A LINGUAGEM DA POLÍTICA
INOVAÇÕES LINGÜÍSTICAS
NO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO

Nícia de Andrade Verdini Clare (UERJ)

Por que a linguagem da Política especificamente? Porque a Política faz parte do nosso cotidiano, penetra em nossos lares pela mídia, é dinâmica, é rica, é renovadora. Uma inovação na linguagem da Política é um eficaz recurso de Comunicação, irradiando-se em ondas por todo o país e penetrando em outros campos do saber.

Quando Fernando Henrique criou fracassomania, o termo se irradiou, em ondas sucessivas, por todo o território brasileiro, e sua aceitação fez gerar o antônimo sucessomania e os respectivos derivados fracassomaníaco e sucessomaníaco.

A Política forma a história do país, cujo principal esporte é o futebol. Assim, o radical –mania se expande à área do futebol, formando, em plena copa de 94, ronaldinhomania.

A adoção de uma inovação política está diretamente relacionada ao prestígio de seu criador. Tivemos um exemplo recente. Quando o ministro Rogério Magri, do governo Collor, criou imexível, apesar da produtividade de prefixo e sufixo, houve uma polêmica nacional. Em 1995, no governo Fernando Henrique, o ministro Adib Jatene criou infritável, usando o mesmo processo, e houve ampla aceitação.

Essa pesquisa iniciou-se em 1994, com material recolhido nos principais jornais e revistas do país: JB, O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Estado de Minas, Correio Braziliense, Jornal de Brasília, Gazeta do Povo, Zero Hora, A Tarde, A Crítica, Revista Veja, Revista Isto É, Revista Manchete. Essa coleta estendeu-se até o início de 1996. Compreende a era pós-Collor, com Itamar Franco no poder e primeiro ano do governo de Fernando Henrique.

A escolha desse período não foi aleatória. 1994 foi um ano atípico. O Brasil esteve governado por um vice-presidente porque o presidente da República fora afastado por um processo de impeachment. Foi ano eleitoral. Sendo Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, criou – se o Plano Real – ou Plano FHC. O Brasil conviveu com duas moedas: o cruzeiro real e o real, além da fase de transição com o indexador URV. 1995 representou a posse de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República e a continuidade do Plano Real, mantendo-se o real como moeda nacional. Foi ano de muitas crises, começando pela do SIVAM e culminando com a da pasta rosa.

A partir da coleta desse material, organizei-o em grupos, por níveis lexicais, locucionais e frasais. Destaquei inovações propriamente ditas, retomada de palavras em sentido político e empréstimos lingüísticos.

Catalogados os termos, dei início à organização dos verbetes, que foram assim constituídos: classe gramatical (de acordo com o contexto); gênero (baseado na classificação de Mattoso Câmara); processo de formação (numa visão sincrônica, estudando-se a produtividade atual de sufixos e prefixos); etimologia (em caso de retomada de palavras); sentido político; conteúdo histórico; e abonação com indicação da fonte.

Muitos foram os termos criados a partir de lexemas antroponímicos: adhemarismo, brizolismo, cardosismo, collorato, collorizar, fernandohenriquismo, lular, malufismo, marcelista, menemizar, quercismo, sarneyzismo, sarneyzista, ulyssista etc.

Siglas e vocábulos acrossêmicos também geram derivados: ciepão, cutista, embrateleca, pefelagem, pefelista, pepebista, petismo, urvirização etc.

Vocábulos de aspecto híbrido são freqüentes, como se pode observar em fumódromo, showmício, SIVAMgate, umbigotropia.. .

Entre as inovações lexicais, destacaram-se substantivos formados, em sua maioria, por processo de derivação. Grande foi a produtividade dos sufixos –ção, –ismo e –ista e dos prefixos anti-, dês– e super-.

Processo comum foi o que se convencionou chamar de “dupla derivação em cadeia”: um verbo gera outro verbo e este novo verbo gera um substantivo. É o que se observa com o verbo fazer, que gera *fazejar, de natureza freqüentativa, que, por sua vez, gera fazejamento. O processo também pode ocorrer de substantivo para verbo, gerando novo substantivo: Fujimori gera * fujimorizar, que gera fujimorização.

Foram registradas inovações de natureza técnica, ao lado de outras de característica popular, algumas, até, jocosas, de cunho metafórico. Umas caem no gosto popular, como acabar em pizza, sendo adotadas pelo sistema; outras refletem o momento histórico e, logo, serão esquecidas e substituídas, como realmário, nome jocoso atribuído à moeda real numa alusão ao craque brasileiro que se destacou na Copa do Mundo de 94. Outras, levando-se em conta o prestígio do criador, irradiam-se por todo o território brasileiro, como foi o caso de fracassomania.

