A DIACRONIA NA OBRA DE SAID ALI

João Bortolanza (UEL)

 

Oportuna a homenagem a Said Ali[1], num momento em que convém criar condições para reabilitar a diacronia no ensino de Letras. Levantando alguns aspectos da Gramática Histórica da Língua Portuguesa, editada em 1921 sob o título Lexeologia do Português Histórico, compreendendo a Fonética e a Morfologia, e da sua Sintaxe Formação de Palavras e Sintaxe do Português Histórico, editada em 1923, pode-se refletir sobre o quanto se avançou (ou não!) em questões de cunho diacrônico.

O prólogo da 1a edição se abre com uma frase lapidar e bem oportuna:

Terreno vasto, árido e difícil de lavrar é a perspectiva que se oferece a quem se lembra de estudar o desenvolvimento de um idioma como o português desde a remota fase dos primeiros documentos escritos até os nossos dias, [e continua] Tarefa intérmina, e limitadas as minhas forças para colher algum fruto [...] (1964, p. 7)[2].

Quero destacar que pouco “se lavrou neste terreno vasto, árido e difícil” e que ainda está longe o desafio de se concluir a “tarefa intérmina” do Mestre Said Ali.

É de fato nesse estudar o português “desde as remotas fases... até os nossos dias” que se define a Diacronia, sem esquecer, porém, que, com o aparecimento histórico dessa nova “Modalidade do Latim” – com seu novo nome, Língua Portuguesa – concorrendo com a modalidade mais antiga do Latim oficial das escolas, não há como se fazer diacronia sem se reportar continuamente à sua essência latina. O que estamos estudando não é o Português, mas sim o Latim “ainda que em outro tempo e lugar”, como prefiro especificar. Pois, se na época da publicação da Gramática Histórica de Said Ali as faculdades de Letras ainda eram um projeto no Brasil, hoje proliferam e justamente num período em que o Latim e a Filologia foram cada vez mais perdendo espaço nos currículos do 3o grau, após ter sido suprimido o Latim dos graus inferiores. Se já para o Mestre homenageado a diacronia era um “terreno vasto, árido e difícil de lavrar”, além de uma “tarefa intérmina”, hoje soa-nos como um prenúncio. Como percorrer os oito séculos de língua portuguesa, sem o conhecimento das origens, sem o conhecimento do Latim? Como entender o objeto histórico que é uma língua, sem poder transitar pelos mais de dois milênios de sua constituição histórica?

 

O Problema da Transcrição dos Textos Arcaicos

O primeiro obstáculo para quem quer trabalhar em diacronia refere-se às normas de transcrição dos documentos arcaicos, nem sempre feitas com o rigor filológico exigido para se assentarem em textos fidedignos os comentários críticos e as pesquisas da evolução fonética, morfológica, sintática e léxico-semântica.

Assevera Said Ali, ainda no Prólogo: “Escrevi este livro com o intuito de expor somente as conclusões a que chegava depois de ler e cotejar muitos e diferentes textos." Citei provas e exemplos (1964: 9).

Mais adiante, introduzindo a Fonética fala da importância da escrita, uma vez que “as palavras de todos estes tempos [de Afonso Henriques a D. Duarte] voaram e desapareceram; ficaram somente os escritos”:

A nossa fonética histórica ocupar-se-á, portanto, unicamente dos casos em que a diversidade da escrita fornece elementos para o estudo da evolução dos fonemas depois de constituída a língua portuguesa (1964: 33).

Maximiano de Carvalho e Silva, na sua Apresentação à “Edição Revista e Anotada” de 1964, observa, com objetividade científica, que “Said Ali nem sempre transcreve com o rigor desejado e nem sempre se vale de edições fidedignas” (p. 6), isto é, não optou por edições críticas nem fez transcrição diplomática. Feita a ressalva, diz que resolveu manter as “normas de transcrição” de Said Ali. Diz-nos Ali textualmente: “Na citação dos exemplos conservei em geral a grafia usada nos livros donde os extraí [grifo meu], sem todavia levar ao extremo de sacrificar a legibilidade.” Entre as alterações, diz que desfez as abreviaturas, separou os aglomerados, e empregou o hífen, acrescentando um indefinido “etc”. Grafa o til com m ou n “adiante da vogal” e adota as letras U e V “de acordo com a prática hodierna”, para desfazer a “confusão que outrora reinava no emprego destas letras” (Cf. 1964: 9).

