SABOR-SABER
A PRESENÇA POLÍTICO-IDEOLÓGICA
NA ESCOLHA DOS TERMOS
DA CULINÁRIA MOÇAMBICANA

Fátima Helena Azevedo de Oliveira (UNESA)

Introdução

Desde tempos remotos, os homens criam e utilizam palavras para expressar e denominar conceitos, objetos e processos dos diferentes campos do conhecimento especializado. Essa produtividade lingüística, de feição terminológica, ocorre notadamente no universo das ciências, das técnicas e das distintas atividades de trabalho profissional. Se o emprego de termos técnico-científicos já é antigo, muito recente é o surgimento de um campo de estudos dedicado à terminologia, o qual começa a ser estabelecido a partir da segunda metade do século XX. (KRIEGER & FINATO, 2004: 16)

Esta é uma pesquisa que tem como base teórica a Terminologia, “campo de conhecimento que toma o léxico especializado como seu objeto principal de interesse” (KRIEGER & FINATTO:2004: 13). A Semântica é aqui utilizada através das suas relações com o estudo do termo. Foi agregada a este cenário terminológico e semântico a história cultural, política e econômica de um país africano, Moçambique, cuja oficial é a portuguesa.

A República de Moçambique situa-se na parte austral do continente africano. Moçambique ocupa uma superfície de 799. 380 km2, consoante o Relatório do Banco Mundial, em 1990. Estende-se ao longo do Oceano Índico, cercado de países anglófonos como a África do Sul, Zimbabwe, Swazilândia, Tanzânia, Malawi. A região moçambicana obteve independência política de Portugal em 1975, após longa guerra dirigida por Samora Moisés Machel. Engajado na ideologia de libertar o povo do jugo de colonização dos portugueses, Machel comandava, ao lado de Eduardo Xivambo Mondlane, o grupo de guerrilheiros designado por Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Mondlane foi o primeiro presidente da FRELIMO. Era funcionário das Nações Unidas, professor universitário, Doutor em Sociologia. Após a morte de Mondlane, Samora Moisés Machel assumiu o posto de Presidente do grupo e, com a independência, foi designado Presidente do país.

Por questões de política lingüística, o Governo e o Partido FRELIMO escolheram como língua oficial o português.

O novo governo deveria não só organizar o funcionamento da administração, mas também garantir a produção e os mecanismos para manter uma economia operacional. Utilizando a experiência das “zonas liberadas” pela guerra contra os portugueses, e guiado por programa de transformação socialista, o Governo traçou estratégias para mudar a estrutura econômica sociopolítica e educacional do país. As mudanças preconizadas passaram pelo controle estatal nas zonas rurais e por uma política de intervenção direta nos setores econômicos, educacionais, sociais e editoriais.

No período da colonização portuguesa, havia em Moçambique dois grupos étnicos que se excluíam: o dos europeus e o dos africanos. Aqueles tinham acesso aos bens de consumo de âmbito nacional e internacional. Sua alimentação exigia a importação contínua de produtos. Estes, negros e mestiços (mistos), viviam abaixo da linha de pobreza, explorados em todos os aspectos. Produziam, muitas vezes sem remuneração, para atender aos interesses da classe dominante. A alimentação desse grupo era constituída de produtos primários como raízes, folhas, farinhas, caça, pesca e frutas regionais (litche, massala, entre outras). Portanto, os gostos, sabores e preferências eram excludentes, como a própria sociedade o era.

Após a independência, o governo empenhou-se em divulgar o gênero de texto receitas culinária, através da Organização da Mulher Moçambicana. Tal organização foi idealizada e dirigida por homens do Partido Frelimo, tendo as mulheres como atuantes passivas. Os primeiros textos culinários de Moçambique tomavam por base pratos lusos, adaptando-os semanticamente ou substituindo termos em português por termos de línguas africanas de Moçambique. A estratégia para confecção do alimento era recuperar os usos e costumes dos moçambicanos, ainda que se tornasse evidente o uso de produtos importados, como o caldo de carne “Maggi”, “Maizena”, “pó Royal” como se pode notar na receita abaixo:

Biscoitos de maizena
1 lata de leite
2 ovos
600 g de Maisena
1 colher de chá de pó Royal

Amassam-se um pouco todos os ingredientes. Formam-se bolinhas e marcam-se com um garfo algumas listas e vai ao forno (Organização, 1986: 46)

É de notar que esta receita não se revela como africana. Quanto ao aspecto ortográfico, o termo “maisena” ora é grafado com a letra “z”, como se nota no título e ora com a letra “s”. Além dos aspectos ortográfico e terminológico, de certo modo, os procedimentos para confeccionar o “biscoito” pertencem a uma cultura tecnológica que artificializa o contato com a cozinha, uma vez que a farinha e o fermento são industrializados, anulando uma etapa do uso e costume dos moçambicanos, a confecção da própria farinha no pilão e a fermentação natural do alimento.

Em contrapartida, os procedimentos indicados no texto culinário que segue deixam transparecer hábitos comuns entre os moçambicanos.

Bolo de farinha de mandioca
500 g de mandioca seca
1 coco
1/2 chávena de açúcar

Pila-se mandioca, obtendo-se uma farinha muito fina, num pilão limpo e seco. Mistura-se com o coco ralado, o açúcar e água fervida o suficiente para formar um bolo.

Numa panela de barro untada de manteiga, óleo ou mesmo de leite de coco, põe-se o bolo obtido e vai a cozer num fogão de carvão em brasa, pondo outras brasas por cima da tampa. Coze-se cerca de 1 hora (Organização, 1986: 46).

Tradicionalmente, o moçambicano dedica longas horas do dia no processo de preparação do alimento. A mandioca e os grãos devem ser pilados para aquisição da farinha, que será utilizada na confecção de variados pratos. Sobre a arte de cozinhar, registra Junod “Não há exagero em se falar de uma “arte culinária” dos moçambicanos: eles dedicam grandes cuidados à cozinha. (1974: 35)

Em Moçambique, uma mulher que saiba cozinhar bem é chamada em tsonga áua hissa, isto é, “ela queima”. Não que ela deixe o alimento estorricar; a expressão significa alguma coisa como “consagrada”. O saber cozinhar leva ao casamento mais rápido, e esse é um valor reverenciado na região.

Cozinhar, em Moçambique, é uma tarefa exercida por mulheres. Por questões culturais e educacionais, não havia entre as moçambicanas o hábito de registrar por escrito os procedimentos para elaborar um prato ou mesmo o de consultar texto escrito para conferir ingredientes e processos de confecção do alimento. Pesos e medidas variavam de pessoa para pessoa. A transmissão do conhecimento era realizada através da oralidade. Para preparar o alimento ou provar, usava-se a mão; a quantidade a ser usada, era a que fosse considerada suficiente pelo usuário (que baste). A rigor, trata-se de uma forma individual de preparar o alimento. Vale dizer que a informação não era organizada, restringindo as condições de divulgação.

A independência do país abriu capítulo para entrada da cozinha tradicional nos meios a que jamais chegaria através da oralidade. Diante disso, adquire relevância a terminologia a ser veiculada. Ao passo que se desmistificaram cardápios lusitanos, introduzindo-os, por escrito, nos lares moçambicanos de cidades capitais como: Maputo (capital de Maputo); Sofala (capital da Beira), Nampula (capital de Nampula); Zambézia (capital de Quelimane), entre outras, realizou-se efetiva inserção dos termos africanos em receitas portuguesas.

Se por um lado, a estratégia do Governo de adaptar procedimentos culinários aproximava o povo do processo de alfabetização, por outro; a possibilidade de combinar termos das línguas africanas de Moçambique para construir frases mais próximas do povo instaurava uma situação discursiva autêntica. Aliás, no caso do texto culinário, essa situação discursiva se iniciava na capa do livro, na ilustração, nas cores, no titulo do prato, na seleção lexical. Para ilustrar, apresenta-se receita moçambicana – “caril de peixe (tocossado):

Caril de peixe (tocossado)

Corta-se o peixe às postas e deita-se numa panela com a cebola cortada às rodelas, o piripiri, as mangas secas, o tomate e o óleo.

Deita-se 3 chávenas de água e leva-se ao lume durante cerca de 20 minutos. Serve-se com arroz de coco ou batata cozida (Organização, 1981: 17).

