O estudo do vocabulário em atividades
do livro didático de alfabetização

Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UFC e UECE)

Algumas considerações teóricas
e metodológicas sobre o léxico
e o tratamento dado a ele no livro didático

O tratamento dado ao ensino no léxico na escola ainda é algo que deixa muito a desejar. Para constatarmos isto, basta abrirmos alguns livros didáticos, notadamente aqueles destinados á alfabetização, em que se percebe a escassez desse tipo de atividade. A presente pesquisa objetiva analisar como o livro didático Viver, aprender, destinado à alfabetização de adultos trata desta questão.

Conforme Biderman (1998), tradicionalmente, duas disciplinas estudam e descrevem o léxico: a Lexicologia e a Lexicografia. A primeira tem como foco central de estudo a palavra, a categorização lexical e a estruturação do léxico. Os lexicólogos têm voltado seus olhares aos diversos aspectos da formação das palavras e também da criação lexical, sendo que nas últimas décadas os estudiosos do léxico também pesquisaram estatística léxica.

Importante enfatizar a estreita relação entre a Lexicologia e a Semântica, uma vez que não dá para separar a dimensão significativa da palavra e o léxico. Há também uma relação transversal com a Dialetologia, a Etnolingüística, a Psicolingüística e a Neurolingüística.

Já a Lexicografia é a ciência dos dicionários. A prática lexicográfica é muito antiga (elaboração de glossários semelhantes a listas de palavras), porém os primeiros dicionários que apresentam uma razoável exaustividade surgiram após a invenção da imprensa, no século XVI. A prática de descrição do léxico tem sido realizada pela lexicografia, mas ainda carece de métodos mais científicos.

O estudo ora apresentado inscreve-se no campo da Lexicologia e da Lingüística Aplicada, uma vez que iremos analisar as atividades referentes ao léxico presentes no livro didático Viver, aprender, destinado à alfabetização de jovens e adultos. Esclarecemos que o livro analisado não apresenta uma seção específica para atividades do léxico ou do vocabulário como normalmente aparece em outros livros.

Para a análise dos dados, será utilizada a classificação das atividades sistematizadas por Moreira (1996) que, reiteradas vezes, enfatiza a importância de um trabalho pedagógico para ampliar o vocabulário do aluno.

Ampliar o vocabulário do aluno faz parte do processo educativo tanto como fim como meio. Como meio, porque quanto maior o vocabulário, maior a compreensão em leitura. Como fim, porque quanto maior o vocabulário, maior o repertório de conceitos. (MOREIRA, 1996: 45)

Elegemos o livro Viver, aprender devido ao fato de ser este amplamente adotado no estado Piauí, principalmente em Teresina, sendo utilizado em todas as escolas municipais onde funcionam turmas de educação de jovens e adultos.

Consideramos o material didático, quando adequado, importante para a aprendizagem do alfabetizando, uma vez que ele pode ser visto como um sistematizador dos conteúdos, além de, como já explicitamos acima, ser geralmente um dos poucos instrumentos de leitura e escrita do aprendiz. Assim, o livro didático deve ser um dos instrumentos de apoio ao professor, mas, por melhor que este seja, exercícios e atividades podem ser substituídos, alterados ou complementados, conforme os objetivos de aprendizagem pretendidos.

Também é de fundamental importância que o livro didático venha acompanhado de orientações que explicitem os pressupostos teóricos, de bibliografia e de sugestões de leituras que contribuam para a constante formação de professor. É importante, igualmente, que sugira atividades e leituras para os alunos.

Acerca da importância do livro didático para o processo de aprendizagem, concordamos com Monteiro (1995: 15):

Não podemos jamais ser contra o livro e sim contra o mau livro, principalmente porque ele é muitas vezes o único material impresso ao qual o estudante tem acesso em toda sua vida, por ser gratuito e destinado ao alunado carente e também por auxiliar o professor que nele encontra a distribuição dos conteúdos para cada série, o roteiro de atividades do ano letivo e ocupa os alunos grande parte do tempo em classe e em casa, na execução das tarefas propostas. Mas tudo isso não justifica sua baixa qualidade.

Sobre o livro didático específico para Educação de Jovens e Adultos, Vóvio (2001) enfatiza que a necessidade desse tipo de material é imperiosa, pois, além de atender a grupos de baixo poder aquisitivo, normalmente os professores não têm nenhuma formação específica para trabalhar com as especificidades desse alunado.

Diante dos aspectos já explicitados, supomos que esta pesquisa possa contribuir para preencher a lacuna existente quando se fala de Educação de Jovens e Adultos, considerando, particularmente, a pequena importância que normalmente os sistemas de ensino dão para a escolha do material didático e levando em conta que a produção, com qualidade, desse tipo de material para a educação escolar é um dos maiores desafios da prática pedagógica.

Massini-Cagliari (2001), apesar de ter feito sua pesquisa com material didático direcionado a crianças, contribuirá bastante com a pesquisa que estamos nos propondo a realizar. A autora faz uma breve explanação acerca dos alguns conceitos da Lingüística e adentra pelos caminhos da Sociolingüística para explicar os fenômenos de variação no processo de alfabetização. Aspecto bastante interessante nesse item foi a seguinte reflexão sobre a inter-relação entre lingüistas e alfabetizadores

Pode-se dizer que a interação entre profissionais da lingüística e profissionais da alfabetização (principalmente aqueles que efetivamente estão em sala de aula) é uma via de mão-dupla, no sentido em muitos dos conhecimentos construídos pela lingüística podem ser úteis na sala de aula, mas também muitos fatos que ocorrem nas manifestações lingüísticas de interação professor-aluno podem servir para ajudar a elucidar questões a respeito da própria estrutura da língua. (Massini-Cagliari, 2001: 14).

Moreira (1996), que servirá de modelo para a classificação de atividades do livro em análise, sistematiza seu trabalho da seguinte forma: noções sobre competência lexical, formação de palavras, relação de sentido entre palavras, significado e uso das palavras. Apresenta ainda questões concernentes ao ensino dos tópicos anteriormente citados, com classificação de atividades e, por fim, análise de exercícios presentes em livros didáticos.

A respeito da importância do ensino do vocabulário, comungamos com os pressupostos explicitados por Richards (1976), quais sejam:

1. O desenvolvimento do vocabulário se processa continuamente, mesmo na idade adulta.

2. Conhecer uma palavra significa saber o grau de probabilidade de encontrá-la e os tipos de palavras mais prováveis de a ela se associarem.

3. Conhecer uma palavra significa saber suas limitações de uso de acordo com a função e a situação de uso.

4. Conhecer uma palavra significa saber o seu comportamento sintático.

5. Conhecer uma palavra significa conhecer suas formas subjacentes e derivações.

6. Conhecer uma palavra significa saber o seu lugar numa rede de associações com outras palavras da língua.

7. Conhecer uma palavra significa saber o seu valor semântico.

8. Conhecer uma palavra significa conhecer os seus diversos significados – polissemia.

Acrescentamos, ainda, aos postulados acima citados a importância de saber ortografar as palavras. Acreditamos que a retenção de vocábulos relaciona-se diretamente aos propósitos e objetivos do usuário. Supomos que quando mais envolvido estiver o aluno com atividades de vocabulário, mais eficiente será a aprendizagem.

Caracterização
de algumas atividades com o léxico

Como já havíamos enfatizado em momento anterior, apresentamos uma descrição e análise de algumas atividades com o léxico, de acordo com classificação proposta por Moreira (1996). Posteriormente enquadraremos as atividades do livro didático Viver, aprender, conforme a descrição das atividades feitas pela referida pesquisadora.

Atividades de relação semântica

As relações semânticas são todas aquelas que aproximam / relacionam de alguma forma uma palavra com outra.

Os sentidos de uma palavra podem ser diferentes, mas muito próximos entre si – sinonímia. A sinonímia está para as palavras assim como a paráfrase está para as sentenças. Contrária ao processo de sinonímia aparece a antonímia, em que o sentido dos termos são opostos. Há ainda o fato de um mesmo item lexical poder apresentar vários sentidos – polissemia.

Dentro deste grupo de atividades consideremos também aquelas que apresentam as relações de hiponímia, ou seja, uma relação de sentido que pode ser definida em termos da inclusão de sentido de um item no sentido do outro.

Atividades de integração e uso significativo

Para um melhor entendimento da natureza dessas atividades, faz-se necessário a especificação de algumas expressões, tais como as abaixo explicitadas, conforme Moreira (1996):

A – Mapeamento semântico

Tem como propósitos ativar o conhecimento prévio do aluno, relacionado ao tema do (s) texto em estudo. Importante observar que o mapeamento não poderá cobrir todas as palavras do texto, mas somente aquelas relacionadas a um determinado tema. Relevante ainda ressaltar que o professor deve ter uma visão prévia dos principais campos lexicais do tema explorado.