Seguindo o exemplo do Mestre, nós também vamos “ler e cotejar muitos e diferentes textos”, citando, como ele, “provas e exemplos”, isto é, proponho-me a apresentar “a diacronia em Said Ali”, percorrendo as mesmas trilhas, destacando, porém, a importância de se trabalhar com textos críticos, que sigam normas bem definidas de fixação da escrita.

Documento I – Fac-símile da Cantiga de Martin Códax (Cf. SPINA, 1996: 324): “Quantas sabedes amar amigo” (Pergaminho de Vindel, um manuscrito do século XIII). Salta aos olhos inicialmente a falta de uma ortografia uniforme, revelando problemas na transcrição da nasal palatal, inexistente no Latim, ora escrevendo “bannar nos emos”, ora “banar nos emos”; ora apresenta as vogais duplas resultantes da síncope da sonora, “ueeremo”, ora marcando a crase “ueremos”. Como tirar lições a partir da escrita? Embora Said Ali diga que “nunca será a linguagem escrita, dada a sua tendência conservadora, espelho fiel do que se passa na linguagem falada” (1964, p. 8), é fundamental o prévio trabalho do filólogo para uma leitura “crítica” do que apresenta o copista no manuscrito. Pode-se ainda destacar a falta das letras ramistas, as abreviaturas, a carência dos sinais diacríticos apóstrofo e hífen.

Documento II – Edição Diplomática da CV 456 (Cf. MONACI, 1875: 169) “Que muyto meu pago deste ueraō” (MONACI, 1875). Estamos diante de uma edição diplomática, isto é, de uma transcrição em tipos impressos do que eram letras e sinais diacríticos cursivos do manuscrito, provavelmente cópia tardia do início do século XVI (Cf. MATTOS E SILVA, 1996: 16). Fica mais fácil visualizarem-se os problemas de “leitura” do documento, com junção ou disjunção indevidas (“todo mē” por tod’ omē; “senpry” por senpr’ y); o latinismo et, às vezes com a nota tironiana (parecendo τ, tau grego); correções a serem feitas para um texto fidedigno, como “candeu / rasso / nō estio / grad alegria” por “quand’eu / passo / no estio / grād’alegria”; o emprego de h e y, a transcrição da nasal, a sinalefa arcaica com a elisão da primeira vogal e demais fenômenos da escrita fonética. O que concluir a partir dessa escrita, além de que urge ser estabelecido o texto?

Como se pode ver, fica difícil tirar conclusões a partir dos manuscritos, sem um árduo e rigoroso trabalho de transcrição, sem o estabelecimento dos textos para se proceder à análise da evolução, sobretudo dos fenômenos fonéticos. E, sem dúvida, fica comprometido todo estudo que lide com edições menos fidedignas.

 

A questão da Ortografia

Said Ali, no Prólogo ainda, expõe sua visão do fenômeno da mudança lingüística:

Ignora-se a data ou momento exato do aparecimento de qualquer alteração lingüística. Neste ponto nunca será a linguagem escrita, dada a sua tendência conservadora, espelho fiel do que se passa na linguagem falada. Surge a inovação, formulada acaso por um ou poucos indivíduos; se tem a dita de agradar, não tarda a generalizar-se o seu uso no falar do povo. A gente culta e de fina casta repele-a, a princípio, mas com o tempo sucumbe ao contágio. Imita o vulgo, se não escrevendo com meditação, em todo o caso no trato familiar e falando espontaneamente. Decorrem muitos anos, até que por fim a linguagem literária, não vendo razão para enjeitar o que todo o mundo diz, se decide também a aceitar a mudança. Tal é, a meu ver, a explicação não somente de fatos isolados, mas ainda do aparecimento de todo o português moderno (1964: 8).

