A ATUALIDADE DE MANUEL SAID ALI
A SINTAXE DO PRONOME SE E A COGNIÇÃO

Angelina Aparecida de Pina (UFRJ)

Introdução

Tradicionalmente, as regras sintáticas prescritas pelas gramáticas normativas do português se encontram em flagrante conflito com a realidade lingüística brasileira. Tal é caso da sintaxe do pronome se. Os gramáticos insistentemente classificam o pronome se, na sentença “aluga-se quarto”, como partícula apassivadora e, na sentença “precisa-se de um empregado”, como índice de indeterminação do sujeito, prescrevendo para a primeira a concordância do verbo com o substantivo: “alugam-se quartos”.

Considerado o maior sintaticista da língua portuguesa, Manuel Said Ali é responsável por um dos trabalhos mais importantes a favor da tese de que não existe se passivo e que, em sentenças como “aluga-se quartos”, o pronome se indica indeterminação.

Suas investigações, que datam do início do século XX, encontram respaldo no aporte teórico cognitivista desenvolvido a partir da segunda metade da década de 90.

As investigações de Said Ali

Em seu livro Dificuldades da Língua Portuguêsa (1957), cuja primeira edição é de 1908, Said Ali reconhece a sintaxe do pronome se como um problema de difícil solução. O eminente filólogo começa por apontar a incongruência das regras sintáticas fixadas pelas gramáticas tradicionais. Em “compra-se o palácio”, as gramáticas apontariam o palácio como sujeito, mas, em “morre-se de fome”, seria inadmissível como sujeito um substantivo regido de preposição (de fome), o que forçaria uma “série de subterfúgios” (p. 92).

Procedendo a uma “abstração da gramática”, e adotando uma análise psicológica, Said Ali argumenta que o pronome se ocupa o lugar de sujeito e este só não viria no início da oração porque “sua condição de vocábulo átono, enclítico, dificilmente lho permitiria.” (p. 93) Ele acrescenta que é comum as línguas românicas (ex. francês, italiano, etc.) atribuírem caso nominativo a pronomes oblíquos.

Para ele, está claro que, em “compra-se o palácio” e “morre-se de fome”, a ação é psicologicamente atribuída a um ente humano desconhecido ou que não convém nomear (pronome se), pois trazem à consciência a idéia de alguém que compra, de alguém que morre. Sendo assim, o pronome se exerce uma função “psicológica” de agente indeterminado.

Como observa o autor, nessas sentenças, o verbo e o substantivo podem variar até o infinito. Mas, “nosso espírito perceberá como constante (...) a pessoa inominada” que realiza a ação. (p. 94)

Analisando sentenças como “precisa-se de um criado”, Said Ali assinala que o termo regido de preposição não pode ser sujeito e, portanto, tem papel de regímen.

Note-se, ainda, que o substantivo não ocupa o primeiro lugar da oração, mas sim o verbo construído com o reflexivo se (em sua terminologia). Portanto, em sentenças como “compra-se o palácio” e “precisa-se de um criado”, desde o dia em que a posição do substantivo fixou-se depois do verbo, fixou-se também a sua função de objeto.

A explicação para isso traduz-se melhor nas palavras do próprio Said Ali:

Ações praticadas por seres humanos não podiam ser enunciadas pela linguagem sem a indicação do agente. Quando, porém, o agente humano era desconhecido ou não convinha mencioná-lo, a linguagem servia-se deste expediente: personalizava o objeto se era ente inanimado, e fingia-o a praticar a ação sobre si mesmo. Certa mercadoria, por exemplo, devia ser vendida, ignorando-se o vendedor; dizia-se simplesmente: tal mercadoria vende-se a si própria.

Pouco a pouco, porém, a mera forma reflexa em casos deste gênero começou a sugerir a idéia de um agente humano indeterminado. Não foi preciso alterar profundamente o enunciado; mas o substantivo, que até então figurava na categoria de sujeito, teve de abandonar este posto e passar para o lugar de objeto, que já agora lhe era designado. O pensamento não comportava dois agentes; a ação de vender não podia ser praticada por certa pessoa e, ao mesmo tempo, pela própria coisa. (p. 96)

Como conseqüência natural da transformação do sujeito em objeto, o verbo não precisa mais concordar com o substantivo, de modo que tenderá a ser utilizado no singular mesmo que o substantivo esteja no plural. Todavia, ainda hoje, muitos gramáticos e escritores insistem na “concordância com o objeto, onde não a estorva a presença de uma preposição” (p. 98).