Para que se possa ter idéia do trabalho realizado, segue um verbete selecionado entre as inovações propriamente ditas:

SOBREVALORIZAÇÃO – s. f. Palavra formada por derivação prefixal: ao vocábulo valorização, é acrescentado o prefixo sobre-, vernáculo, equivalente ao super-, latino.

Sobrevalorização – Manutenção do poder de compra do real em níveis elevados em relação ao dólar.

Observa-se o processo de alteração semântica do prefixo sobre-, que, de acima de-, passa a indicar superioridade, como super-, prefixo erudito que lhe deu origem.

Sobrevalorização distingue-se de supervalorização por ser este um termo de valor global, alcançando qualquer área do saber humano; aquele tem uso limitado; faz parte de uma linguagem especial, técnica, relativa à economia.

“Ninguém do ramo poderia desconhecer que a âncora cambial iria provocar uma sobrevalorização do real”. (Folha de Sâo Paulo, 5/11/95, p. 4)

“E o que é pior, essa política de sobrevalorização do real continuará comprometendo as exportações”. (Jornal do Brasil, 31/12/95, p. 12)..

Com relação à retomada de palavras, observou-se a formação de grupos semânticos, com destaque para o campo da sedução: afago, casamento, cortejar, flertar, flerte, lua-de-mel, namorado, namorar, namoro, namorico, noiva, noivado, paquerar etc. É nessa área que as palavras ganham um cunho metafórico e metonímico.

Outros campos semânticos se destacam: o da culinária, com descongelamento, fervura, filé, fritura, gordura, geladeira, ovo, peneira; o do disfarce, com maquiagem e maquiar; o da bruxaria e do mistério com bruxo, fantasma, milagreiro, praga, rifar, roque, terreiro; o da dicotomia céu-terra com aterrissar, decolar, pára-quedismo; o da doença com brotoeja, inchaço, praga, quarentena, tumor, varíola; o da grandiosidade, representativos da História Antiga, como babilônico e faraônico; o que engloba nomes representativos de títulos religiosos, militares, indígenas e de caráter oriental, como cacique, cardeal, generalato, mandarinato, marajá, morubixaba, noviço; o de nomes de animais, como araponga, bode, coelho, corvo, dinossauro, mamute, marimbondo, mico, pioco, traça, tubarão, tucano, urubu, vespeiro.

Selecionamos, aqui também, um verbete, para que se possa notar o tratamento dado à retomada de palavras:

CORVO – S. m. [Do lat. corvu] (FERREIRA, A. B. H. 1986, p. 488)

Na linguagem da Política, corvo foi usado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso com valor adjetivo, possuindo conotação negativa. Corvo é a metáfora referente a todos aqueles que estejam sempre rondando o Governo em busca de podridão, como, por exemplo, os críticos do SIVAM. (O pronunciamento de FHC deu-se logo após o caso SIVAM).

“Corvos são seres que fazem intrigas, aplicam golpes baixos, aceitam uma viagenzinha ou armam uma escuta clandestina”. (Ver. Veja, 29/11/95, p. 31)

O corvo é uma ave agourenta. Foi tema de Edgard Allan Poe num dos mais famosos poemas da literatura internacional: O Corvo.

Nesse poema, Poe narra a saga de uma personagem que, ao ler livros antigos num castelo sombrio, é atormentada pela ave agourenta. No sinistro cenário, o corvo surge misteriosamente e, pousado em uma janela, grasna, sendo o canto interpretado pela personagem como a expressão never more.

Nas culturas européias, principalmente, o corvo é ave que só traz desgraças.

Na Índia, é o mensageiro da morte. Antiteticamente, na China e no Japão, é símbolo de presságios positivos.

No Brasil, o cognome O CORVO foi dado à figura do político Carlos Lacerda, ex-governador do então Estado da Guanabara. Lacerda, já falecido, acabou imortalizado pelos traços do colunista Lan como ave agourenta, em maio de 1954, nas páginas do jornal ÚLTIMA HORA. O desenho foi feito a pedido do dono do jornal, Samuel Wainer, inimigo político de Lacerda, após um incidente ocorrido no enterro do jornalista Nestor Moreira. É fato conhecido que o jornalista morreu espancado por policiais, provocando grande comoção na cidade. Lacerda escreveu um editorial na TRIBUNA DA IMPRENSA, onde mencionava que o presidente Getúlio Vargas considerava o crime monstruoso, mas monstruoso mesmo era o governo de Vargas.