O aspecto dessas assertivas que desejo enfocar é apenas o fato de ser o documento escrito o portador das tendências e mudanças, “espelho fiel”, mas sempre “conservador”. No período arcaico, os escritores e copistas tinham apenas o alfabeto latino para representar tanto os fonemas que se conservaram, quanto os que mudaram e quanto os que estavam em tendência de mudança, com o longo período de coocorrência de variantes. Muito bem observado por Said Ali o aspecto conservador da escrita com relação à fala e, portanto, a dificuldade em se datarem as mudanças ou tendências de mudança.

Para um professor das Letras, é fundamental o prévio conhecimento dos períodos ortográficos, se quiser enfrentar o desafio de extrair lições do passado. Mais uma vez, vamos observar alguns exemplos práticos, seguindo novamente o exemplo de Said Ali.

Já vimos exemplos de escrita fonética. Vamos retomá-los com a Carta de Caminha de 1500 e vamos acompanhar as mudanças em direção ao período dito pseudo-etimológico, chegando aos primórdios do período simplificado.

Documento III – Carta de Pero Vaz de Caminha – 1500 (Cf. CAMINHA, 2002: 14). Por se tratar de uma edição diplomática, observam-se os fenômenos já observados do período fonético, desde os problemas de junção (ocapitam, avossa), as incoerências na transcrição dos fonemas (diguo / segujmos, asy / vossa e vosa, jgnoramçia, screpuam), a presença irregular de vogais duplas para indicar acentuação (moor, sã njcolaao, aas x oras), o emprego não-etimológico de h (hy auer tempo) e, entre outros, a extrema insegurança no uso das ramistas j e v (ajmda, nauegaçam, deuem, marinhajem, segujnte).

Documento IV – Gramática da Linguagem Portuguesa de Fernão de Oliveira – 1536 (TORRES e ASSUNÇÃO, 2000: 242). Apresenta-se uma página da cópia anastática, com o intuito de mostrar que, apesar de essa primeira gramática portuguesa representar um marco de passagem para o novo período ortográfico, muito mantém do período fonético, havendo já raras inovações de cunho etimológico, como a presença da geminada em immortaes.

Documento V – Os Lusíadas de Luís de Camões[3] – 1572. Já em pleno período pseudo-etimológico, o presente fac-símile da primeira edição do poema de Camões, revela traços do período fonético. Há insegurança quanto à ramista v (viciosas / deuastando), enquanto a ramista j aparece adequadamente, sabendo-se que foram regulamentadas por Ramée em 1555. Ainda um tanto dúbia é a transcrição da nasal final (edificarão por edificaram, sam por são), enquanto é bem uniforme a transcrição em final de sílaba medial; há ainda a presença da nota tironiana representativa do et latino, com alternância entre o símbolo e o usual &.

A impressão que fica, nesse percurso, é que estamos acompanhando o caminho dos alfabetizandos, com suas tentativas de simbolizar a fala com os sinais gráficos – tão limitados! – e, à primeira vista, qualificar de analfabetos os autores dos textos arcaicos, os copistas, não se excluindo Caminha, Fernão de Oliveira e até Camões. Nasceu nossa língua com o período fonético, passou para o pseudo-etimológico, sempre procurando adaptar os novos sons ao alfabeto latino.

Documento VI – Tratado da Terra do Brasil de Pero de Magalhães Gândavo – 1576 (GANDAVO, 1980: 21). Gândavo é o autor de Regras de escrever a ortografia da língua portuguesa, publicadas em 1574, dois anos antes da publicação de A ortografia da língua portuguesa de Duarte Nunes do Leão. Esses primeiros tratados de ortografia estabeleceram as normatizações do período chamado de “pseudo-etimológico”. É o Humanismo em Portugal produzindo seus frutos, a Língua Portuguesa vai ganhando status de língua moderna, e, graças sobretudo à regressão erudita ao Latim Clássico, amplia significativamente seu vocabulário, sedimenta sua morfossintaxe e estabelece padrões clássicos para a poesia e para a prosa. Observem-se estas palavras: accrescentamento, augmentá-las, colligi-las, annos, acceitos, augmento, della, offerecer, Súbditos, entre outros. Se, por um lado, reconstituem-se etimologicamente formas latinas, por outro, trata-se de latinismos gráficos, não correspondentes às formas usuais. O uso de superlativos absolutos, por exemplo, traz do italiano o retorno às formas clássicas, tornando-se característico do português Moderno. Nesta dedicatória, ocorrem Sereníssimo e largissimos. Documento VII – Cultura e Opulência do Brasil de André João Antonil – 1711 (ANTONIL, 1711, fl. [4]: Proemio). Apesar dos tratados de ortografia, ainda se observa a insegurança do período fonético e sobretudo a falta de um sistema de normas uniformizado: assim, lembrando o período fonético, têm-se reyno, desejaõ, seoccupaõ, hum, obrigaçoens, Euangelica ; típicos do pseudo-etimológico, além das geminadas offerecida, Officina, Anno, communicou, innumeraveis, seoccupaõ, encontram-se formas latinizadas em Joseph, Thaumaturgo.

Documento VIII – Neologismos Indispensáveis e Barbarismos Dispensáveis de Antônio de Castro Lopes (1909: 39). Eis um exemplo do vigilante defensor da língua portuguesa, polêmico das etimologias e do purismo do idioma. Castro Lopes, nesta edição póstuma da 1a. ed. de 1889, defende a substituição do anglicismo pic-nic ou e do galicismo piquenique por convescote – um dos “neologismos indispensáveis”, segundo ele. Observe-se, porém a escrita: inglez, francez, francezes, portuguez, assás, açhal-o, muĩto, ao lado de formas pseudo-etimológicas, já que a pronúncia normal devia ser outra, como dous, adoptado e optimo, além do uso do ph em euphonicamente.

Documento IX – Cancioneiro da Ajuda de Carolina Michaëlis de Vasconcelos – 1904 (Vol. I, p. XXVII-XXVIII). Nesta introdução ao Cancioneiro da Ajuda, em pleno 1904, ano da publicação da Ortografia Nacional: Simplificação e Uniformização sistemática das Ortografias Portuguesas de Gonçalves Viana, é patente como a ortografia já está bem mais próxima da atual, causando-nos, porém, certo estranhamento o regular emprego da ramista j para o fonema ž: jeminadas, jeraes, vantajem, estranjeirismos anti-etimolójicos, réjias, sujeriu, lijeiras – observando-se, ainda, o característico acento agudo da pronúncia de Portugal em jénio, diverjéncias, vénia, Adverténcia.

Em suma, embora não se possam datar as mudanças, com afirma Said Ali, podem sim ser pesquisadas, desde que se trabalhe com textos criticamente estabelecidos. Como diz Guimarães Rosa, “Toda língua são rastros de velhos mistérios”, por isso mesmo cumpre seguir esses rastros, essas pegadas, essas pistas – desafio sem fim que se oferece aos que desejam beber desses mistérios e tornar os estudos das Letras uma fonte inexaurível de pesquisas e descobertas. E rastreando os documentos, procurar estabelecer pontes com o passado latino e com o português presente, para poder-se entender a língua em profundidade. Por mais que se avance nessa “tarefa intérmina”, sempre ficarão novos desafios, como conclui Ali no seu Prólogo:

Não tomei compromisso de discretear com assuntos interessantes e questões obscuras para cuja solução não encontrei elementos bastantes no passado do idioma, ou na comparação deste com outros. Prefiro deixar por ora tais casos em silêncio (1964: 9-10).

 

Algumas observações
sobre a Diacronia de Said Ali
em sua Gramática Histórica

1 Abre sua obra com uma História Resumida da Língua Portuguesa, onde delimita as fases da língua: o Português Antigo, “linguagem escrita usada até fins do século XV e ainda nos primeiros anos do século seguinte”, que ele denomina de “o interamnense, ou talvez o galécio-português”; o Português Moderno subdividido nas fases seiscentista e hodierna, tendo a setecentista como transição. Exemplar esse procedimento, uma vez que é quase impossível beber no passado as estruturas da língua, sem o conhecimento da história externa.

