Uma análise comparativa
das construções com verbos de alçamento
na fala e escrita padrão

Fernando Pimentel Henriques (UFRJ)
Maria Eugênia Lamoglia Duarte (UFRJ)

 

Introdução

Segundo Duarte (1993, 1995) a perda da distinção entre as formas verbais para referência à segunda pessoa do singular (tu viajavocê viaja) e a concorrência entre ‘nós’ e ‘a gente’ para referência à primeira pessoa do plural levaram a uma simplificação / redução dos paradigmas flexionais. Em outras palavras, o paradigma que antes era constituído por seis diferentes morfemas, hoje está reduzido a quatro ou três.

A redução do paradigma flexional levou a um aumento do preenchimento da posição do sujeito pronominal. Pesquisas recentes mostram que tal posição vem se caracterizando pela forma plena / preenchida, tanto para os sujeitos de referência definida quanto para os sujeitos de referência indeterminada. Diante dessa constatação, este trabalho busca analisar estruturas que exibem um sujeito não referencial (não argumental), no intuito de verificar se a posição de sujeito dos verbos que não projetam um argumento externo está sendo preenchida ou não.

Este trabalho focaliza as construções com verbos de alçamento (“parecer”, “custar”, “levar”, “demorar”, “acabar” entre outros), comparando os resultados obtidos para a fala com uma análise da escrita padrão. Parte-se da hipótese de que o Português Brasileiro está passando por uma mudança paramétrica, ou seja, está deixando de ser uma língua de sujeito nulo para se tornar uma de sujeito preenchido. Para isso, utilizam-se pressupostos da Teoria de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981) e da Teoria da Variação e Mudança Lingüística (Labov, 1994), particularmente a noção de “encaixamento” da mudança.


 

As construções de alçamento

Os verbos de alçamento são aqueles que não projetam um argumento externo, mas um argumento interno sob a forma de um sintagma oracional, cuja posição fixa é pós-verbal. As gramáticas tradicionais afirmam que tal sintagma exerce a função de sujeito, sendo, assim, classificado como oração subordinada subjetiva. O termo “alçamento” (oriundo do quadro teórico da sintaxe gerativa) se refere ao fato de que esses verbos, por apresentarem uma posição vazia à sua esquerda, permitem que o sujeito da oração encaixada / subordinada seja “alçado” para tal posição.

Ao se examinar as construções com “parecer”, o verbo de alçamento mais ilustrativo, é possível vislumbrar todas as possibilidades de alçamento. Primeiramente, tais construções podem aparecer com a posição à esquerda do verbo vazia (sujeito não argumental / não referencial), que em línguas de sujeito preenchido aparece com um pronome expletivo, isto é, sem conteúdo semântico (como o il do francês e o it do inglês), como em (1):

(1)      Tem ocasiões que nem __ parece [que (eu) sou brasileiro]

Encontram-se também estruturas que permitem o alçamento do sujeito da encaixada, como em (2), onde ele recebe caso nominativo, enquanto o verbo da subordinada apresenta a forma infinitiva. Esta estrutura é conhecida como alçamento clássico e é recomendada pelas gramáticas tradicionais:

(2)      Tem ocasiões que eu nem pareço [ ___ ser brasileiro]

Há uma terceira possibilidade: o sujeito da encaixada é deslocado para uma posição externa à sentença, como em (3), enquanto o verbo da encaixada exibe as marcas de concordância, atribuindo caso ao seu sujeito deslocado:

(3)   Tem ocasiões que eu [ não __ parece [que __ sou brasileiro]

Finalmente, temos em (4), ao mesmo tempo, o alçamento do sujeito da encaixada para a posição de sujeito de “parecer” e a flexão dos dois verbos, o verbo da oração principal e o verbo da oração encaixada. Tal estrutura é referida na literatura como hiperalçamento (cf. Ferreira, 2000). Neste caso, o sujeito da encaixada pode aparecer nulo (4a) ou expresso (4b):

