ALÇAMENTO DAS VOGAIS ORAIS MÉDIAS
POSTÔNICAS
NÃO FINAIS
DUAS
PROPOSTAS EM ANÁLISE

Darinka Suckow (PUC-Minas)

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Propõe-se, neste trabalho, discutir o alçamento das vogais médias para altas no Português do Brasil (PB) através do dissenso inerente às propostas de Mattoso Câmara Jr. ([1970]) e Leda Bisol (2003). Propostas estas congruentes em vários pontos de suas análises, mas que chegam a conclusões distintas quanto ao tema aqui proposto: o alçamento de vogais orais médias postônicas não finais[1].

De início, faz-se necessário ressaltar que, em posição postônica, ou átona, não final, as vogais médias-baixas /E/ e // não se realizam. Portanto, o processo que aqui se focaliza é aquele em que, na série não-posterior, eleva-se o traço de altura da vogal média-alta /e/ para a vogal alta /i/ (hipót/e/se → hipót/i/se), e, na série posterior, da vogal média-alta /o/ para a vogal alta /u/ (pér/o/la → pér/u/la).

Na literatura lingüística, contudo, a discussão centra-se na ocorrência do alçamento das vogais em posição pretônica (g/o/verno → g/u/verno), como evidenciado em Bisol (1981); Lee (2004); Viegas (1987), (2001); Bortoni et al. (1992), dentre outros. Certamente, tal interesse deriva, em primeira instância, do fato óbvio de ser o PB “uma língua que permite variabilidade/alternância de vogais médias” (LEE, 2004). Enfim, altera-se o foco da discussão quanto ao posicionamento da vogal no item lexical.


 

O PORQUÊ DO DISSENSO

É inegável que devemos a Câmara Jr. ([1970]) a análise, de cunho estrutural, mais abrangente já realizada sobre as vogais do PB. Baseado na constatação de que é a partir da posição tônica que classificamos os fonemas vocálicos, pois daí “se deduzem as vogais distintivas”, apresentou o seguinte esquema:

altas

      /u/

                 /i/

 

médias

              /ô/

         /ê/

(2º grau)

médias

                      /ò/

/è/

(1ª grau)

baixas

                                /a/

 

 

 

Posteriores      Central

Anteriores

 

(CÂMARA JR., 1994: 41)

Quanto à posição tônica, contudo, pode-se dizer que há um relativo consenso em toda a literatura lingüística. Porém, o mesmo não se verifica na posição postônica não final, ainda pouco estudada. Para Câmara Jr. ([1970]), em se tratando de vogais postônicas não-finais, teríamos um quadro como o exposto na figura (A) abaixo:

(BISOL, 2003: 274 apud Câmara Jr.)

Já para Bisol (2003), as vogais na referida posição “flutuam”[2], como em um pêndulo em movimento, entre os subsistemas da átona final, composto por três vogais, e da pretônica, composto por cinco vogais. O que nos daria um quadro como o expresso pela figura (B)[3] abaixo:

Contudo, apesar de visar rever suas propostas, Bisol (2003: 273) destaca o ineditismo de Câmara Jr. ([1970]) ao incorporar aos estudos fonológicos o conceito de neutralização[4] (“perda do traço que distingue entre si dois fonemas”) – oriundo da Escola de Praga – para tratar o problema do alçamento de vogais mediais no PB.

Por neutralização, teríamos, para Câmara Jr. (1994)[5], um sistema que de sete vogais em posição tônica – /a, e, E, i, o, , u/ – se reduz a cinco vogais em posição pretônica – /a, e, i, o, u/quatro vogais em posição postônica não final – /a, e, i, u/ – e a três vogais em posição final de palavra – /a, i, u/.