 

2 Segue-se outro curto e expressivo capítulo sobre as “Alterações Fonéticas do Latim Vulgar”, que deixa as marcas do grande filólogo, por sua consciência do Português no contexto das transformações românicas do Latim, em que as transformações vocálicas e consonânticas revelam as várias tendências da evolução do Latim. Estudar o Português em profundidade é estudar sua latinidade e, sobretudo, a dialetizada das camadas populares. O que se pergunta é como adentrar esse mundo tão pouco documentado sem um sólido conhecimento do Latim, até porque o que se dá não é uma substituição pura e simples de formas, antes o Latim Atual das línguas e dialetos diferentes traz em si, conserva, coocorrentes e concomitantes, as raízes latinas e suas características clássicas, ao lado dos novos radicais e formas inovadoras que caracterizam as novas línguas e dialetos românicos. O caminho do passado passa então pela Filologia Românica, sobretudo com a reconstituição da modalidade Latim Vulgar, tão pouco documentada e fonte das transformações que deram nos estágios atuais, entre eles a Língua Portuguesa.

 

3 Para uma Gramática Histórica, estranha-nos, à primeira vista, o que Said Ali assevera na introdução ao capítulo “Os sons em Português e sua Representação”:

Daqui em diante teremos de atender ao objetivo bem definido da presente obra. Não cotejaremos fonética portuguesa com fonética latina e sim textos portugueses com textos portugueses.

Poder-se-ia ver aqui um argumento a favor dos que pregam a inutilidade do Latim. No final, porém, esclarece:

A nossa fonética histórica ocupar-se-á, portanto, unicamente dos casos em que a diversidade da escrita fornece elementos para o estudo da evolução dos fonemas depois de constituída a língua portuguesa (1964: 33).

Acrescentaria que é exatamente isso que há de ser o objetivo dos estudiosos das Letras Portuguesas: buscar no latim e nas suas transformações as explicações para os fatos presentes.

Como exemplo, vai ao latim – ainda que apenas em alguns casos – para explicar a “permuta de L e R”, revelando-se na escrita pelas formas paralelas “com a mesma significação”, o ainda presente rotacismo, tantas vezes estigmatizado. Diz ele, referindo-se aos grupos consonantais próprios: “Em certos vocábulos, como prazer, dobro, regra (regu(l)a), nobre (nobi(l)e), igreja (ecclesia), a alteração ficou definitiva; em outros não passou de um fenômeno temporário, posto que, para certos casos, perdurasse até o século XVIII.” (Cf. 1964, p.45-47). Valeria estender-se ao português atual e perguntar-se como se encontram formas como prazer, prazeroso e comprazer, ao lado de outras como plácido, complacente e beneplácito, sem recorrer ao latim placere. Dobro e duplo, regra e regular, nobre e nobilitar, igreja e eclesial e tantos outros radicais alomorfes coexistem, como os atuais planta e pranta, com a diferença que este é estigmatizado.

Ao comentar o fenômeno, Said Ali revela as influências recebidas, asseverando que a “causa da longa vitalidade das formas duplas, conquanto não esteja explicada, deve, todavia, ser de ordem psicológica, e não fisiológica” (1964, p. 45). Procura exemplificar essa ocorrência na diacronia, desde os primeiros textos, notando em especial que o próprio poema épico camoniano registra “frauta, sembrante, pranta” (Ibid., p. 46) e muitos outros. Nessa mesma variação inclui a metátese, verificada em “fremoso, fremosura, afremosentado”. Como se vê, pode-se acrescentar, de formosus (< formonsus) forma-se o popular fremoso (arcaico) e o regressivo erudito formoso; é essa metátese que explica o perguntar ainda em variante com o preguntar (popular, mas regular no castelhano); ou por que o R de trevas também ocorre no final em tenebroso.


 

4 Na introdução à 1a. edição de 1921, cumpre observar o que quer dizer quando afirma: “Deixará de ser histórico o estudo de vocábulos que desprezar as alterações semânticas” (1964, p. 7). É que, para Said Ali, “A parte da Gramática que estuda os vocábulos denomina-se lexeologia. Difere da fonética em considerar os sons combinadamente e denotando idéias e relações.” (1964, p. 53). Ainda é para ele apenas um “costume” o de “se chamar de morfologia ao estudo destes elementos [afixos] e de suas relações com o radical”. A lexeologia é que trata de “Os vocábulos: espécies, formas e significados”, como reza o título.