(4)  a. Tem ocasiões que ___ nem pareço [que ___ sou brasileiro]

       b. Tem ocasiões que eu nem pareço [que (eu) sou brasileiro] (Exemplo da língua oral, amostra PEUL)

 

Resultados para a língua falada (amostra PEUL)

Verbo “parecer”

A análise da língua falada baseou-se na amostra PEUL para o estudo de tendência (análise da fala da comunidade em dois períodos de tempo distintos, um no início dos anos 80 e o outro no início dos anos 2000). Os resultados revelaram que os falantes preferem as estruturas em (1) e em (4), como se verá mais detalhadamente na seção seguinte. Por outro lado, as ocorrências em (2) e (3) estão praticamente ausentes da fala.

A grande preferência pela estrutura em (4), o hiperalçamento, pode ser interpretada como uma conseqüência da tendência ao preenchimento ou à projeção do sujeito referencial. Procura-se evitar, portanto, a posição vazia do sujeito não argumental. Alguns exemplos da amostra que apresentam a estrutura em (4) podem ser vistos em (5):

(5)  a. mas você parece [que você está se dividindo entre a medicina e o jazz]

       b. As pessoas pareciam [que __ iam cair do brinquedo]

 

Verbos “custar”, “demorar”, “levar”, “faltar”, “acabar”, “bastar”

Outros verbos, como “custar”, “demorar”, “levar”, “faltar”, “acabar” e “bastar” não permitem o hiperalçamento. Eles revelam, apesar disso, uma forte preferência pelo movimento do sujeito da encaixada para a posição à sua esquerda, enquanto o verbo da encaixada apresenta a forma infinitiva (alçamento clássico). De fato, percebe-se uma quase categórica preferência pelo alçamento clássico, em (2). A preferência é de 80% no início dos anos 80 e de 81,5% no início dos anos 2000, o que revela ser este um processo mais antigo no sistema. Encontram-se, em (7), alguns exemplos da amostra com alçamento clássico e, em (6), algumas construções sem alçamento:

 

 (6) a. ___ Custou [(pra) ele sair de casa]

       b. ___ Só faltava agora [eles dizerem que não era culpa deles]

       c. ___ Acaba [que a gente explica a vida da gente toda]

(7)  a. Eu custo [a ___ perceber as coisas; eu não sou esperto]

       b. Eles ainda faltavam [ ___ receber o dinheiro do patrão]

       c. Eu demorei [pra __ perceber que ele era safado]

 

Fala versus escrita

Para a comparação entre fala e escrita foi utilizada uma amostra constituída pelo Projeto PEUL, sediado na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com base em textos de opinião, crônicas, notícias e reportagens publicados nos jornais Povo, Extra, O Globo e Jornal do Brasil, entre 2002 e 2005. Os dois primeiros jornais se direcionam aos leitores menos escolarizados, enquanto que os dois últimos gozam de prestígio junto aos leitores mais escolarizados.

 

FALA POPULAR

 

Figura 1: Distribuição das estruturas de Alçamento e Não Alçamento na fala


 


ESCRITA

 

Figura 2:
Distribuição das estruturas de Alçamento e Não Alçamento na escrita padrão

As figuras 1 e 2 apresentam os resultados gerais obtidos para a fala e para a escrita, respectivamente. As ocorrências de “parecer” e dos demais verbos estão agrupadas. Percebe-se, em relação à fala, tanto nos anos 80 quanto nos anos 2000, que há uma nítida preferência pela estrutura de alçamento, que, neste caso, engloba o alçamento clássico e o hiperalçamento. Na escrita, percebe-se também uma forte preferência pelo alçamento. A diferença, no entanto, está no fato de que nessa modalidade a estrutura preferida é o alçamento clássico, em (2). Vejamos mais detalhadamente essas ocorrências nos itens 4.1 e 4.2.

 

Em relação ao verbo “parecer”

Ocorrências com parecer na fala

 

Anos 80

Anos 2000

(1) Sem alçamento

26 (64%)

23 (48%)

(2)Com alçamento + encaixada infinitiva

-

1 (2%)

(3) Com alçamento + sujeito deslocado

1 (2%)

3 (6%)

(4) Com hiperalçamento

14 (34%)

21 (44%)

Total

41 (100%)

48 (100%)

Tabela 1: Construções com Parecer na fala

Ocorrências com parecer na escrita padrão

(1) Sem alçamento

21 (17%)

(2) Com alçamento + encaixada infinitiva

92 (75%)

(3) Com alçamento + sujeito deslocado

-

(4) Com hiperalçamento

10 (8%)

Total

123 (100%)

Tabela 2: Construções com Parecer na escrita padrão

As figuras 1 e 2 mostram que em ambas as modalidades, fala e escrita, há uma nítida preferência pelo alçamento do sujeito da encaixada. No entanto, há uma diferença significativa que pode ser vista nas tabelas 1 e 2 acima. Entre as construções de alçamento da fala com “parecer” há nítida preferência pelo hiperalçamento (34% em 80 e 44% em 2000). Note-se que as ocorrências de alçamento clássico praticamente inexistem na fala (0% em 80 e 2% em 2000).

A escrita, por outro lado, privilegia o alçamento clássico, com 75%. Como já foi dito anteriormente, esse tipo de alçamento é uma estrutura recomendada pela Gramática Normativa. Portanto, o usuário preenche a posição do sujeito sem fugir às prescrições das gramáticas tradicionais, o que reforça a idéia de que, na escrita, há uma maior susceptibilidade à norma padrão. Ainda assim, foram observados 8% de ocorrências de hiperalçamento na escrita. Portanto, há indícios de que essa estrutura, não prevista pela Gramática Normativa, já está se implementando na escrita. Vejamos alguns exemplos da escrita numerados conforme o item 2 (“As construções de alçamento”) deste trabalho. Note-se que não há ocorrências referentes à estrutura em (3), o deslocamento do sujeito da encaixada:

(1)   a. A vida às vezes traz boas surpresas. Como digo a vocês volta e meia, ___ parece [que ___ sou o único a ler essas coisas], sabe Deus lá por quê, de maneira que me apresso a repartir as boas novas. [O Globo 18.07.04 Crônica]

       b. Ao manter ícones como os que estamos vendo e patinar em fatias insignificantes do mercado, ___parece bastante claro [que elas não estão dando certo]. [JB 03.06.03 Opinião]

       c. ___ Parece [que o comando do futebol do Flamengo não está mesmo se entendendo]. [Povo 29.12.03 Notícia]

(2)   a. Já os americanos parecem [___ter chegado a um ponto em que ter escrúpulos de qualquer espécie é apenas outra afetação européia a ser rejeitada]. [O Globo 30.03.2002 Crônica]

       b. José Alencar pareceu [___ cair em si] quando o presidente Luiz lnácio da Silva viajou para o Peru. [JB 03.06.03 Opinião]

       c. Acabamos de entrar em 2004 e algumas pessoas parecem [ainda ___ viver na Idade Média]. [Extra 05.01.04 Notícia]

(3)   a. Com os anos as idéias parecem [que ___vão ficando cada vez mais longe], enquanto o seu poder de convocá-las diminui. [O Globo 01.05.2003 Crônica]

       b. Recebo cartas e sugestões de amigos e leitores. __ Parecem [que ___ esperam de mim uma crônica]. [O Globo 07.09.03 Crônica]

       c. Quando ele parecia [que ___ estava conseguindo se livrar dos companheiros], veio o time adversário. [O Globo 20.01.2002 Crônica]

Vale ressaltar que a estrutura de hiperalçamento ocorre, preferencialmente, no gênero “crônica”, que possui caráter mais informal, facilitando a implementação de estruturas típicas da fala. E como já vimos, o hiperalçamento é uma dessas estruturas. Além disso, é necessário salientar que grande parte dos dados de hiperalçamento foi encontrada nos jornais cujo público alvo são os leitores mais escolarizados. Portanto, não se pode associar o uso dessa estrutura, que não é recomendada pela Gramática Normativa, ao grau de escolaridade do usuário da língua.