Para o teórico, quando em posição postônica não-final, neutralizam-se as vogais posteriores /o/e /u/, mas não as anteriores /e/ e /i/, pois a oposição entre os fonemas /o/ e /u/ é um reflexo da representação gráfica, “mera convenção da língua escrita” (1994: 43-44).[6]

No intuito de sustentar sua tese, recorre aos “melhores poetas brasileiros” e salienta que, em suas obras, é possível encontrar o uso de rimas do tipo pérola e cérula e, ainda, estrídulo e ídolo, assim por diante (CÂMARA JR., 1994, apud CÂMARA, 1953: 135-6). Rimas essas que, quando relacionadas aos fonemas /e/ e /i/, soam estranhas a nossos ouvidos. Como exemplo, destaca que embora uma pronúncia do tipo */nu’ miru/, para número, ou */tè’pedu/, em vez de /te’ pidu/, para tépido, possa ser manifesta, é logo “rechaçada”. Enfim, a proposta mattosiana nos daria um sistema assimétrico. E, conforme Bisol (2003), essa assimetria:

... pode ser explicada em termos fisiológicos. Basta lembrar o diagrama das vogais cardinais de Daniel Jones, que atribui menos espaço bucal às posteriores. As vogais /o, u/ estão mais próximas uma da outra do que as vogais /e, i/. Segundo Martinet (1964: 139), dado um sistema com o mesmo número de fonemas na série posterior e anterior, as margens de segurança são mais estreitas na série posterior do que na série anterior, o que pode explicar em parte a diferença de comportamento entre as duas séries. (BISOL, 2003: 278-279).

Porém, é justamente na assimetria relacionada ao subsistema de vogais postônicas não finais que Bisol (2003) situa o problema da análise de Câmara Jr. Aí, o processo de neutralização gera, segundo ela, um sistema assimétrico na série posterior no qual evidencia-se a não naturalidade da sentença, exposta na figura (A), composta pelos fonemas /a, u, e, i/.

Como hipótese, considera que o alçamento da postônica medial quando relacionado a itens lexicais que contenham fonemas de séries posteriores (/o/ ® /u/) é mais freqüente que o alçamento entre aqueles que contenham fonemas de séries não posteriores (/e/ ® /i/). Deste modo, os primeiros, de largo uso, como as palavras fósfuro e abóbura, são mais susceptíveis a alçarem do que os segundos, prótise, córrigo, itens lexicais menos freqüentes[7], mas que também alçam.

Contrária, em parte, às idéias de Câmara Jr. ([1970]), Bisol (2003: 275), ao se referir aos “registros de altura vocálica” proposto pelo modelo de Clements (1991), diz ser o PB uma língua de “registro terciário” e não quaternário[8] como proposto pela análise mattosiana. Para ela, o que temos, na verdade, são sete vogais (registro primário), que se reduzem a cinco vogais (registro secundário), no subsistema da pretônica, e a três vogais (registro terciário), no subsistema da átona final. E é a partir dessa premissa que concebe a flutuação das vogais postônicas mediais não-finais entre os dois subsistemas átonos, o da pretônica e o da postônica final.

Como argumento para a referida flutuação em direção ao subsistema da átona final, recorre à análise dos dados estatísticos que faz uso. Estes indicam a ocorrência do alçamento tanto na série posterior quanto na série não posterior, o que nos dá um subsistema semelhante ao da átona final.

Ressalva, porém, que, ao contrário do que ocorre com as vogais átonas finais, não há, em nenhum dialeto do PB, a neutralização manifesta como regra geral para a posição postônica não final. Tal constatação representa que a opção, dialetal em primeira instância, pela regra que eleva o traço de altura do subsistema de vogais postônicas não finais (o conduz das vogais médias-altas /e, o/ para as vogais altas /i, u/) encontra forte resistência entre os falantes.

Para justificar a flutuação da postônica não final em direção ao subsistema da pretônica, ou seja, para justificar que nesta posição se realiza os cinco fonemas átonos /a, e, i, o, u/, Bisol (2003) vale-se de dois argumentos:

1. Há, nos dialetos da região Sul, manifestações de alternâncias vocálicas como as seguintes: fósforo ~ fósfuro, abóbora ~ abóbura e alfândega ~ alfândiga, epêntese ~ epêntise, córrego ~ córrigo, prótese ~ prótise. (p.280). Alternâncias estas que, por si, levam por terra a hipótese de Câmara Jr., pois indicam a presença do fonema /o/ em posição postônica não final.

