PARA NÃO DIZER QUE NÃO SE FALOU DE LÉXICO

Maria Emília Barcellos da Silva (UFRJ, UERJ e ABF)

A tradição ocidental judaico-cristã instaurou o mito da dependência feminina em relação ao ser masculino com a narrativa da criação da mulher, a partir de uma costela de Adão, fato que erigiu os contornos de uma sociedade estatuída em bases patriarcais, fortalecidas pelo banimento da contestadora Lilith, figura capaz de esculpir um comportamento diferente daquele arbitrado como compatível com o “sexo frágil”, “segundo sexo”, “sexo submisso” e outros que-tais.

A óptica pela qual cada cultura vê as suas mulheres varia em função dos fatores e das condições civilizatórias que suscitam e modelam condutas e atitudes dos seus planificadores e construtores. Em todas as sociedades, em todos os tempos, a humanidade elaborou uma divisão biológica do trabalho muitas vezes ligada, remota ou proximamente, às diferenças originais que orientam primariamente os indivíduos. É indiscutível que a cultura, a um só tempo, molda e limita os seres que a determinam, autorizando mesmo o que será pensado e sentido pelos parceiros grupais. No entanto, mesmo as diferenças físicas – marcantes e marcadas – são vistas e ponderadas diversamente pelas várias culturas: o que é considerado conduta feminina por uma pode ser havida como masculina por outra: exemplo disso é o fato de, na ocidental, à guisa de proteção, a mulher preceder o homem nos deslocamentos; na oriental e na silvícola, é ele quem vai à frente, concebendo o seu protecionismo por outros entendimentos; em certas comunidades rurais, especialmente as dos habitantes do charco paraguaio, o resguardo pós-parto, por exemplo, é prerrogativa do pai da criança, enquanto a mãe só interrompe a sua lida, seja na lavoura seja na casa, o tempo necessário para dar à luz o seu filho.

A sociedade ocidental rotulou determinadas atitudes como ou masculinas ou femininas, segundo o seguinte quadro de especificações elaborado a partir de depoimentos colhidos em pesquisa realizada durante o segundo semestre de 98 e o primeiro de 99, com cariocas adultos, de ambos os sexos, escolaridade mínima de segundo grau:

 

características masculina

característica femininas

Agressividade

doçura

Autoridade

submissão

Decisão

timidez

Vigor

sensibilidade

Razão

emoção

Independência

dependência

raciocínio analítico

ilogicidade

profundidade reflexiva

superficialidade

Discernimento

intuição

Apesar da datação da recolha dos dados, observa-se que as atitudes arroladas decorrem de visadas bastante ultrapassadas que tentam explicar o mundo como, de há muito, se convencionou ser ele estabelecido, sem atentar para a falta de ressonância com o que se verifica cotidianamente: os rótulos não mais correspondem aos indivíduos que, igualitariamente, constroem a realidade.

Alguns informantes do sexo masculino, de mais de 50 anos, declararam-se saudosos do tempo em que à mulher cabiam três elocuções bastantes e suficientes para justificarem o seu estar-no-mundo: “shiit, galinha; cala a boca, criança e sim senhor, meu marido”.

A experiência e a observação dos fatos reiteram que a Natureza cria seres masculinos e femininos, e os valores culturais recortam a espécie em homens e mulheres, buscando, com isso, administrar, senão minimizar, a ação destas, praticamente, definindo-as, implicitamente, como “deficientes sociais”.

Cabe aqui fazer a distinção necessária entre “gênero” e “sexo”: “gênero” é um produto social aprendido – daí a dicotomia “homem/ mulher”; “sexo” é o equipamento biológico sexual – daí a dicotomia “macho/ fêmea”. A respeito desses entendimentos, manifestaram-se estudiosos de várias áreas do saber, entre eles, Simone de Beauvoir, que enuncia: “nascemos macho e fêmea e tornamo-nos homem e mulher”. Decorre dessa reflexão que, sendo esse um comportamento aprendido, ele bem pode ser modificado segundo os ditames das circunstâncias: tem-se uma Margareth Tatcher (realizando tarefas até então confiadas a homens) e tem-se um Barishnikov (maravilhando o mundo com leveza, graça e ritmo sem prejuízo do seu compromisso com a masculinidade).

A Educação, não a realizada em prol da repetição pura e simples do consabido, mas a calcada em procedimentos reflexivos e criativos, seria a única estratégia capaz de forjar o penhor dessa igualdade – fora dela só se pode esperar o acirramento da miopia das gentes quando se trata de visualizar e praticar o discurso das identidades e das semelhanças.

Sendo a língua inalienável do nicho social em que se desenvolve, pela análise dos usos lingüísticos que dela faz a comunidade que a pratica, chega-se à apreensão das características desse mesmo grupo de falantes. Nesta oportunidade, em que pese aos avanços políticos e científicos registados na história da humanidade, a desigualdade dos papéis masculino e feminino será colhida do aparato lingüístico empregado pelos informantes, como a seguir se descreverá. O corpus que sustenta este estudo foi eliciado, especialmente, do léxico carioca, encaixando expressões recolhidas quer da oralidade espontânea, quer da escrita. Assim sendo, centrou-se o trabalho em dois focos principais – o das regras gramaticais e o dos itens lexicais analisados consoante a teoria e a terminologia cunhadas por Pottier.

A onipresença masculina, fortalecida tanto na administração familiar quanto fora dela, é reiterada e consagrada na estrutura gramatical da língua pelo uso do masculino como forma de gênero não-marcado, tomado, pois, como base do sistema: o feminino é, geralmente, descrito como variação morfológica do masculino. A assunção de mulheres a cargos e funções, antes só confiadas e desempenhadas por homens, de quando em vez sacode estruturas sociais e gramaticais estabelecidas para rotular e expressar as novidades funcionais, e o léxico se expande na condição de inventário aberto a ser preenchido pelas novidades das práticas humanas – ministro, presidente, senador e, até mesmo, professor– adjunto clamam por novas acomodações expressivas para dar conta dos entes que deixam o conforto (nem sempre cômodo) dos emaranhados do lar para se expor às agruras da estruturação da sua cidadania. Esse percurso traçado do recôndito do lar para o lado externo à vida familiar é bem descrito no excerto da poeta gaúcha Suzana Vargas:

não me confino às curvas da cozinha;
deixei as cascas dos tomates e
aprendi a me cortar sozinha.

Ainda nos limites da Morfossintaxe, é alardeado, entre outras prescrições, que o feminino seja indicado pela desinência {a} em oposição à {zero} do masculino; por outro lado, quando se faz necessária a concordância nominal, o gênero e o número do nome regram a escolha a ser operada. No entanto, se estão envolvidos nomes masculinos e femininos reza no discurso normativo que os elementos adjetivais sejam empregados no masculino, desconsiderando o número de entes femininos envolvidos na elocução.

Dentre as classes e subclasses gramaticais que corroboram o intento de esmaecer a figura feminina também nas formas de expressão, assomam os pronomes: por ora tratar-se-á especialmente dos indefinidos referentes à pessoa ninguém, alguém, outrem, que não apresentam marca específica de gênero e, quando presentes nos jogos de concordância, recebem o tratamento dispensado ao masculino. Por outro lado, quando a forma feminina comparece em estruturas que envolvam indefinidos, ela se refere não ao indefinido, mas à pessoa a quem esses pronomes se ligam: “ninguém é culpado”// “e a bruxa perguntou quem é mais bela do que eu?”. Portanto, quando o gênero gramatical não é determinado nem conhecido, a opção é pela forma masculina, a guindada ao status de representante da espécie.

No mesmo rumo de raciocínio, atuam os pronomes pessoais retos, em que o emprego de eles recobre ele + ela; esse procedimento não se restringe ao português: uma análise comparativa comprovaria ser esse um universal lingüístico, como universal é a assunção da mulher como ser destinado à subalternidade na escala das gentes.

Quando os gêneros concorrem numa mesma estrutura e se estiver a operar com adjetivos pospostos, eles são empregados no masculino plural, embora seja tolerada a concordância com o gênero do nome mais próximo, acionando-se, para tanto, a ingerência atrativa.

A preferência pelo masculino é inconteste na expressividade dos falantes, ainda que não se possa ignorar que os homens-masculinos foram os que mais produziram coisas para as sociedades. Essa predominância é de tal ordem que os meninos crescem ouvindo termos que os referendam, enquanto as meninas têm de aprender que, em alguns contextos, são homens e que chamar um homem de “mulher(zinha)” é uma das formas mais seguras de ofendê-lo seja qual for a sua inserção nas sendas da masculinidade, especialmente daquelas que concernem à “macheza” e as suas circunstâncias.

Os dicionários – os prestigiados registros dos usos sociais, as verdadeiras e reverenciadas memórias da sociedade – atestam o tratamento diferenciado com que se qualificam as mulheres: um breve levantamento do que está arrolado na entrada “mulher” revela os preconceitos vigentes na sociedade ao se opor a designação de um ser masculino a um feminino. Tomando por base enunciados do tipo

homem público // mulher pública
homem honesto // mulher honesta,

depreende-se que os adjetivos ligados ao substantivo “homem” não implicitam condutas sexuais como acontece quando se elidem ao núcleo “mulher”; o caso de “honesto” referindo-se à mulher motivou a acepção 4 do verbete no Aurélio: “casto, puro, virtuoso”, bem distante de “íntegro, probo, reto” com que se qualifica o nome masculino. Para resgatar a honorabilidade feminina, parece suficiente elidi-la a um nome masculino, do tipo “a mulher de César” (“a que tinha de ser e parecer honesta” não por ela ou por sua escolha, mas pela contigüidade e convivência com o Imperador). Se ligada ao substantivo “mulher”, toda a expressão adjetiva carrega-se de traços pejorativos, como se constata em

mulher à toa mulher da zona
mulher da comédia mulher de amor mulher do piolho
mulher dama mulher de má nota mulher fatal
mulher da ponta da ru mulher do fado mulher perdida
mulher da rótula mulher do mundo mulher pública
mulher da rua mulher do pala aberto mulher vadia

mulher da vida (à exceção de “mulher do piolho”, todas as lexias ora arroladas são perífrases de “meretriz”).

Bem mais poderia ser dito sobre a mulher numa sociedade em que o julgamento prévio dos indivíduos começa pelas suas características sexuais. Buscou-se, por ora, demonstrar que, na boca do povo, ao expressar a sua visão-de-mundo, o falante declara que, embora perceba a mulher como membro necessário de uma sociedade, ele a opõe à classe de “ser humano” – essa desigualdade básica foi reiterada não só pelas escolhas léxicas com que são designados os entes femininos, como também pelo instigante câmbio de significados que circunscrevem o estar-no-mundo quando o referente é “mulher”.

Das expressões citadas no Aurélio nucleadas em torno da palavra “homem”, 100% apresentam semas positivos; das que têm “mulher” por foco, cerca de 92% referem-se à atividade sexual e portam conotações negativas. Enquanto a lexia “homem” ou se refere à humanidade no seu todo ou ao ser masculino unicamente, “mulher” restringe-se sistematicamente ao ente feminino e, quase sempre, deprecia o ser a que designa, apelando, por isso, não raro, a recursos eufêmicos.

As próprias instituições que definem as condutas desejáveis e esperadas dos pares sociais, quando banalizadas na fala popular, configuram a amplitude da diversidade de tratamento dispensado ao homem e à mulher, estabelecendo a seguinte regra:

um homem com muitas mulheres – poligamia;
uma mulher com muitos homens – poliandria;
um homem com uma só mulher – monotonia”.

A dependência da mulher, estabelecida e cobrada por uma sociedade construída em moldes masculinos, é um aprendizado longo e continuado: desde a infância, os meninos são educados para “serem homens”; as meninas para “serem mocinhas/moças, nunca para “serem mulheres” (o que incorreria numa conotação depreciativa). Nessa conjuntura, tanto se fabrica a feminilidade como a masculinidade, a virilidade, a macheza.

As constatações até aqui propostas não se esgotam nas reflexões de cunho sociológico, antropológico ou mesmo religioso com que se teceu este texto até este ponto; tais assertivas podem ser sonorizadas e ritmadas pelas e nas criações da MPB.

Com base num corpus estruturado por 12 músicas do cancioneiro nacional, compostas no período entre 1940/ 1980, tituladas com nome de mulher, dá-se conta das visadas de mundo e dos estatutos organizadores das hierarquias vivenciais e vivenciadas que plenificam a aventura vital das sociedades.

QUADRO 1

CORPUS

n º de lexias

CORPUS

n° de lexias

CORPUS

n°de lexias

1-Amélia

95

5– Maria
Betânia

127

9-Conceição

66

2-Emília

73

6-Dindi

122

10-Maria

129

3-Aurora

42

7-Helena

63

11-Tieta*

100

4-Marina

84

8-Laura

89

12-Maria-Maria*

113

(* obras não quantificadas nos quadros 2 e 3).