Cabe, porém, acrescentar que, de fato, “deixará de ser histórico o estudo de vocábulos que desprezar as alterações semânticas” [grifo meu]. Há muito a ser feito para um excurso diacrônico léxico-semântico, que elucide como os radicais latinos formam palavras, reconstituindo o significado básico. Como há todo um percurso histórico do significado nas formas populares e eruditas do português presente. Em despedir, recompõe-se, por exemplo, o sentido primevo de petere, dirigir-se. Como não enxergar a palavra manus em manual, manufaturado, manipular, manutenção, manejo, manietar, manicure, manobra, manuscrito, manusear? Mais difícil será percebê-la em meneio, menear < manear (assimilação com especialização de sentido “mover de um lado para outro”), manha (*mania LV “habilidade manual”) XIII “habilidade”, daí amanhar (cultivar, amanho) e maneira < manuaria = relativo à mão.

 

5 Quanto ao capítulo “Formação de Palavras” (1964: 229 ss), cumpre destacar algo. Inicia assim:

Não nos ocuparemos aqui com a creação dos vocábulos ab ovo, mas apenas com a formação corrente de palavras por meio dos processos de derivação e composição, excluindo deste estudo os termos novos, geralmente internacionalizados, e creados por homens eruditos com material puramente grego ou latino para suprir a falta de denominações apropriadas a certos conceitos modernos (1964: 29).

Há que ressalvar que popular, pedestre, marginal, original, entre outras, não são palavras tão eruditas e distantes, próprias de “homens eruditos”, embora sejam de “material puramente latino”. Após tantos anos, ainda há muito a pesquisar na questão dos radicais e das raízes, das palavras cognatas, dos radicais alomorfes, isto é, das raízes latinas e gregas e dos radicais atuais, usuais ou não, para dar maior profundidade e logicidade ao ensino-aprendizagem de nossa língua.

 

6. Outra observação oportuna é o que se lê à p. 230:

[...] na derivação sufixal nem sempre é fácil determinar a linha que a separa do processo da composição [...] Enquanto em latim só se usaram dizeres como fera mente, bona mente [...] o processo era, quando muito, a composição, formavam-se palavras compostas. Desde porém que com igual facilidade puderam vogar combinações como rapidamente, recentemente, já a palavra mente tinha perdido a significação e valor de substantivo e, de termo componente, passava a funcionar como sufixo creador de advérbios.

Aqui, o recurso ao latim surge espontâneo, elucidando o presente com o passado latino, deixando claro que a dita “erudição latina” é apenas condição sine qua non para explicar os estágios diacrônicos da língua portuguesa.

 

7 Ainda na p. 230:

As línguas enriquecem seu vocabulário, não somente combinando palavras entre si ou ajuntando-lhes prefixos e sufixos, mas ainda dando a certos vocábulos sentido novo, fazendo-os servir em categoria diferente.

Mostra como verbos passam a substantivos: ser, poder, jantar, dever. Adjetivos passam a indicar noções abstratas: o frio, o belo, o sublime; ou pessoas: o cego, o louco, o rico, o avarento. E acrescenta: “Tais fatos se observam na linguagem, quer estudada sincronicamente, como nos exemplos que acabamos de referir, quer examinada diacronicamente.” Como exemplos, cita “lente, ribeiro , receita, estado, oriente”, que de adjetivos ou particípios passaram a substantivos. Poderíamos acrescentar algumas considerações, indo ao latim:

·         LENTE < lens, ntis, que em Latim significava “lentilha” e pela forma do objeto designado nos dá o novo significado, mantendo-se como substantivo. A evolução do vocábulo passou pelo diminutivo do Latim Vulgar lentícula >lentilha, que conservou seu significado original. Paralelamente temos o homônimo LENTE, substantivo derivado do particípio latino legens,-ntis, pertencente à família de palavras que inclui, lenda, lendo, legenda, legível, leitura etc.

·         RIBEIRO, substantivo provém do adjetivo riparius, (que habita à beira de um rivus, a ripa, ripícola).

·         ORIENTE: particípio latino transformado em substantivo, assim como Ocidente, em freqüente ablativo absoluto: oriente sole, occidente sole (ao nascer do sol, ao sol se pôr).

·         Quanto a ESTADO, a origem está no verbo sto, stas, steti, statum, stare = estar de pé, estar em posição, numa postura vertical, donde os substantivos statio e statua. O particípio STATUS, –a , –um passa a ter emprego adjetivo, significando imóvel, quedo, assentado, determinado, fixo, decidido; deriva-se dele o substantivo STATUS, –us = repouso, imobilidade/ atitude, postura, que passa a ter emprego político já em Cícero, Status Romanus. Ainda é comum o emprego de formas como: status, statu quo ante, status quo.

·         Quanto à receita, provém do neutro plural latino RECEPTA (“as coisas recuperadas, reavidas; fianças, garantias”). Típico neutro plural latino que forma nomes femininos singulares, como folha, lenha, pêra, amora, derivados do plural de folium, lignum, pirum e morum.

 

8 Observemos agora esta outra constatação de Said Ali:

Parece cousa extremamente fácil distinguir palavras derivadas de palavras primitivas quando se trata de exemplos [...] que não requerem especial cultivo da inteligência... [cita pedreiro, pedraria, fechamento, laranjal e acrescenta:] São entretanto numerosos os casos em que transparece menos lúcida a relação entre o termo derivado e derivante, sendo necessário algum estudo para se perceber a filiação. Outras vezes tem havido tal evolução de forma e sentido, que surge um curioso conflito entre o sentimento geral do vulgo e o fato encarado à luz da pesquisa científica (1964: 231).

Para os casos em que se exige o trabalho do “lingüista”, exemplifica com ESQUECER e RECEBER para descobrir-se a origem em cadere (cair) e capere (tomar): o primeiro, através da forma escaecer, derivada do latim excadescere, e a segunda de recipere (apofonia de re + capere). Parece-me cabal a conclusão de Ali quanto a esquecer. Já, quanto ao receber, pode-se objetar que re– é elemento formativo recorrente e muito produtivo para não ser percebido; e que –CEBER também é recorrente em perceber e conceber, podendo ser reconhecido nos radicais alomorfes derivados recepção, concepção, receptivo, concepcional, além de em outros derivados de verbos latinos em –cipere, como accipere e decipere: acepção, decepção. Há, de fato, formas presas que não exigem grande esforço de pesquisa para serem reconhecidas – ainda que, principalmente em tempos de pouco conhecimento histórico da língua, por desconhecimento total ou insuficiente do Latim, se exija a presença de um “lingüista”, no dizer de Said Ali, ou seja, de um filólogo.

Podemos na mesma perspectiva analisar –FESSOR e –FISSÃO: professor, profissão, confessor, confessional. Assim as formas presas –METER, –MITIR, –MISSÃO, –MISSOR, –MESSA etc., com uma multiplicidade de exemplos: intrometer, intromissão, comprometer, compromisso, remeter, remissão, remessa, emissor, todos derivadas de mittere e missum. É uma lista quase interminável: cometer, comissão, prometer, promissão, promessa, promissor, permitir, permissão, omitir, omissão, demitir, demissão, admitir, admissão, emitir, emissão...

Releve-se ainda a coexistência de um vocábulo e de uma forma presa idênticos em TRAIR e –TRAIR , donde a forma presa –TRAÇÃO e os vocábulos TRAIÇÃO e TRADIÇÃO. Há convergência de dois verbos latinos: tradere, traditum (entregar, trair, transmitir) e trahere, tractum (puxar, arrastar), sendo desse a grande família de cognatos: contrair, abstrair, atrair, retrair, distrair, subtrair, atração, atrativo, distração, entre outros.

Outras formas presas facilmente reconhecíveis, até pelo seu repetitivo emprego, mantendo inclusive o lexema original: –DUZIR, –DUÇÃO, –DUTO, em palavras como aduzir, conduzir, induzir, deduzir, introduzir, produzir, reduzir, adução, oleoduto, condutor; –STRUIR, –STRUÇÃO, identificáveis em construir, construção, destruir, instruir, obstruir, reconstruir, estrutura, construtura, instrução etc. E como se pode falar em conhecimento da língua portuguesa sem atentar para os significados básicos das raízes, que ora se mantêm, ora se modificam, conservando, porém, elos semânticos com as origens?

 

3.9 Conclui Said Ali a introdução à 2a. parte “Formação de Palavras e Sintaxe do Português Histórico”, apelando para o “sentimento de linguagem”, ao falar de antigos verbos derivados que passaram a funcionar como verbos primitivos:

Há, entretanto, exagero neste método de análise erudita. O sentimento de linguagem é fator essencial, sem o qual as formas e creação de palavras perderiam sua significação. E muito de levar em conta é esse sentimento se, diversificado da língua-mãe, aparece desde a constituição do novo idioma e assim se conserva até os nossos dias. De maneira que a fórmula mais razoável para explicar esquecer, receber, vingar, julgar, resistir, etc. seria declarar que são antigos verbos derivados que passaram a funcionar como verbos primitivos. (1964: 231).

Houve e há sem dúvida muitos “exageros” cometidos no excessivo enfoque das origens – bastaria lembrar Castro Lopes e suas célebres etimologias cerebrinas[4] – mas há diferença entre os exemplos apontados por Said Ali. Uma coisa é sentimento de linguagem para quem tem visão superficial de sua língua, e outra, para quem conhece a linguagem em sua dimensão diacrônica. Temos um produto no se-fazer diacrônico. Há sim fatos já consumados, só perceptíveis a estudos eruditos, levados às vezes por gerações de estudiosos; outros, ainda nem assim resolvidos; mas que isso não sirva para descurar da responsabilidade de nos assumirmos falantes nativos do Latim, “ainda que em outro tempo e lugar”. O que se pergunta é como um “licenciado em Letras” se porta ante casos tão simples como “cadê o D do PÉ?” ou “onde está o N da LUA, de CÃES e de UM?” E por que o feminino UMA, se em Latim era UNA? Existiria mesmo –N final em português?

Sentimento de linguagem para o nosso Mestre Said Ali, com toda sua formação clássica, é hoje para nós das Letras uma meta a ser atingida. Quantos de nossos professores de Português, desde o ensino fundamental, passando pelo secundário, e até do nível superior, têm hoje esse sentimento respaldado em conhecimento profundo desse nosso LATIM AINDA QUE EM OUTRO TEMPO E LUGAR?

Retomemos o lapidar Prólogo:

TERRENO VASTO, ÁRIDO E DIFÍCIL DE LAVRAR é a perspectiva que se oferece a quem se lembra de estudar o desenvolvimento de um idioma como o português desde a remota fase dos primeiros documentos escritos até os nossos dias [assim concluído com a constatação após anos de intenso estudo e pesquisa:] TAREFA INTÉRMINA, e limitadas as minhas forças para colher algum fruto [...] (1964: 7.Grifos meus).

Quero concluir que pouco “se lavrou neste terreno vasto, árido e difícil” e que ainda está longe o desafio de se concluir a sua “tarefa intérmina”. Seria em nome do grau de dificuldade? A facilidade, em lavras da ciência, só pode aliar-se ao domínio da essência do seu objeto, no caso o objeto histórico chamado Língua Portuguesa, que só pode ser entendido a fundo em sua dimensão histórica.

Uma história de mais de dois milênios do Latim nosso de todo o dia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas. Lisboa: Officina Real Deslandes, 1711.

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[1] Said Ali foi o Filólogo homenageado do IX  Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, realizado na UERJ de 22 a 26 de agosto de 2005.

[2] Para os comentários e citações, vali-me da Edição Revista e Anotada por  Maximiano de Carvalho e Silva: SAID ALI, M. Gramática Secundária e Gramática Histórica da Língua Portuguesa. Brasília: EDUnB, 1964.

[3] Fac-símile constante em CUNHA, 1966: Vol. 1,  I, 1 e 2; III, 135-137.

[4] Cf. LOPES (1910). Veja-se também: LOPES (1942: 64-105 e 1943: 205-28).

 

 

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