vira, non mi venha ben / nunca de Deus, nen donde m’oje ven.

Considerações finais

O presente trabalho ateve-se ao levantamento e à análise dos pronomes relativos u e onde nas Cantigas de Amigo galego-portuguesas, texto em verso pertencente aos séculos XII, XIII e XIV.

Buscando descrever de que forma u e onde eram empregados em textos em verso e em prosa, nesse período em questão (XII a XIV), realizamos um cotejo entre os dados obtidos por Mattos e Silva, que trabalhou com um corpus em prosa, os Diálogos de São Gregório (século XIII) e com dados bastante parciais obtidos por Bittencourt, que trabalhou com as Cantigas de Santa Maria, corpus em prosa (século XIII).

Após a análise de todas as ocorrências de u e de onde, nas 512 Cantigas de Amigo (séculos XII a XIV), e após confrontar esses dados com os dados das autoras acima citadas, podemos chegar a algumas conclusões:

a) a taxa de emprego de u supera a de onde: 158 x 19 ocorrências, aí inseridas as ocorrências precedidas de preposição;

b) nesse período do português arcaico, as duas formas opunham-se semanticamente, sendo que u expressava, preferentemente ‘lugar em que’ (valor etimológico) ou direção, tempo, posse, e onde expressava, preferentemente, proveniência (valor etimológico) ou tempo, posse;

c) os empregos de um pelo outro são ainda pouco representativos e se referem a ‘lugar em que’ ou ‘de que lugar’;

d) as duas formas apresentam acepções que extrapolam seu sentido etimológico e mais comum: (u) ubi = no lugar em que e (onde) unde = de que lugar, donde.

e) ao contrário dos dados obtidos por Mattos e Silva, encontramos 17 ocorrências da forma du e uma da forma donde; a primeira, em sua maioria, com a acepção de proveniência (acepção de onde), e a segunda, donde, que indica proveniência (sentido etimológico), já espelha o enfraquecimento da forma não-preposicionada com essa acepção.

Para concluir, é interessante que outras pesquisas, com outros corpora, sejam realizadas para que se possa traçar um quadro mais amplo das possibilidades sintático-semânticas dessas duas formas, além de averiguar em que momentos outras formas, como honde, unde, não-registradas nos corpora em questão, estão presentes e sob quais condições, se se trata de meras variantes ortográficas ou se são variantes contextuais.

Referências bibliográficas

BITTENCOURT, Vanda de O. U e onde nas Cantigas de Santa Maria: caminhos de gramaticalização e de discursivização. Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais. IV Eiem. Orgs. LEÃO, Ângela Vaz; BITTENCOURT, Vanda O. Belo Horizonte, 2003. p. 159-167.

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.

MATOS E SILVA, Rosa Virgínia. Estruturas trecentistas: elementos para uma gramática do português arcaico. Lisboa: IN-CM, 1989.

NUNES, José Joaquim. Cantigas d’Amigos dos trovadores galego-portugueses. Edição crítica acompanhada de introdução, comentário, variantes, e glossário. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926-1928.

...........................................................................................................................................................

Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos