VERBOS TRITRANSITIVOS NO PORTUGUÊS

Afrânio da Silva Garcia (UERJ)

INTRODUÇÃO

A Nomenclatura Gramatical Brasileira divide os verbos em verbos de ligação, verbos intransitivos, verbos transitivos diretos, verbos transitivos indiretos e verbos bitransitivos ou transitivos diretos e indiretos. Alguns gramáticos acrescentam a essa classificação os verbos transitivos predicativos ou transobjetivos (aqueles que requerem predicativo do objeto, como considerar, transformar, xingar) e os transitivos circunstanciais ou transitivos adverbiais (aqueles que requerem um adjunto adverbial como complemento, como ir, voltar, ingressar).

Falham essas classificações em incluir outros tipos de transitividade, como os verbos bitransitivos indiretos (com dois objetos indiretos, como falar com alguém sobre alguma coisa, discordar de alguém em alguma coisa etc.) e os verbos tritransitivos, ou seja, aqueles verbos que exigem três complementos verbais (como traduzir, transferir, tramitar).

O objetivo deste trabalho é justamente apresentar esses verbos tritransitivos ao público interessado. Recusamos a classificação a eles atribuída pela gramática tradicional, que os considera verbos transitivos diretos associados a adjuntos adverbiais, por dois motivos:

a) mesmo se considerarmos seus complementos adjuntos adverbiais, eles ainda assim constituem complementos do verbo;

b) em determinados casos, todos os três complementos são substantivos, o que impediria sua leitura como adjunto adverbial, como em: transferir o poder de Pedro para João, trasladar seu amor de Maria para Joana etc.

TRANSITIVIDADE E VALÊNCIA

Charles Fillmore, em seu esplêndido e inovador trabalho Em favor do caso (“The case for case”), diz que a valência de um verbo pode variar de zero a quatro, considerando-se valência como o número total de elementos previstos pelo verbo, ou seja, que podem combinar-se com o verbo, que estão associados semântica e sintaticamente ao verbo, incluindo-se aí o sujeito. Mais adiante ele diz que a valência do verbo é imutável: os elementos associados ao verbo são constantes, o que muda é sua possibilidade de ocorrência. Vejamos alguns exemplos dos cinco tipos de valência citados (pois não estamos descartando a possibilidade de existir um verbo de valência superior a cinco, que nos tenha escapado);

a) Valência zero – chover, nevar, ventar etc.;

b) Valência um – viver, fazer (dias, horas, calor etc.), existir, haver etc.;

c) Valência dois – comer, vestir, pensar, ser, ter, gostar etc.;

d) Valência três – dar, receber, pedir, roubar, falar, perdoar etc.;

e) Valência quatro – levar, trazer, transferir, mudar, mover etc.

Podemos identificar os verbos de valência zero como verbos sem sujeito nem complemento, como os verbos meteorológicos e similares. Os verbos de valência um seriam ou verbos intransitivos (com sujeito) ou verbos com apenas um complemento (objeto, predicativo, complemento adverbial) e sem sujeito. Os verbos de valência dois seriam aqueles com sujeito e apenas um complemento, enquanto os de valência três teriam, além do sujeito, dois complementos. Por último, os verbos de valência quatro seriam aqueles que comportassem, a par do sujeito, três complementos verbais.

É interessante notar que a visão de Fillmore de valência estaria presa à langue (na visão de Saussure) ou à estrutura profunda da língua (na visão de Chomsky), ou seja, ela pertenceria ao sistema da língua e não às suas realizações ou exteriorizações (parole ou estrutura de superfície). O simples fato de um complemento não aparecer constantemente ou mesmo de sua ocorrência na fala ser extremamente restrita não modificaria a valência de um verbo (vista como uma coisa intrínseca, mais do que uma coisa verificável). Por exemplo, os verbos falar e ir teriam sempre valência três, pois, sem ferir nenhuma regra da língua, pode-se dizer que “um sujeito falou algo para alguém” ou que “um sujeito foi de um lugar para outro”. O fato de normalmente a língua usar esses verbos com apenas um complemento: Ele falou bobagem, Nós fomos à praia, não invalida o fato de que esses verbos têm potencialmente dois complementos.

Por que, então, insistir em chamar de verbos tritransitivos àqueles verbos que podem ter três complementos, em vez de nos satisfazermos em dizer que eles têm valência quatro? A resposta é muito simples: porque este tipo de verbos não só podem ter três complementos, como freqüentemente são usados na fala, em situações reais de discurso, com seus três complementos presentes e, muitas vezes, imprescindíveis, como podemos constatar nos exemplos seguintes:

1) A Livraria Martins Fontes transferiu sua sede no Rio de Janeiro da rua da Alfândega para a avenida Rio Branco.

2) Aquele escritor traduziu “As mil e uma noites” do árabe para o português.

3) A barca transporta o minério do garimpo para a cidade grande.

4) O Sarney inventou uma ferrovia para levar as pessoas do nada a lugar nenhum. (Jô Soares)

É importante notar que, em todas essas sentenças, a supressão de um dos complementos geraria da parte do receptor da mensagem um questionamento: De onde? De quê?, sendo que tal supressão, parece-me, deixaria as sentenças bem menos aceitáveis.

Também podemos notar que existe uma relação casual (cf. a noção de caso em Fillmore, opus cit.) que permeia todos os verbos tritranstivos: em todos eles temos um complemento no caso (ou função) origem e outro complemento no caso (ou função) meta.

1) A babá levava a criança de casa para a escola.

2) Será que ele transmitiu o recado do capitão para o sargento?

3) Affonso Romano de Sant’Anna transformou a Biblioteca Nacional de um depósito de livros velhos numa verdadeira biblioteca.

Note-se que de casa, do capitão e de um depósito de livros velhos estão no caso (ou função) origem e para a escola, para o sargento e numa verdadeira biblioteca estão no caso (ou função) meta.

Note-se ainda que, mesmo que descartemos complementos circunstanciais ou adverbiais, ainda assim teríamos verbos tritransitivos no português (e provavelmente em muitas outras línguas, já que é uma característica vinculada à langue ou estrutura profunda da língua), pois o segundo e o terceiro complementos do exemplo 6 são pessoas e do exemplo 7 são coisas, inclassificáveis como adjuntos adverbiais.

TIPOS DE VERBOS TRITRANSITIVOS

Existem três tipos de verbos tritransitivos, conforme seu conteúdo semântico (já que suas características sintáticas são idênticas):

a) Verbos transferenciais – o tipo de verbo tritranstivo que permite maior variedade de complementos, já que se pode transferir coisas, idéias, qualidades e pessoas, tais como: transferir, transmitir, traduzir etc.

b) Verbos transformativos – verbos que transmitem a idéia de que algo deixa de ser A e passa a ser B por efeito de um agente, tais como: transformar, mudar, tornar, converter etc.

c) Verbos translocativos – em que se veicula a idéia de que um agente foi responsável pela mudança de localização de um ser, que passa de um lugar de origem para um lugar de destino, tais como: levar, puxar, carregar, enviar, trazer etc.

CONCLUSÃO

Como pudemos constatar através deste artigo, existe uma série de verbos de valência quatro, o que os torna, automaticamente, verbos tritransitivos. Tais verbos podem ou não aparecer com três complementos, mas a freqüência de sua ocorrência com três complementos é bastante grande, sendo muitas vezes a melhor opção.

Estes dois fatos justificam que estes verbos sejam estudados separadamente em termos de transitividade, já que eles não se enquadram (ao menos, não se enquadram perfeitamente) nas demais classificações.

A classificação aqui proposta, como verbos tritransitivos, tem a vantagem de estar pautada na lógica, já que estes verbos efetivamente possuem três complementos. Mais importante que isso, no entanto, é reconhecermos a importância deste tipo específico de verbos e que os ensinemos de maneira pertinente e cabal, o que importaria uma classificação à parte.

 

 

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