Quanto à suposta influência do on francês em construções como “vende-se casas” e “aluga-se carros”, Said Ali se mostra irônico ao afirmar que

Nossos pintores de taboletas e letreiros não se recrutam de entre os conhecedores do idioma de ZOLA e DAUDET; alguns deles - fato muito curioso, mas não menos provado - ainda soletram com esforço as próprias palavras da língua nacional. (p. 100)

Segundo o autor, nesses casos, o povo não compreende porque o verbo deve concordar com o objeto. Esse on francês tornou-se “o bode expiatório da pouca sagacidade dos gramáticos.” (p. 100)

Said Ali sustenta, ainda, que a forma reflexiva não se identifica com a voz passiva. Confrontando as sentenças “aluga-se esta casa” e “esta casa é alugada”, o autor explica que essas duas formas expressam sentidos diferentes e incompatíveis. A primeira atrairia pessoas interessadas em alugar a casa, a segunda admitiria que a casa já se encontra ocupada por inquilinos. Isso prova que “substituir não é analisar” (p. 103). Além disso, a substituição gera sentidos implausíveis se o verbo não for transitivo direto: “foge-se” seria “.... é fugido”, deixando uma lacuna para ser completada com um sujeito, que nem a lingüística, a psicologia, a gramática e o senso comum são capazes de responder.

Diante dessa realidade lingüística brasileira, o gramático Celso Pedro Luft (1976), adotando o ponto de vista de Said Ali, afirma que a concordância em casos como “vendem-se casas” decorre de “mera servidão gramatical”. (p. 133)

Em “O colocador de pronomes”, cuja escrita iniciou-se em 1917, mas publicado em 1924, Monteiro Lobato faz uma crítica bem-humorada ao purismo da linguagem predominante no começo do século passado. Esse “conto gramatical” narra a história de Aldrovando Cantagalo, o mártir da gramática. Certo dia, Aldrovando exige que o ferreiro da esquina reforme, “em nome do asseio gramatical”, sua tabuleta, que diz: Ferra-se cavalos. Leia-se a seguinte passagem do texto:

- Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Está acaso rachada?

- Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem, ali, os dizeres à sã gramaticalidade. (...)

- Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é “cavalos”. (...)

- O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” - “ferram-se cavalos!” (...)

- Vossa Senhoria me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. (...)

Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.

- Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!...

Sendo assim, o ferreiro coloca-se como o sujeito da sentença “ferra-se cavalos”, como o havia descrito Said Ali.

O aporte teórico cognitivista

Em 1995, a Gramática das Construções, de base cognitivista, é inaugurada por Adele Goldberg. Essa teoria lingüística preocupa-se com a natureza da competência lingüística do falante, analisando a integração entre estruturas lingüísticas e processos cognitivos, sendo, portanto, centrada no ser humano.

Na teoria construcional, a unidade básica é a construção gramatical, definida como uma correspondência entre parâmetros de forma (incluindo informações lexicais, sintáticas e morfofonológicas) e parâmetros de significado (incluindo informações semânticas e pragmáticas).

Portanto, morfemas, palavras, sintagmas e sentenças são construções, uma vez que são caracterizados por uma forma pareada a um significado e diferem apenas quanto à complexidade interna.

Tipicamente, construções sentenciais instanciam diversas construções simultaneamente. Por exemplo, a sentença “Aline enviou uma carta para Pedro” instancia a construção sujeito-predicado, a construção bitransitiva, a construção morfológica de pretérito (envi-ou) e seis construções morfológicas simples, correspondendo a cada palavra da sentença.

Em sua versão da Gramática das Construções, Goldberg descreve sentenças simples e básicas do inglês. Sua tese central é a de que sentenças básicas são construções, na medida em que correspondem a pareamentos forma-significado que existem independentemente dos verbos instanciados. Em outras palavras, Goldberg afirma que as construções sentenciais têm significado, independentemente das palavras que compõem a sentença.

Cada construção sentencial codifica como seu sentido central uma cena básica da experiência humana, por exemplo, alguém transferindo algo a alguém, alguém fazendo algo mover-se, alguém modificando o estado de algo, algo movendo-se, alguém experienciando algo etc.

Tendo em vista a codificação de cenas experienciais, Goldberg distingue cinco construções sentenciais básicas:

1. Construção bitransitiva

Significado básico: X CAUSA Y RECEBER Z

Configuração sintática: Sujeito + Verbo + Objeto1 + Objeto2

Exemplo: “Aline enviou uma carta para Pedro

2. Construção de movimento causado

Significado básico: X CAUSA Y MOVER-SE PARA Z

Configuração sintática: Sujeito + Verbo + Objeto + Oblíquo

Exemplo: “Fábio pôs o livro na estante

3. Construção resultativa

Significado básico: X CAUSA Y TORNAR-SE Z

Configuração sintática: Sujeito + Verbo + Objeto + XComp.