B – Arranjos Hierárquicos

Este tipo de atividade consiste na organização de diferentes itens, segundo grupos ou categorias. O arranjo, ao dispor os conceitos em categorias e subcategorias, permite a visualização de relações de inclusão em diferentes níveis.

C – Arranjos Lineares

Geralmente as palavras, notadamente os adjetivos com afinidade conceitual, apresentam diferentes graus de intensidade e os arranjos lineares são adequados à disposição de uma série de elementos numa progressão crescente, do menos para o mais intenso.

Atividades de indícios contextuais

Normalmente o leitor, para determinar o significado das palavras desconhecidas, lança mão de padrões lingüísticos e sinais. Mesmo sabendo que o aluno deve ser levado a desenvolver estratégias para descobrir o possível significado de palavras não-familiares através do contexto, é importante o professor ter em mente que o alcance do que é revelado pelo contexto depende da experiência passada e do conhecimento do leitor.

Conforme Deighton (1959), um texto bem elaborado geralmente apresenta elementos que ajudam o leitor a aproximar-se do significado de palavras desconhecidas, tais como:

1. Definição;

2. Exemplo;

3. Modificador;

4. Recolocação;

5. Estruturas paralelas;

6. Conectivos;

7. Repetição da palavra-chave;

8. Sinônimos e antônimos;

9. Associação.

Atividades de formação de palavras

Examinar os elementos significativos de uma palavra – radicais, prefixos e sufixos mais comuns – pode ser um procedimento bastante útil ao reconhecimento do significado de itens desconhecidos. Além de ampliar o repertório lexical e o aumento da eficácia comunicativa que disso decorre.

A identificação das partes de palavras que têm significado comum, combinada com o conhecimento que o leitor tem sobre o assunto a que elas se relacionam e ao conhecimento das pistas contextuais, pode aumentar a compreensão leitora.

Atividades com o dicionário

Geralmente usa-se o dicionário em atividades de leitura quando o contexto não é suficiente para revelar o significado de uma palavra, quando a palavra é desconhecida do usuário, quando o significado preciso de uma palavra é exigido para a compreensão do texto, quando o significado conhecido de uma palavra não é compatível com o seu sentido no texto.

Para fazer uso eficiente do dicionário é necessário o desenvolvimento das seguintes habilidades: conhecimento da ordem alfabética, uso de palavras-guia, localização de palavras de entrada para seus derivados, identificação de símbolos fonéticos.

Atividades com sentido conotativo e denotativo

A conotação pode ser considerada como um significado adicional que uma palavra ou expressão carrega além de seu significado conceitual / literal – denotativo. Tratar de conotação / denotação remete a uma questão semelhante, senão complementar: sentido figurado e sentido literal.

Na linguagem figurada há o abandono propositado do sentido corrente das palavras, geralmente objetivando dar mais força e estilo pessoal à expressão.

Classificação e análise das atividades presentes
no livro Viver, aprender

1. Leia os nomes de alunos de uma classe de alfabetização de jovens e adultos. Organize-os em ordem alfabética, de forma como eles habitualmente aparecem na lista de presença. (p. 13)

O exercício acima exposto pode ser considerado como atividade para exercitar uma das habilidades necessárias ao uso do dicionário, que é a ordenação alfabética. Mas esta habilidade aparece como algo secundário.

A atividade acima comentada enquadra-se na classificação de Moreira (1996) 2. 5 – Uso de dicionário – sendo que, como já explicitamos acima, não contempla diretamente atividades de uso do dicionário.

2. Faça três frases usando a palavra gato. Em cada uma use um significado diferente. (p. 70)

3. Agora, faça uma lista com outras palavras ou expressões usadas em diferentes lugares do Brasil. Ao lado de cada uma delas escreva seu significado. (p. 71)

Os dois exercícios acima trabalham a polissemia e o regionalismo, respectivamente.

A primeira habilidade enquadra-se na classificação de Moreira (1996) na atividade 2. 1. Atividades de relação semântica. Este tipo de atividade explora as relações de antonímia, sinonímia e polissemia. E, na atividade, uma palavra é explorada nas suas várias acepções.

Já a atividade 03 não é contemplada na classificação de Moreira, porém Bidermam (1998) deixa bem clara e estreita relação entre a Lexicologia com a Dialetologia e Etnolingüística. E a atividade trata de regionalismo, campo que se relaciona, a meu entender, diretamente com a Dialetologia.

4. No poema lido (O poeta da roça – Patativa do Assaré) há palavras que você não sabe o que significam? Faça uma pesquisa para descobrir o seu significado.

A atividade acima é contemplada no grupo de atividades de uso do dicionário. Os autores do livro didático não explicitam se a pesquisa será feita no dicionário, mas como é uma atividade para ser feita em sala de aula inferimos que o seja.

Percebemos que os autores do livro ora analisado não se preocuparam em fornecer as instruções sistemáticas para o uso mais eficiente e eficaz do dicionário. O que aconteceu em outras atividades, como, por exemplo, na nº 1 (livro 1, p. 13), acima descrita, foi exercitar a ordenação alfabética, que é somente uma das habilidades necessárias ao uso do dicionário.

5. No quadro a seguir você encontrará vários pratos típicos da região Nordeste. Leia-os e agrupe-os como quiser. Dê nome a cada grupo que você formou. (Obs.: No quadro encontram-se carnes, peixes, tipos de feijão, doces e tira-gosto)

Esta atividade pode ser classificada tanto dentro das relacionadas 2. 2. integração e uso significativo, no subgrupo dos arranjos hierárquicos.

A primeira classificação justifica-se pelo fato de o aluno ter de relacionar palavras ou expressões que se ordenam num mesmo campo lexical; já a segunda fundamenta-se no fato de o aluno observar a relação de sentido e também organizar os termos segundo grupos ou categorias.

Considerações finais

Considerando que as atividades de alfabetização devem sempre pautar-se na leitura e produção de textos e sabendo que a compreensão de um texto se dá através da relação entre conhecimentos lingüísticos, sociocognitivos e interacionais e que o reconhecimento instantâneo do vocabulário tem sua contribuição nesse processo, pudemos observar que o livro analisado não apresenta satisfatoriamente atividades que desenvolvam de forma significativa o estudo do léxico.

Um aspecto positivo constatado foi que todas as atividades analisadas relacionavam-se com o núcleo temático da unidade na qual estavam inseridas, já que o livro didático Viver, aprender organiza-se em torno de unidades temáticas e todas as atividades, não só aquelas de ensino do léxico, giravam em torno do tema trabalhado.

Constatamos, ainda, uma baixa ocorrência de atividades de ensino do léxico. Supomos que os autores não tenham privilegiado estas atividades por terem focado seus objetivos principalmente em outras estratégias de compreensão e produção de textos e de apropriação do sistema alfabético.

Referências bibliográficas

BIDERMAN, As ciências do léxico. In: OLIVEIRA, A. M. P. e ISQUERDO, A. N. (Orgs.). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande: UFMS, 1998, p. 11-20.

DEIGHTON, L. C. Vocabulary development in the classroom. New York: Bureau of Publications, Teachers College, Columbia University.

MASSINI-CAGLIARI, Gladis. O texto na alfabetização: coerência e coesão. Campinas: Mercado das Letras, 2001.

MONTEIRO, Rosemeire Selma. O livro didático e o processo de letramento. Dissertação de mestrado. Florianópolis: UFSC, 1995.

MOREIRA, Nadja da Costa Ribeiro. Cadernos de sala de aula – II: O ensino do vocabulário: fundamentos e atividades. Fortaleza: Dep. de Letras Vernáculas/ Núcleo de Estudos da Língua Materna, 1996.

RICHARDS, J. The role of vocabulary teaching. TESOL Quartely 10. Apud: CARTER, R. & McCARTHY, M. Developments in the teaching of vocabulary. In: Carter, R. & McCarthy, m. (Eds.) Vocabulary and language teaching. London: Longmam, 1988, p. 38-59.

VÓVIO, Cláudia Lemos. Viver, aprender: uma experiência de produção de materiais didáticos. In: RIBEIRO, Vera Masagão (org.). Educação de Jovens e Adultos: novos leitores, novas leituras – Campinas: Mercado das Letras, 2001.

–––––– e Mansutti, Maria Amábile (Coord.). Viver, aprender – educação de jovens e adultos. 2ª ed. São Paulo: Global, 2002. (Ação Educativa).

 

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