 

Verbos “custar”, “demorar”, “levar”, “faltar”, “acabar”, “bastar”

Ocorrências com custar, demorar, levar, faltar, acabar, bastar na fala

 

Anos 80

Anos 2000

(1) Sem alçamento

10 (20%)

10 (18,5%)

(2)Com alçamento + encaixada infinitiva

39 (80%)

44 (81,5%)

Total

49 (100%)

54 (100%)

Tabela 3: Construções com custar, demorar, levar, faltar, acabar, bastar na fala

 

Ocorrências com custar, demorar, levar, faltar, acabar, bastar na escrita padrão

(1) Sem alçamento

15 (10%)

(2) Com alçamento + encaixada infinitiva

141 (90%)

Total

156(100%)

Tabela 4:
Construções com custar, demorar, levar, faltar, acabar, bastar na escrita padrão

Os resultados apresentados nas tabelas 3 e 4 revelam que o alçamento clássico é a opção preferida na fala e na escrita (com 90%), respectivamente. Tal como ocorre com o verbo “parecer”, não há qualquer restrição por parte da Gramática Normativa em relação a essa construção, o que permite a sua implementação sem dificuldades nas três pessoas do discurso. Em suma, pode-se afirmar que, se por um lado as estruturas em (6), sem alçamento, são raramente encontradas na escrita padrão, por outro, as estruturas em (7), com alçamento clássico, estão extremamente difundidas nessa mesma modalidade:

(6)       a. ___ Acabou [que a genteouviu o início da canção, muitos capítulos atrás]. [O Globo 27.06.04 Crônica]

     b. ___ Basta [que Lula tire a gravata e o andar de cima o acusa de imitar o presidente venezuelano Hugo Chávez]. [O Globo 14.08.05 Crônica]     

(7)       a. Certos ressentimentos custam [___ a acabar]. [O Globo 10.05.04 Crônica]

     b. porque eufaltava [___ perguntar qual era a equipe brasileira]. [O Globo 20.07.03 Crônica]

     c. (eu) Acabei [___ fechando a porta do quarto e fiquei na escuridão]. [O Globo 24.10.02 Crônica]

Percebe-se através dos resultados expostos nas tabelas 1, 2, 3 e 4 que tanto a fala quanto a escrita preferem o alçamento de um constituinte da encaixada para a esquerda de V, confirmando nossa hipótese inicial de que o Português Brasileiro está apresentando um índice maior de preenchimento da posição do sujeito não referencial. A diferença está no fato de que a fala prefere o hiperalçamento com “parecer” e a escrita prefere o alçamento clássico com todos os verbos examinados.

 

Observações finais

Pretende-se analisar os traços semântico e estrutural do sujeito da encaixada, visando a descobrir que tipos de constituintes favorecem ou restringem o alçamento. Além disso, busca-se uma comparação das estruturas com os verbos de alçamento em Português Brasileiro e em Português Europeu. Diante dos dados encontrados e apresentados neste artigo, temos elementos para concluir que o Português Brasileiro está passando por uma mudança paramétrica, o que tem provocado reestruturações no sistema, permitindo a discussão das propriedades que caracterizam o Parâmetro do Sujeito Nulo. Percebe-se claramente que, apesar de o português do Brasil não ter desenvolvido um pronome expletivo, existem estratégias que permitem ao falante evitar um expletivo nulo, isto é, um sujeito não referencial vazio.


 

Referências bibliográficas

CHOMSKY, Noam. Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris, 1981.

DUARTE, M. Eugênia L. Do pronome nulo ao pronome pleno: a trajetória do sujeito no português do Brasil. In. Roberts & Kato, M. A. (orgs.) Português brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas: UNICAMP, 1993, 107-128.

––––––. A perda do princípio “Evite Pronome” no português brasileiro. Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP, 1995.

––––––. Sujeitos expletivos e estratégias para sua representação no português brasileiro. Relatório de pesquisa, CNPq, 2002.

FERREIRA, Marcelo B. Argumentos nulos em português brasileiro. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2000.

LABOV, William. Principles of linguistic change: internal factors. Oxford: Blackwell, 1994.

 


 

 

 

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