Exemplo: “Fátima cortou a carne em pedaços

4. Construção de movimento intransitivo

Significado básico: X MOVE-SE EM Y

Configuração sintática: Sujeito + Verbo + Oblíquo

Exemplo: “A abelha voava no jardim

5. Construção conativa

Significado básico: X DIRECIONA UMA AÇÃO PARA Y

Configuração sintática: Sujeito + Verbo + Objeto

Exemplo: “Miguel fechou a porta

Em estudo recente (2001), Augusto Soares da Silva, Professor da Universidade Católica Portuguesa, em Braga (Portugal), descreve sete padrões sentenciais básicos do português, que codificam “esquemas de evento” (ou “cenas experienciais”, na terminologia de Goldberg). Esses esquemas de evento são padrões conceituais que combinam um tipo de ação, processo ou estado com os participantes nele envolvidos. Entre os padrões sentenciais propostos por Silva, destaca-se aquele que codifica o esquema de “ser” e configura-se sintaticamente como Sujeito + Verbo + Predicativo, sendo exemplificado pela sentença “Esta sala é arejada”. Note-se que Goldberg não descreve uma construção predicativa.

Analisando os padrões sentenciais básicos do inglês, Goldberg ressalta a importância de uma abordagem bottom-up (do item lexical para a construção) e top-down (da construção para o item lexical), uma vez que os significados da construção e do verbo interagem. A construção contribui para a semântica do verbo, do mesmo modo que o verbo contribui para a semântica da construção. Isto é, a compatibilização de um verbo em uma construção específica determina a atualização de um sentido do verbo, ao mesmo tempo em que o sentido do verbo instanciado completa a significação da construção.

A semântica do verbo especifica papéis participantes (referentes aos participantes da cena evocada pelo verbo), enquanto a construção especifica papéis argumentais (referentes aos papéis temáticos, como agente, paciente, alvo, etc.). O verbo lexicalmente perfila as entidades obrigatoriamente presentes na cena que ele evoca. Vender, por exemplo, evoca uma cena em que prototipicamente participam um vendedor, um objeto vendido e um comprador. A construção bitransitiva X CAUSA Y RECEBER Z, por exemplo, perfila um agente, um paciente e um recipiente. Os papéis participantes perfilados pelo verbo vender e os papéis argumentais perfilados pela construção bitransitiva (transferencial) apresentam correspondência semântica e fundem-se (vendedor/agente, objeto vendido/paciente, e comprador/recipiente). Os papéis perfilados pela construção são expressos como relações gramaticais diretas (sujeito, objeto direto, objeto indireto).

Segundo Goldberg, as construções (i) especificam de que modo os verbos combinam-se com elas, (ii) restringem a classe de verbos que pode ser integrada com elas, e (iii) especificam o modo como o tipo de evento designado pelo verbo integra-se no tipo de evento designado por elas. Tendo isso em vista, é lícito dizer que vender compatibiliza com a construção bitransitiva porque o evento designado por vender encerra uma transferência. Em outras palavras, o tipo de evento designado pelo verbo é uma instanciação do tipo de evento mais geral designado pela construção.

A integração entre verbos e construções é governada por dois princípios:

Princípio da Coerência Semântica: Apenas papéis que são semanticamente compatíveis podem fundir-se.

Princípio da Correspondência: Cada papel participante que é lexicalmente perfilado e expresso deve ser fundido com um papel argumental da construção.

Entretanto, Goldberg salienta que há condições específicas em que os papéis participantes perfilados podem não ser expressos:

Sombreamento: Baseia-se na metáfora de que o perfilamento é análogo a uma câmera cinematográfica focando em certos participantes. O sombreamento denota um processo pelo qual um dado participante é “colocado nas sombras”. No exemplo “A salada foi temperada”, a construção passiva sombreia o papel participante mais alto associado ao verbo (aquele que se funde com o papel argumental de agente). Mas, seria possível dizer “A salada foi temperada por Marta”, isto é, com o agente da passiva.

Corte: Evoca a noção de um diretor cortando um dos participantes do filme. A diferença entre o papel participante sombreado e o papel participante cortado é que este não pode ser expresso. Por exemplo, na sentença “Esse tecido amarrota facilmente”, o papel participante agentivo não pode ser expresso.

