Recursos de Indeterminação do Sujeito
na Fala Rural do Semi-Árido Baiano

Neila Maria Oliveira Santana (UFBA/ UNEB)

Introdução

O uso das formas nós e a gente como recurso para indeterminar o sujeito é comum entre os falantes no Brasil. A gramática normativa (GN), entretanto, por raramente explicar fenômenos já consagrados na língua falada, apresenta apenas duas maneiras de se indeterminar o sujeito em português: pondo o verbo “(a) ou na terceira do plural; b) ou na terceira pessoa do singular, com o pronome se” (CUNHA & CINTRA, 1985: 125).

Comparando as prescrições da GN e o uso do sujeito indeterminado em diferentes modalidades da língua portuguesa, tanto oral quanto escrita, tanto popular quanto culta, podemos constatar que há uma grande diferença entre o que estas gramáticas prescrevem e o que realmente ocorre no português brasileiro.

A maioria das GN, arrolando de forma sistemática somente dois recursos indeterminadores do sujeito, ignora outros tantos que vigoram e fluem na língua. A abordagem feita por ela não leva em consideração o português falado e, conseqüentemente, não observa as transformações pelas quais o português tem passado.

Alguns trabalhos (MILANEZ, 1982; CUNHA, 1993; CAVALCANTE, 1998; GODOY, 1999) bem mostram, e de maneira semelhante, que o sistema lingüístico do português do Brasil conta ainda com outros recursos de indeterminação que não são citados pela GN, a exemplo de nós, a gente, você(s), ele(s), Ø + verbo na 3ª pessoa do singular, Ø + infinitivo, além dos recursos tradicionais Ø + verbo na 3ª pessoa do plural e Ø + verbo + se.

Em nosso trabalho, o que pretendemos é analisar os ambientes lingüísticos e sociais que condicionam o uso dos pronomes nós e a gente como recursos de indeterminação do sujeito. Para isso, utilizaremos a metodologia variacionista.

Metodologia

Adotando a metodologia da Sociolingüística Quantitativa Laboviana (SANKOFF, 1988), partimos de um corpus constituído de uma amostra de 12 entrevistas do tipo DID (diálogo entre informante e documentador) recolhidas nas comunidades gêmeas de Bananal e Barra dos Negros, localizadas na zona rural do município de Rio de Contas, na Bahia, que faz parte dos corpora do projeto “A Língua Portuguesa no Semi-árido Baiano”, desenvolvido pelas professoras Norma Lúcia Fernandes de Almeida e Zenaide de Oliveira Novais Carneiro, na Universidade Estadual de Feira de Santana.

Os inquéritos analisados envolvem seis informantes do sexo feminino e seis do sexo masculino, havendo uma distribuição proporcional de duas entrevistas de cada sexo pelas três faixas etárias: faixa 1 (15 a 35 anos), faixa 2 (36 a 55 anos) e faixa 3 (55-70).

Análise dos dados

Nos dados, foram identificadas várias possibilidades utilizadas pelo falante como recurso para se indeterminar o sujeito, tanto com formas com sujeito lexical (exemplos 1 a 3), quanto com formas sem sujeito lexical (exemplos 4 a 6), como podemos ver em alguns exemplos retirados do corpus:

(1) DOC: E como é que planta cana?

INF: Jeito que tem é você tombar a terra, se quiser tombar, né? Aqui pra nós, a maioria tomba. Acho que tem, tem arado, né? Aí, você vai e... e vai abrino as coveta. (B, 9, 138).

(2) INF: ...Aqui nós ia panhar maniçoba e palmatória, não tinha nada de comer não. Nós já sofreu muito moça, ma hoje o povo ta todo vivo meu bem, graças a Deus! (B, 36, 313).

(3) INF: Às vezes... às veze a gente alembra d’uma... a gente alembra de muitas coisa, mas esquece tombem, né? (B, 3, 25)

(4) DOC: Como é que a senhora faz doce de mandioca?

INF: Rela mandioca, lava muito bem lavada, tira a goma dela todinha, passa na peneira, côa, põe pa freventar... (B, 34, 265).

(5) DOC: Morreu muita gente?

INF: Morreu muita gente. Mas dizem que já tirou muito... muito ouro aí... Foi ouro. (B, 7, 83)

(6) INF: Tem um rio aqui tomem, o povo gosta muito. Aqui se fala muito da Ponte do coronel, acha bom, mas é porque a gente tá costumado aqui com água, com tanque aí... (B, 8, 109).

Vemos que são vários os recursos utilizados pelo falante para indeterminar o sujeito em português, porém, neste trabalho, como dissemos na introdução deste artigo, restringimos nossa análise apenas aos indeterminadores nós e a gente.

Obtivemos um total de 1006 ocorrências, sendo 881 de a gente (88%) e 125 de nós (13%). Deste total, 560 são usadas pelas mulheres e 446 são usadas pelos homens. Quanto à idade, 364 dados são da faixa 1, 424 da faixa 2 e 218 da faixa 3. Identificamos, assim, ambientes lingüísticos e favoráveis ao uso de a gente.