Para prestar contas ao compromisso lingüístico – em verdade, o tracejador da circunstância que ora propicia esta reflexão – distribuíram-se as lexias textuais dos discursos musicais selecionados em categorias morfossintáticas, apresentando tais itens, segundo a freqüência absoluta ditada pela relação com a totalidade de cada canção.

As escolhas morfossintáticas das letras das músicas foram avaliadas em percentuais das médias das freqüências absolutas, ocorrentes em cada classe considerada.

As hipóteses de natureza extralingüística foram suscitadas pela seleção de núcleos preenchidos por nomes marcados pelo feminino.

As composições selecionadas permitiram retratar o imaginário nacional, que se sustenta, mais claramente nas classes média e baixa – e mais veladamente na classe alta –, construindo uma concepção de modelo feminino que, surpreendentemente pouco mudou nesse quase meio século de corte temporal proposto.

As criações aqui referidas deram conta da constante disputa entre o desejo e a interdição que não se desfez nem se atenuou mesmo quando posta na pena de um Vinicius de Morais ou de um Chico Buarque, haja vista, respectivamente, as composições “Minha namorada” e “Geni e o Zepelin”: na primeira, para “ser a amada” do poeta, ele exigia o cumprimento de um decálogo comportamental que ia desde o que deveria ser pensado até o modo como a mulher deveria falar para poder ocupar bem mais uma função do que um estado relacional de base afetiva; na segunda, a personagem, “cujo corpo era dos errantes, dos cegos e dos retirantes e de quem não tinha mais nada” e, por isso, era discriminada por todos, foi alvo da insistência dos cidadãos modelares que, “em romaria pela cidade e pelo bispo de olhos vermelhos”, suplicavam para que Geni satisfizesse os desejos do alienígena; não obstante, cumprida a missão de serenar os ímpetos do guerreiro, volta ela a ser escorraçada pelos moradores, por causa da mesma conduta com a que salvara a cidade, conduta essa que transitava do moral para o imoral, conforme a necessidade dos privilegiados.

À mulher coube por acordo com o qual ela mesma, por vezes, pactua – sem maiores discussões –, papéis situados, em pólos opostos de uma mesma linha comportamental: num extremo, instala-se como a mãe provedora, santa (tão mais santa quanto mais distante no tempo e no espaço); avançando o ponto de observação nesse mesmo continuum, encontra-se a companheira, a cúmplice, mais raramente a partner sexual, depois a transgressora do consuetudo – esta numa vizinhança bastante contígua à “pecadora”, fonte de todo o mal do homem e, por extensão, da perversão do mundo.

Na voz do que se concebeu como música popular brasileira distribuída por nada menos do que quatro décadas, a figura da mulher é freqüentemente louvada pela doação total de si mesma e pela anulação que fizer de todas as suas competências, principalmente, se forem aquelas que capacitam a realização de um indivíduo mentalmente bem-dotado: tão mais louvadas quanto mais desistirem de tudo em prol do outro, seja ele filho, marido, irmão, chefe ou grupo familiar.

Dos levantamentos realizados e da segmentação dos termos ocorrentes nas letras citadas, depreendeu-se que

a) a predominância dos substantivos concretos ante as demais subclasses, despontando a relevância emprestada ao campo físico em que a mulher se desloca em detrimento da mínima abstração que a ela possa ser relacionada;

b) a surpreendente cotação mínima dos adjetivos na escolha vocabular, significativamente relacionados a dotes femininos predominantemente físicos (“morena, linda, igual a, sincera”); comparecem em número inferior aos atribuídos aos homens-personagens que, então, se referem a estados d’alma (“tristonho, cansado, desesperado, estranho, ceguinho, juntinho, coitadinho, pobre”) e a coisas (“refrigerado, bom, grande, desfeito”); não raro a casa predicativa é ocupada pelo substantivo “mulher”, que transita da função de substantivo para a de adjetivo, qualificando nada mais nada menos do que o indefinido não marcado “aquilo” ou o substantivo “coisa”: “aquilo sim é que era mulher”/”você é a coisa mais linda”;

c) o lugar ocupado pelos predicados verbais, nominais ou verbos-nominais em que pese à presença do verbo “ser”. Quando se ligam a sujeitos de núcleo marcado pelo feminino, os predicados, em sua maioria, circunscrevem-se aos limites e às intimidades do lar (lavar, cozinhar, fazer-me carinho); quando referendam atitudes intelectivas, as ações complementam-se com objetos cujo núcleo se insere na área do prosaico e do vulgar (“pensar em luxo e riqueza, não saber o que é consciência, sonhar com que o morro não tem, fazer exigências, achar bonito não ter o que comer”); as ações indicativas de posse sempre visam a itens da área do consumo, e as que podem apontar ascensão social implicitam que esta é sempre obtida pelo concurso direto do homem (“tudo que você vê você quer/ teria um lindo apartamento com porteiro e elevador, teria madame antes do nome/você não arranjava outro igual”); os verbos que denotam afeto, sistematicamente, apresentam a mulher como sujeito ativo e, no máximo, é-lhe concedido o espaço da casa sintática reservada aos objetos – na sua maioria “diretos” –, preconizando uma possível apassivação (“deixa que eu te adore/ o bem que eu te quero”);

d) a predominância dos advérbios de tempo e de lugar, e o de negação dissemina-se praticamente em todos os elementos constituintes do corpus;

e) a supremacia do emprego de pronomes os possessivos, sendo preponderantes os de primeira pessoa; quando diante de pronome de primeira pessoa, sempre se refere ao homem-personagem;

f) coerentemente ao item e), os pronomes pessoais retos e oblíquos são expressivamente de primeira pessoa, muito embora o título das composições permitisse esperar a farta ocorrência da segunda pessoa;

g) das conjunções, a mais presente é a aditiva “e”, garantindo a continuidade do discurso poético;

h) apesar de estudos como os do saudoso Professor Antônio Geraldo da Cunha (da “Casa de Rui Barbosa”) terem apontado o artigo “a” como o item de maior incidência na Língua Portuguesa, esse item alcançou apenas o rang 7 desta seleção ainda que predominassem largamente sobre os indefinidos;

i) as interjeições aqui consideradas à parte em virtude da natureza marcadamente emotiva do corpus selecionado – surpreendemente superaram os substantivos abstratos em quantificação, ainda que se reconheça o peso da contribuição interjectiva ocorrente em “Aurora”;

j) os elementos expletivos foram palidamente representados neste levantamento, ocupando o último rang na cotação geral.

Com base nos dados aqui levantados, pode-se afirmar que, apesar dos esforços em prol da igualdade que marcam os nossos dias, a mulher ainda tem uma longa estrada a percorrer para se livrar dos grilhões que lhe foram impostos por milênios de servidão e mitificação de tabus, em especial os referentes ao seu poder decisório e a sua sexualidade. Também se pode cogitar que, quando rompe as fronteiras que lhes são consentidas, a mulher se revela, via de regra, uma pessoa que dificilmente disfarça a sua revolta atávica, tornando-se árida de afeto: distancia-se definitivamente – ou quase – das oportunidades de gozo da sua sensualidade e cerceia vigorosamente o seu erotismo. Tais constatações possibilitam cogitar que a alardeada “mulher de verdade” assim o seria quando se tornasse intangível às carícias de um par, contrariando devaneios e despreendimentos. No caso específico do arquétipo “Amélia”, que, de certa forma, instiga esta reflexão sobre o ideário feminino, reitere-se o fato de que ela nunca é presentificada, mas só referida no pretérito (“era, passava, gostava, sabia”); cabe indagar se ela não se terá liberado ou libertado em vão, uma vez que pouco se pode esperar de alguém cujo padrão comportamental é marcado pela conformidade; faz-se legítimo pensar que ela apenas deva ter “mudado de dono”.

A “Amélia” da canção é hiperbólica apesar de cotidiana; consegue ser nem rainha nem escrava, e a sua maior virtude inscreve-se num possível masoquismo, cuja exacerbação tem por lema “achar bonito não ter o que comer” e conseguir “alegrar-se” com a fome que lhe bate à porta; no entanto cabe questionar-se a que tipo de fome Amélia se submete e qual teria sido a carência que a levou a “desertar”: fome de quê? quanto terá ela resistido à carência física tão convenientemente louvada pelo companheiro simplista? qual terá sido a “gota d’água” para que ela se evadisse? quanto teria pesado para a sua saturação o conceito exarado pelo amante no que se refere, por exemplo, ao que seja “ter consciência?” Onde estariam traçadas as fronteiras famélicas de “Amélia-lembrança”? E mais, onde estaria ela agora, heroína ausente e santificada, já que o tempo presente do amante é preenchido pela “substituta” que se inscreve no grupo das que suprem as suas carências com a exploração desmedida e compulsiva do trabalho do companheiro? Se Amélia é a “mulher de verdade”, por oposição, a sua sucessora é, então, a “mulher de mentira”, mas é esta que está viva e presente, satisfazendo-se no exercício de teúda-e-manteúda do lacrimoso parceiro, na medida em que “tudo que vê (ela) quer”: se a consagrada “mulher de verdade” não preenche as exigências do ego-hic-et-nunc com que se estabelece uma ação presente, tem-se de sucumbir ao fato de que o ideal de mulher, para se sustentar, tem de acionar uma inversão no eixo verdade-mentira. E mais: se Amélia confessadamente não “tinha nenhuma vaidade” (do latim, vanitas, de vanus”, “vazio”) era também – e por isso mesmo – um ser incompleto, longe, portanto, da perfeição acalentada pelo discurso masculino.