Complementos nulos: Há dois modos de o verbo especificar lexicalmente que certo papel participante pode não ser expresso:

Complemento nulo indefinido: O papel não-expresso recebe uma interpretação indefinida, pois a identidade do referente é desconhecida ou irrelevante. No exemplo “Helena come muito”, o objeto do verbo comer não está expresso e a identidade de seu referente - o que Helena come - é irrelevante.

Complemento nulo definido: A identidade do referente deve ser recuperada no contexto. Por exemplo, na resposta “Ø Mordeu Ø” para a pergunta “O cachorro mordeu Antônio?”, os participantes do verbo recebem uma interpretação definida no contexto.

Considerando que o inventário de construções constitui um conjunto altamente estruturado, Goldberg assinala que a organização lingüística é governada por quatro princípios psicológicos ou cognitivos:

Princípio da Motivação Maximizada: Se uma construção A é sintaticamente relacionada a uma construção B, então o sistema da construção A é motivado de tal modo que se relaciona semanticamente com a construção B. Essa motivação é maximizada.

Princípio da Não-Sinonímia: Se duas construções são sintaticamente distintas, elas devem ser semântica ou pragmaticamente distintas. Subdivide-se em:

Corolário A: Se duas construções são sintaticamente distintas e semanticamente sinônimas, então elas não devem ser pragmaticamente sinônimas.

Corolário B: Se duas construções são sintaticamente distintas e pragmaticamente sinônimas, então elas não devem ser semanticamente sinônimas.

Princípio da Força Expressiva Maximizada: O inventário de construções é maximizado para propósitos comunicativos.

Princípio da Economia Maximizada: O número de construções distintas é minimizado o máximo possível, dado o Princípio III.

Correlacionando Said Ali e o cognitivismo

A perspectiva psicológica adotada por Said Ali, em Dificuldades da Língua Portuguêsa, se coaduna com algumas idéias cognitivistas, ratificando a atualidade de suas investigações a respeito da sintaxe do pronome se.

Em primeiro lugar, tanto a abordagem de Said Ali como o cognitivismo conferem à língua um valor mais humano, na medida em que consideram a psicologia ou a cognição do indivíduo como um fator central nas investigações lingüísticas.

De acordo com seu ilustre discípulo, Evanildo Bechara (1978: 13), “a obra de Said Ali, levando em conta o elemento psicológico, inaugurou entre nós o cuidado de se ter presente a participação do indivíduo no ato de traduzir-se através da palavra escrita e oral”.

Em segundo lugar, como visto anteriormente, Said Ali atribui ao pronome se, em “aluga-se quartos”, uma função “psicológica” de agente indeterminado. Segundo o autor, essa sentença traz à consciência a idéia de alguém que aluga, um locador. Do mesmo modo, a sentença “precisa-se de um empregado” traz à consciência a idéia de alguém que precisa.

Do ponto de vista do cognitivismo, isso tem correlação direta com a semântica do verbo, que perfila seus papéis participantes. No caso de alugar, os papéis perfilados são o locador, o objeto alugado (nesse caso, um imóvel) e o locatário. Esse verbo evoca uma cena experiencial de transferência que prototipicamente compatibiliza com a construção bitransitiva. Essa construção perfila os papéis argumentais de agente, paciente e recipiente. Na sentença “Aloísio alugou um quarto para Paulo”, os papéis perfilados pelo verbo alugar e os papéis perfilados pela construção bitransitiva combinam-se. No entanto, na sentença “aluga-se quartos”, o agente está expresso de forma indeterminada, mediante o emprego do pronome se; ao passo que o recipiente está “sombreado”, ou seja, não está expresso, mas poderia estar, como na sentença “aluga-se quartos para moças” (supondo-se que o locador dê preferência a moças). Nesse caso, o verbo alugar ocorre em uma construção que especificamente indetermina o papel de agente e sombreia o papel de recipiente.

Similarmente, nas sentenças “Ele precisa de um empregado” e “precisa-se de um empregado”, os papéis perfilados pelo verbo (aquele que precisa e aquilo que é preciso) combinam-se com os papéis perfilados pela construção conativa (agente e paciente). Mas, na primeira o agente está expresso, enquanto na segunda o agente está indeterminado.

Em termos mais simples, o emprego do pronome se como indeterminador do sujeito revela um aspecto psicológico, ou melhor, cognitivo, na medida em que a ação é psicológica ou cognitivamente atribuída a um ente humano desconhecido ou que não convém nomear.

Em terceiro lugar, considerem-se os quatro princípios organizacionais da língua.