Realizamos diversas rodadas do programa estatístico IVARB e os grupos selecionados como relevantes para aplicação da regra variável (valor de aplicação: a gente) foram:

1º Forma antecedente

2º Tempo/Modo verbal

3º Grau de indeterminação

4º Sexo associado à faixa etária

5º Tipo de verbo

Os outros grupos de fatores controlados (tipo de oração, mudança de referente e referência semântica do agente) não foram considerados pertinentes pelo programa. Analisemos, pois, em que consiste cada um dos grupos de fatores selecionados e os respectivos resultados.

A variável forma antecedente, atualmente rotulada de paralelismo nos diversos estudos de fenômenos do português e também de outras línguas (OMENA, 1986, SCHERRE, 1988, LOPES, 1993, MACHADO, 1995), consiste na repetição, pelo falante, de uma mesma forma numa seqüência discursiva.

Observemos um exemplo de uma estrutura paralela de nosso corpus:

(7) INF: (...) a gente trabalhava lá na beira daquela parede daquela barragem lá, em Rio de Conta. A gente trabalhava pertim daquela barragem... nós saiu de lá porque a água invadiu, se não acho que até hoje a nós tava lá. (B, 34, 254).

Neste exemplo, o falante escolhe a forma a gente (1ª referência), designando as pessoas que moram na comunidade, incluindo-se também no contexto. Em seguida, usa novamente a forma a gente – precedida de a gente. Utiliza depois duas vezes a forma nós, o primeiro precedido por a gente e o segundo precedido por nós, repetindo a mesma forma.

Tabela 1: Influência da variável forma antecedente no uso de a gente.

Grupo/Fator:

Forma Antecedente

Nº/Total

Freq. %

P. R.

a gente implícito

189/191

99

0,84

a gente explícito

297/303

98

0,76

1ª forma de uma série

190/221

86

0,29

forma isolada

154/187

82

0,23

nós explícito

12/44

27

0,03

nós implícito

1/19

5

0,01

A tabela 1 mostra que no momento em que o falante seleciona uma forma, tal escolha influenciará no uso das formas subseqüentes, a ocorrência de um determinado pronome tende a desencadear uma série de repetições confirmando o paralelismo existente entre as formas. Assim, observamos que a maior freqüência para a forma a gente está nos enunciados em que seu antecedente formal também é a gente tanto implícito (0,84) quanto explícito (0,76).

As demais posições favorecem ao uso da forma nós. Os dados mostram que há maior probabilidade para o uso de nós quando o seu antecedente é também nós com sujeito explícito ou não. Observamos ainda que este pronome tem também alta probabilidade quando é primeira forma de uma série ou quando é uma forma isolada.

Tabela 2: Influência da variável tempo/modo verbal no uso de a gente

Grupo/Fator:

Tempo/modo verbal

Nº/Total

Freq. %

P.R.

Presente do Indicativo

632/683

93

0,57

Pretérito Perfeito do Indicativo

32/49

65

0,17

Pretérito Imperfeito do indicativo

100/149

67

0,31

Infinitivo

83/91

91

0,51

Com relação ao tempo/modo verbal, as maiores probabilidades são para o uso de a gente com o presente do indicativo (0,57) e a forma nominal de infinitivo (0,51). Já o pronome nós tende a ocorrer com os tempos do pretérito tanto perfeito quanto imperfeito do indicativo. Comportamento similar foi detectado nas pesquisas de Cunha (1993) e Machado (1995).

Para analisar o grau de indeterminação, definimos, seguindo o que foi proposto por CUNHA (1993), três graus de indeterminação de acordo com a referência ao contexto:

· Indeterminação completa – quando não há possibilidade de recuperação do referente dentro do contexto.

· Indeterminação parcial com referência implícita no contexto – quando o referente não está presente no texto, mas pode ser depreendido do contexto através de inferência.

· Indeterminação parcial com referência explícita no contexto – quando há uma relação com um determinado referente possibilitando sua interpretação, sendo este recuperado por meio de inferência.

Tabela 3: Influência da variável grau de indeterminação no uso de a gente

Grupo/Fator:

Grau de indeterminação

Nº/Total

Freq. %

P.R.

Indeterminação completa

292/301

97

0,72

Indeterminação parcial com

referência implícita no contexto

554/665

83

0,40

Indeterminação parcial com

referência explícita no contexto

35/40

88

0,52

Ao analisar a tabela 3, observamos que o maior grau de indeterminação refere-se ao pronome a gente (0,72). Com um peso relativo um pouco menor (0,52) a indeterminação parcial com referência explícita no contexto favorece o uso desta forma. O pronome nós tem seu uso um pouco mais intenso quando a indeterminação é parcial com referência implícita no contexto.

O fator sexo associado à faixa etária foi selecionado em 4º lugar dentre os grupos selecionados. Ao examinar a distribuição das formas nós e a gente, em relação ao sexo, observamos que as mulheres indeterminam mais o sujeito de seus enunciados (56%) do que os homens (44%).