A radicalização dos papéis femininos expressos pelos dados coligidos dá conta da fantasia que relata a luta sem guarida entre o desejo físico e o constrangimento socialmente definido das mulheres que parece se dividirem, contraditoriamente, ao se realizarem de acordo com os seus próprios desígnios, sem pré-julgamento do que é conveniente ou permitido, sem, por se autodeterminarem, ter de ocupar irreversivelmente ou o nicho do lar ou o reduto do prostíbulo – não deixando esquecer que, redoma ou lupanar, esses espaços resultam da mensuração masculina. Em “Tieta”, por exemplo, em que se poderia suspeitar de uma aparente ruptura dos padrões conservadores (uma vez que dela parece advirem as decisões de “vir com calor, sem pudor, p’ra tirar nosso juízo”, rompendo-se assim o estatuto preestabelecido pelo qual não cabe à mulher a iniciativa nem da escolha da parceria nem do jogo amoroso), a uma leitura mais atenta revela-se, em verdade, que a personagem feminina nada mais faz do que atender ao chamado masculino, circunscrevendo-se, desse modo, num dos pólos da linha de desempenho consentido já aludido.

Com base no levantamento lexicográfico, morfossintático e semântico propiciado pelos data do corpus, pode-se apontar que o contraponto da ação sistematicamente atribuída à mulher inventada, a partir do ideário coletivo, explicita-se em “Maria-Maria”, posto que a personagem se instaura, sem submissão, por parâmetros concernentes ao ser humano, sem limitações traçadas pelo enquadramento biológico: “Maria-Maria” se define a partir dela mesma, pela força do que propõe, denuncia, sustenta. Os adjetivos a ela atribuídos são funcionais; a casa predicativa é preenchida por substantivos abstratos em sua totalidade: Maria é “dom, magia, força, som, cor, suor, dose mais forte/mais lenta”; os verbos nocionais em que ela atua como sujeito visam aos princípios fundamentais da vida: “merece viver e amar, ri quando deve chorar, agüenta, tem raça, tem gana, mistura dor e alegria”. Em “Maria-Maria”, louva-se o ente construtor do seu espaço as suas próprias custas, o que conquistou, com seu esforço, o direito de preenchê-lo como bem entendesse, livre dos estereótipos sociais. “Maria-Maria” atua como o ato inaugural de uma nova visão especular do papel reservado às mulheres na sociedade moderna.

Pelo exposto e comprovado, tanto as amélias quanto as suas contrapartidas obscurecem o verdadeiro ser-mulher e revelam os recônditos dos processos psíquicos que limitam a trajetória das criaturas que, sufocadas pelo desejo e pela ânsia de saciar a sua fome quer física quer anímica, acabam impedidas de contemplar e de partilhar o incomparável espetáculo da Vida.

Bem mais poderia ser dito – reitera-se – sobre a mulher que, quando posta na boca do povo, revela o pensamento de uma cultura, os seus condicionamentos, estereótipos, a moral imposta, a desigualdade dos papéis masculinos e femininos, enfim a duplicidade de valores – social e sexual – com que se escreve e direciona a história das gentes.

Por fim, respeitados os limites de uma comunicação e à guisa de conclusão, tem-se a declarar que, apesar dos avanços realizados na arte de conviver, as mulheres, assim ensinadas desde a mais tenra infância, parece estarem fadadas, por mais algumas gerações, a beijar sapos para depois engoli-los transmudados em príncipes – não obrigatoriamente nessa ordem –, tal como se pode depreender da quadrinha declamada, sem culpa e com muito dengo, por uma informante da pesquisa, 18 anos, moradora da zona sul do Rio de Janeiro:

Os homens são uns diabos,
não [há] mulher que o negue,
mas todas estão à espera
de um diabo que as carregue.

 

 

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