Segundo o Princípio da Motivação Maximizada, se uma construção A baseia-se na construção B, então A herda todas as propriedades de B que não conflitam com as suas próprias especificações. Esse Princípio explica a evolução do reflexivo se até se tornar pronome indeterminador do sujeito. Quando o agente humano era desconhecido ou não convinha nomear, a forma reflexiva era empregada para dar a idéia de que o objeto praticava a ação sobre si mesmo. Mais tarde, essa forma passou a dar a idéia de um agente humano indeterminado. O substantivo, que antes figurava como sujeito, passou para o lugar de objeto, pois “o pensamento não comportava dois agentes” (p. 96). Ou seja, a forma com se indeterminador (“aluga-se casas”) herdou da forma reflexiva prototípica (“alugam-se casas”) apenas as especificações sintáticas (verbo na terceira pessoa, seguido de pronome se, seguido de substantivo), mas não a necessidade de concordância, posto que o que era sujeito tornou-se objeto.

De acordo com o Princípio da Não-Sinonímia, uma diferença na forma sintática sempre indica uma diferença de significado (seja na semântica, seja na pragmática). É isso que Said Ali demonstra magistralmente quando afirma que a forma reflexiva não se identifica com a voz passiva e, portanto, “substituir não é analisar” (p.103). Confrontando as sentenças “aluga-se esta casa” e “esta casa é alugada”, o autor prova que as diferenças sintáticas entre essas sentenças indicam uma diferença de significado. Semanticamente, a primeira sentença denota que alguém está disposto a ceder o imóvel de aluguel, ao passo que a segunda denota que o imóvel já foi tomado de aluguel. Pragmaticamente, se um senhorio quisesse inquilinos, utilizaria a primeira sentença e não a segunda.

Inversamente ao Princípio da Não-Sinonímia, o Princípio da Força Expressiva Maximizada determina que uma diferença no significado leva a uma diferença na forma. Em outras palavras, esse Princípio caracteriza a tendência para criar novas formas em um sistema maximamente expressivo. É por esse motivo que a língua dispõe da forma reflexiva (“aluga-se esta casa”) e da forma passiva (“esta casa é alugada”) para propósitos comunicativos diferentes.

O Princípio da Economia Maximizada, por sua vez, restringe o número de construções, atendendo à necessidade de simplificação lingüística. Portanto, esse Princípio, que restringe o Princípio da Força Expressiva Maximizada, é responsável, por exemplo, pela semelhança entre as sentenças “aluga-se quartos” e “precisa-se de um empregado”, ambas tidas por Said Ali como sentenças com agente indeterminado.

Conclusão

É apontando as incoerências dos preceitos gramaticais que Said Ali advoga a inexistência da passiva sintética no português (pelo menos no português do Brasil). Se é que ela ainda existe, é por mera pressão do ensino gramatical e parece estar em franco desaparecimento no “vernáculo brasileiro”, como denomina Mário Perini a língua falada no Brasil (2002: 36).

Visto que as pessoas de escolaridade mais baixa escrevem da mesma maneira que falam, a passiva sintética vem desaparecendo em placas de anúncios nos dias de hoje, nos quais se encontram sentenças como “vende-se estas casas”, “vendo estas casas”, “vendemos estas casas” e “Imobiliária X vende estas casas”, ou simplesmente sem o substantivo (“vende-se”, “vendo”, “vendemos” e “Imobiliária X vende”).

Conforme demonstrado, a Gramática das Construções, de base cognitivista, fornece um quadro teórico capaz de ratificar as investigações de Said Ali a respeito da sintaxe do pronome se.

Referências bibliográficas

BECHARA, Evanildo. A lição de M. Said Ali. In: 9° Congresso de língua e literatura. Homenagem a M. Said Ali. Rio de Janeiro: Salandra, 1978.

GOLDBERG, Adele E. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.

LOBATO, Monteiro. O colocador de pronomes. [mimeo]

LUFT, Celso Pedro. Moderna gramática brasileira. Porto Alegre: Globo, 1976.

PERINI, Mário A. Sofrendo a gramática. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2002.

SAID ALI, Manuel. Dificuldades da língua portuguesa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1957. [1ª ed. 1908; 2ª ed. 1919; 3ª ed. 1930; 4ª ed. 1950]

SILVA, Augusto Soares da. Da semântica da construção à semântica do verbo e vice-versa. In: Razões e emoção: miscelânea de estudos oferecida a Maria Helena Mateus. Departamento de Lingüística Geral e Românica, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2001.

 

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