Na tabela 4, examinamos com mais detalhes estes resultados.

Tabela 4: Influência das variáveis sexo e faixa etária no uso de a gente.

Grupo/Fator:

Faixa etária

Homens

Mulheres

Nº/T

%

P.R.

Nº/T

%

P.R.

Faixa 1

123/145

85

0,39

200/219

91

0,55

Faixa 2

144/173

83

0,47

236/251

94

0,65

Faixa 3

107/128

84

0,42

71/90

79

0,30

Nesta tabela, os resultados mostram que a forma a gente é mais utilizada pelas mulheres da faixa 2 (0,65) e da faixa 1 (0,55). Já entre os homens, o uso de a gente é pouco relevante, sendo a forma nós a mais empregada em todas as faixas.

De acordo com esses resultados, poderíamos dizer que há certo conservadorismo na fala dos homens, diferente das mulheres que há uma inovação em relação ao uso destas formas de indeterminação do sujeito.

Tabela 5: Influência da variável tipo de verbo no uso de a gente.

Grupo/Fator: Tipo de verbo

Nº/Total

Freq. %

P.R.

Transitivo

720/812

89

0,52

Intransitivo

131/153

86

0,47

Cópula

30/41

73

0,23

O último grupo selecionado foi o tipo de verbo. Como vemos na tabela 5, o uso de a gente é mais influenciado com os verbos transitivos (0,52). Para o uso de nós, o verbo copulativo é o mais utilizado, seguido dos verbos intransitivos.

Considerações finais

A indeterminação pronominal do sujeito, especialmente quando expressa pelas formas nós e a gente, mostrou-se um fenômeno sensível a condicionamentos lingüísticos e sociais. Percebemos que a variação nós e a gente também se dá quando os pronomes são indeterminados, havendo porém contextos que propiciam a escolha de uma e não de outra forma.

Em síntese, destacamos as tendências gerais quanto ao uso de nós e a gente como formas de indeterminação do sujeito no português de Bananal e Barra dos Negros:

1) a forma a gente ocorre quando precedida de outra forma a gente. O mesmo acontece com a forma nós que se repete no paralelismo discursivo. Entretanto, quando muda o referente, a forma escolhida pelo falante também se altera;

2) a forma indeterminadora a gente ocorre com presente do indicativo e com a forma nominal de infinitivo; já a forma nós com os tempos do pretérito do indicativo;

3) há uma diferenciação no uso de nós e a gente em relação a um uso mais genérico ou mais restrito. O falante utiliza a primeira forma indeterminadora quando faz referência a uma indeterminação parcial implícita, enquanto que escolhe a gente quando faz referência a indeterminação completa e a indeterminação parcial explícita;

4) as mulheres das faixas 1 e 2 tendem a usar mais o indeterminador a gente e os homens, de qualquer faixa, usam mais a forma nós;

5) o tipo de verbo mostrou-se relevante apenas para o uso de nós.

Concluímos basicamente que a indeterminação expressa pelas formas nós e a gente mostrou-se um fenômeno condicionado a determinados ambientes lingüísticos e sociais. Observamos também que existem contextos que propiciam a escolha de uma ou de outra forma, havendo, assim, variação no uso desses pronomes também quando são indeterminados.

Referências bibliográficas

CAVALCANTE, Vilma Maria Reis. A indeterminação do sujeito no português oral culto de Fortaleza – CE. Dissertação de Mestrado em Lingüística. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 1998.

CUNHA, Celso & CINTRA, Luis Felipe L. Nova gramática do português contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

CUNHA, Cláudia de Souza. Indeterminação pronominal do sujeito. Dissertação de Mestrado em Lingüística. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993.

GODOY, Maria Alice Maschio. A indeterminação do sujeito no interior paranaense: uma abordagem sociolingüística. Dissertação de Mestrado em Letras e Lingüística. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1999.

LOPES, Célia Regina dos Santos. Nós e a gente no português falado culto do Brasil. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993.

MACHADO, Márcia dos Santos. Sujeitos pronominais “nós” e “a gente”: variação em dialetos populares do norte fluminense. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995.

MILANEZ, Wânia. Recursos de indeterminação do sujeito. Dissertação de Mestrado em Lingüística. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 1982.

OMENA, Nelize Pires de. A referência variável da primeira pessoa do discurso no plural. In: NARO, Anthony et alii. Relatório Final de Pesquisa: Projeto Subsídios do Projeto Censo à Educação. Rio de Janeiro: UFRJ. v. 2,. p. 286-319, 1986

ROLLEMBERG, Vera et al. Os pronomes pessoais sujeito e a indeterminação do sujeito na norma culta de Salvador. Estudos Lingüísticos e Literários. Salvador, n. 11, p. 53-74, 1991.

SANKOFF, David. Variable rules. In: AMMON, Ulrich et alii (eds.). Sociolinguistics: an international handbook of the science of language and society. New York, 1988.

SCHERRE, Maria Marta Pereira. Reanálise da concordância nominal em português: percurso histórico. Tese de Doutorado em Lingüística. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1988.

 

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