Ao comparecer ao enterro do jornalista, solene, vestido de preto, Lacerda foi criticado por Samuel Wainer e, no dia seguinte, a ÚLTIMA HORA publicava o desenho de Lan.

O corvo, esquecido nesses últimos anos, ressurge agora através da força política do discurso do poder.

Vamos evitar que este espírito de corvo volte a pousar no país. De ver podridão em tudo. Há vontade de sentir cheiro de carniça. Essa carniça exala da própria consciência malsã dos que não percebem que há gente com espírito público. (Discurso de FHC, na comemoração dos 50 anos do DNER. Jornal do Brasil, FH chama críticos de “corvos”, 23/11/95, p. 1)

Sabia-se que o governo tinha um corvo já exonerado. Descobre-se agora que possui, na verdade, um autêntico viveiro das tais aves de mau agouro (Folha de Sâo Paulo, Opinião, Acorda, presidente, de Josias de Souza, 10/12/95, p. 2)

O corvo é Graziano (metáfora dirigida a Francisco Graziano, ex-presidente do Incra). (Veja, 29/11/95)

A revoada dos corvos. (Isto É, manchete,. 5/12/95)

Nota-se, ainda, corvo, como ave de mau agouro, no filme O Corvo, em que o ator principal, Brandon Lee morreu durante as gravações. Atualmente, encontra-se em fase de filmagens The crow, the city of angels, cujo papel principal foi entregue a um ator francês Vincent Perez. (O Globo, Planeta Globo, O pássaro negro voará novamente, 14/04/96, p. 4).

A pesquisa dará ensejo a um livro, publicado em 2004, cuja abertura se faz com uma parte teórica. Ela permite que uma pessoa, mesmo leiga, tome contato com o estudo da linguagem, pois explica a formação do léxico da Língua Portuguesa; a língua como fato histórico, sujeita, portanto, a mudanças; os processos de criação lingüística, incluindo a formação de palavras sob uma visão sincrônica e, finalmente, traça considerações a respeito de em que consiste a linguagem da política, com base em Harold Lasswell.

Durante esse estudo, até a publicação do livro, diversas conclusões fo0ram tiradas. Em primeiro lugar, observou-se que uma pesquisa na área da linguagem da Política requer conhecimentos que extrapolam a Sociolingüística e penetram no campo da História e da Economia. Essa interdisciplinaridade levou-nos a fazer incursões no domínio da História da Sociedade e a levantar dados biográficos que situassem os verbetes no contexto da história política do país. Esse livro, portanto, a par do estudo da linguagem, é, também, um estudo complementar da História do Brasil, registrando fatos da nossa história recente e focalizando a sociedade brasileira.

Observou-se, ainda, que as inovações, em processo de adoção, invadem o país e atingem outros campos do saber humano. Foi o caso do nhenhenhém, que causou tanto interesse a ponto de passar a ser uma coluna jornalística do O GLOBO, além de ser empregado sempre que se quer dizer que alguém falou algo sem nada dizer. Já até gerou o verbo nhenhar.

Alguns radicais perderam sua autonomia e assumiram ares de prefixo. É o caso de mega-, que se torna hierarquicamente superior a hiper– e a super-, gerando palavras como: megacomissão, megadesvalorização, megafundo, megafusão, megainflação e megarralo. Por outro lado, o prefixo hiper– aparece acentuado, como forma livre, representando a abreviação de hiperinflação.

Quanto aos empréstimos, há uma aceitação geral da grafia dos fonemas importados, até mesmo nos derivados. Marketeiro aparece registrado com k. A palavra show, em showmício, mantém a grafia original com sh, grafia essa que já está tão incorporada à Língua Portuguesa, que é com a maior naturalidade que escrevemos shampoo com sh. Lobby mantém a grafia importada; já lobista e lobístico adquiriram a roupagem da Língua Portuguesa.

Como a língua muda sem cessar, fatos novos sempre surgirão. A linguagem não se esgota. Estudá-la é um permanente renascer. Alguns termos sofrerão processo de desmetaforização e, num futuro próximo, serão dicionarizados; outros cairão no esquecimento. Esse é o dinamismo da linguagem.

Aqui não se esgota a pesquisa. Ao contrário, procuramos incentivar a novas pesquisas nesse âmbito. Mas deixamos registrado um período da história do nosso país.

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