O conjunto terminológico que interessa no texto acima é “tocossado”, “caril”, “manga seca” e “piripiri”. O termo “tocossado” pertence ao universo cultural e lingüístico moçambicano, conferindo nome ao prato confeccionado com peixe e molho. Existe em Moçambique atração por alimentos gordurosos e condimentados, daí o uso de manga verde desidratada, da “pimenta” (piripiri), do coco e do amendoim, acentuando o sabor da iguaria. Na receita citada, o termo “piripiri ou piri-piri remete ao contexto gastronômico do homem do povo. É uma cultura ancestral, o alimento sendo saboreado delicadamente, usando as mãos para leva-lo à boca, o condimento relaxando os nervos. É um ato poético e filosófico, que se confirma na escrita através da seleção lexical. Alguns exemplos: “Caril de feijão-nhemba (dale)”; “Milho (tihove)”, “Tixota (massa de milho), “Molho piri-piri”.

Em Moçambique, a alimentação tem, além da função de cuidar e de restaurar a de recuperar a cultura. Nesta direção, nas obras moçambicanas destinadas a veicular o gênero de texto receitas culinárias não se buscava controlar o sentido do texto, procurava-se interagir com um leitor genérico e abstrato, possivelmente estrangeiro, apresentando um conjunto de receitas representativas de culturas diversas (de Moçambique, de Portugal, do Paraguai), sem separá-las. Tal fato é possível depreender nos seguintes textos:

MILHO (TIHOVE)
Milho q. b.
Amendoim grosso q. b.
Camarão seco q. b.

Cozer o milho pilado (para tirar o farelo) até ficar mole (às vezes 1 dia inteiro). Quando cozido escolher amendoim grosso inteiro e deitar. Aplicar amendoim pilado e camarão seco pilado e deixar cozer. Pôr sal. Mexer bem com uma colher de pau, e está pronto a servir (ROWAN, 1998).

CANJA DE GALINHA
Galinha q. b.
Arroz q. b.
Folhas de hortelã q. b.
Azeite
4 dentes de alho

Deita-se num tacho com água meia galinha ou mais, conforme o número de pessoas; quando a galinha estiver quase cozida, deita-se um pouco de arroz e algumas folhas de hortelã e um fio de azeite; se não tiver azeite põe-se dois cubos de caldo de galinha “Maggi”, cortam-se dois ou 4 dentes de alho bem finos; deixa-se apurar. Quando o arroz estiver cozido e bem apurado, está pronta a servir (ORGANIZAÇÃO, 1981).

SOPA AFRICANA
4 litros de água
Tomate ou massa de tomate
3 Cebolas médias
4 dentes de alho (grande)
e batatas médias
1/2 kg de carne de vaca com osso
3 folhas de couve médias
Sal ao seu gosto
Uma mão-cheia de massa cotovelo
4 colheres de sopa cheia de arroz
2 colheres de sopa de óleo.

Ponha uma panela ao lume com água e o sal e deixe ferver. Deite a carne depois de lavada, a batata descascada, os alhos cortados finos e deixe ferver mais um pouco (...) (ORGANIZAÇÃO, 1981).

SOPA PARAGUAIA
1/2 kg de farinha de milho
2 ovos
3/4 de leite
1 cebola
150 g de margarina ou manteiga
sal fino
150 g de queijo

Refogar a cebola picada com a margarina, juntar a farinha de milho, os ovos, o leite e o sal. Mexer. Juntar o queijo cortado em bocadinhos e mexer. Acrescentar o sal. Deixe ficar quase líquido.

Pôr num molde untado com manteiga e cozer no forno (ORGANIZAÇÃO, 1981).

O que estas receitas demonstram é que há forte tendência a adaptar textos. Além desse fato, o alimento torna-se, um prazer que retoma a memória através do cheiro e do sabor. Motiva a conversa, reúne os amigos. Os componentes terminológicos auxiliam na apreensão da natureza e funcionamento do sentido e da cultura.

CONCLUSÃO

O tema discutido no decorrer desta pesquisa revela duas preocupações, por um lado apresentar os fundamentos teóricos da Terminologia, pressupostos adotados ao longo das reflexões, por outro, contribuir para a divulgação da cultura moçambicana, inscrita no gênero de texto receitas culinárias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JUNOD, Henrique A. Usos e costumes dos bantos. 2a ed. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, tomo I: Vida Social, 1974.

KRIEGER, Maria da Graça e FINATTO, Maria José Bocorny. Introdução à terminologia: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2004.

ORGANIZAÇÃO da Mulher Moçambica. As nossas receitas. Vol. 1, Maputo, 1986.

––––––. As nossas receitas. Vol. 1, Maputo: 1981.

ROWAN, Marielle (Coord.). Hoje temos – receitas moçambicanas. Maputo: Minerva Central, 1998.

 

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