2. É possível relacionar, assim como no subsistema de vogais pretônicas, vogais neutralizadas a vogais preservadas (por derivação), como nos exemplos: perolar < pérula ~ pérola; fosforear < fósfuro ~ fósforo; alfandegário < alfândiga ~ alfândega. (p.280) (Grifo meu).

Deste modo, na fonologia do português PB, um sistema quádruplo (7 vogais tônicas ® 5 vogais pretônicas ® 4 vogais postônicas não finais ® 3 átonas finais) como o proposto por Câmara Jr. ([1970]) contraria a tendência à simetria, que todas as línguas naturais possuem, e, segundo Bisol (2003), enfrentaria grandes restrições como contexto de regra.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BISOL, L. A Neutralização das Átonas. Revista Letras. Curitiba: UFPR, n.61, especial, 2003, p. 273-283.

CALLOU, D.; LEITE, Y. Iniciação à fonética e à fonologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

CÂMARA JR., J. M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1994.

CRISTÓFARO SILVA, T. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. São Paulo: Contexto, 1999.

NUNES, J. J. Compêndio de gramática histórica da língua portuguesa. Lisboa: Clássica, 1989.


 


 

[1] Segundo Cristófaro Silva (1999: 87) “vogais postônicas mediais ocorrem entre a vogal tônica e a vogal átona final em palavras proparoxítonas. Na palavra “ótimo” a vogal  i ocupa a posição de vogal postônica medial”.

[2] Câmara Jr. (1994: 45), ao referir-se às vogais pretônicas, pontua que o “/i/ tende a substituir o /e/, e o /u/ o /o/ ... Em outros termos, as vogais altas debordam num e noutro caso as vogais médias correspondentes. É esse <<debordamento>>, que Viggo Bröndal chama <<cumulação>>, uma variação, ou melhor, flutuação dentro do sistema, que atrofia ou hipertrofia elementos dele (BRÖNDAL, 1943: 20-1)”. Bisol (2003) estende essa noção às vogais postônicas não finais.

[3]Aqui, o símbolo de alternância vocálica foi utilizado, grosso modo, para indicar a flutuação referida pela autora.

[4]Por neutralização, Callou & Leite (2000: 76-77) concebem “o processo pelo qual dois ou mais fonemas que se opõem em determinado contexto deixam de fazê-lo em outro.” E pontuam, ainda, que “quanto maior o grau de atonicidade, maior a possibilidade de ocorrer neutralização” entre as vogais.

[5] Para Câmara Jr. (1994), em uma proposta que se pretenda fonológica, o que importa são as “propriedades” ou “traços distintivos”. Pontua, ainda, que as “diferenças, até fisicamente muito grandes, podem resultar na mesma coisa, e considerá-las desse ponto de vista”. E esta é a perspectiva teórica que guia ambos os estudos, tanto deste teórico quanto de Bisol (2003). Perspectiva importante para situarmos o problema no nível fonológico e não no nível puramente fonético.

[6] Nos moldes da TD, uma concepção como esta assume um caráter de difícil sustentação teórica, pois admite que teríamos como forma subjacente (compartilhada por todo o sistema lingüístico do PB) apenas o fonema /u/. A discussão implícita nesta afirmação será apresentada a posteriori.

[7] Uma hipótese para se explicar o fator de freqüência aqui expresso pode remeter-se à diacronia da língua. Conforme Nunes (1989), a língua possui uma “antipatia” frente a itens lexicais proparoxítonos. Para o teórico, deve-se ao emprego restrito e à influência literária o fato de a língua ainda conservar muitos itens proparoxítonos, ao menos na transmissão popular, e destaca exemplos como: víbora, dízima, hóspede, pêssego. Aos itens lexicais mais difundidos, aqueles de fala corrente e pouco protegidos pela tradição literária, de proparoxítonos passaram a paroxítonos quando da evolução da língua: “pego, bago, parvo, perigo, povo, dantes, pegoo, bagoo, parvoo, etc.” (NUNES, 1989: 69).

[8] O termo quaternário é aqui proposto por analogia ao termo terciário, utilizado por Bisol (2003).

 

 

...........................................................................................................................................................

Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos