ANÁLISE ENTONACIONAL
DAS CONSTRUÇÕES DE TÓPICO

Mônica Tavares Orsini (UFRJ)[1]

 

Introdução

As construções de tópico têm sido objeto de estudo recorrente nos últimos anos e esse interesse se justifica pela relevância do tema para a compreensão das mudanças que vêm se processando no sistema do Português do Brasil (PB). Porém, não há nenhum trabalho de natureza experimental, com base num corpus de fala espontânea, que descreva os contornos melódicos do tópico, tendo em vista as diferentes estratégias de se topicalizar.

Neste sentido, o presente trabalho, desenvolvido no Laboratório de Fonética da UFRJ, objetiva:

1.   Evidenciar diferenças nos padrões entonacionais entre as diversas construções de tópico e dessas em relação à de sujeito/predicado.

2.   Descrever o padrão entonacional das estruturas de tópico com valor contrastivo.

3.   Detectar possíveis alterações no padrão entonacional das construções de tópico, visto que constituintes com diferentes papéis sintáticos podem preencher a posição de tópico na sentença.

Reforça-se, assim, a importância dos estudos de interface sintaxe / prosódia (cf. CALLOU et alii, 1993; Gonçalves, 1997; Ilari, 1992).

 

A entoação

A entoação é um módulo da prosódia, cujos correlatos físicos são a freqüência fundamental (F0), a duração e a intensidade (cf. Moraes, 1982: 64). A freqüência fundamental é o traço mais significativo para a determinação do padrão entonacional de um enunciado; trata-se de um parâmetro acústico, percebido, pelos interlocutores, como altura de voz (isto é, variações melódicas, na dimensão grave / agudo).

Rossi (1981) afirma ser a entoação constituída de unidades discretas de extensão variável. Por ser um signo lingüístico, associa forma e conteúdo tanto no nível lingüístico (gramatical) quanto extralingüístico (expressivo). Além disso, fornece tanto informações de natureza sintática quanto àquelas pertinentes à ordenação das unidades informacionais do enunciado. Seu domínio é a frase.

A entoação é simultaneamente um traço universal e específico das línguas. Revela-se universal por manifestar, em diferentes línguas, comportamentos entonacionais similares. Assim, análises prosódicas interlingüísticas mostram, por exemplo, que a presença x a ausência da queda do valor da freqüência fundamental (F0) ao longo do enunciado – declination tendency – diferencia as sentenças declarativas das interrogativas totais. Vaissièrre (1983) aponta ainda como traços prosódicos universais: (a) elevação de F0 nas primeiras sílabas da sentença; (b) repetição de padrões melódicos – ascendente ou descendente – no decorrer da sentença; (c) tendência de o valor máximo da F0 localizar-se na primeira palavra da sentença; (d) aumento da duração da última sílaba do grupo prosódico, bem como do primeiro fonema da sentença.

Por outro lado, trata-se, em certa medida, de um traço específico, uma vez que a manifestação de uma curva ascendente ou descendente obedece a critérios que variam segundo a língua. Além disso, o grau de relevância de fatores como limite de palavra, estrutura morfológica e fonológica da palavra e fenômenos de juntura na determinação do contorno melódico varia entre as línguas. Para Vaissièrre (op. cit.), é possível que a inter-relação dos parâmetros F0, duração e intensidade seja responsável pela individualização das línguas.

Nesta análise, a entoação é definida como as variações de F0 de um enunciado, interessando-nos, mais especificamente, as variações no âmbito do sintagma entonacional.


 

A entoação das construções de tópico

O tópico é o constituinte mais à esquerda do enunciado, de valor contextual referencial, em que o locutor anuncia aquilo sobre o qual ele vai falar.

Segundo Rossi (1999), as propriedades acústicas do tópico são:

(a) maior proeminência da sílaba tônica, tanto no que se refere à intensidade quanto à freqüência fundamental;

(b) presença de um glissando, com direção ascendente;

(c) alongamento da sílaba acentuada.

Na figura 1, ilustramos a curva entonacional apresentada por Rossi (op. cit.) para as construções de tópico no francês:

Fig. 1: curva entonacional do enunciado
Ces maisons, mon grand-père lês a achetèes pás cher[2]. (ROSSI, op. cit., p. 67)

Para o PB, Callou et alii (1993) detectam a existência de marcas prosódicas capazes de diferenciar as construções de topicalização das de deslocamento à esquerda e estas, das de sujeito-predicado. Os resultados, obtidos com base em análises instrumental e estatística, mostram que o padrão ascendente é mais comum entre as construções de topicalização; já o descendente se manifesta mais nas de deslocamento à esquerda. A pausa pode ou não ocorrer, independentemente do tipo de estratégia.

Não há, segundo os autores, evidências suficientes a favor de um padrão entonacional nitidamente predominante, não sendo clara, do ponto de vista prosódico, a distinção topicalização x deslocamento à esquerda. Já as construções de tópico-comentário parecem se distinguir, quanto a sua prosódia, das de sujeito-predicado. Assim, a prosódia seria um traço redundante que acompanha a distinção sintática nas construções de tópico.

 

Estratégias de construção de tópico

Os trabalhos, tanto em relação ao Português Europeu quanto ao Português do Brasil, não apresentam uma uniformidade na abordagem das diferentes estratégias de se topicalizar, variando segundo a fundamentação teórica e a metodologia empregadas (cf. Pontes, 1987; Mira Mateus, 1989; Vasco, 1999). Abarcamos, nesta análise, ocorrências de:

(A) Topicalização (TOP) – caracteriza-se pela existência de uma categoria vazia, no interior do comentário, que poderia ser preenchida pelo tópico externo à sentença.

(1) isso tudoi eu gosto __i

(2) óculos escurosi eu uso __i

Em (2), tem-se a estratégia de topicalização numa construção com valor contrastivo, pois tal frase foi produzida no momento em que o falante contrastava o fato de não usar óculos de grau ao fato de usar óculos escuros, como confirma a transcrição do fragmento.

(Doc.) Você usa óculos?

(Inf.) Não.

(Doc.) Nem escuros.

(Inf.) Óculos escuros eu uso. (inq. 96 / década de 90)

(B) Tópico-anacoluto – o tópico não estabelece nenhuma relação argumental com o verbo. Tem-se, ao contrário, uma relação semântica: o locutor anuncia o tópico sobre o qual vai falar para depois fazer um comentário por meio de uma sentença completa.

(3) conta conjunta é difícil de acertar aquele saldo final.

(C) Tópico-sujeito (Tsuj.) – nessas construções, tópico e sujeito se fundem e o tópico passa a reunir traços de ambas as categorias. Trata-se de um processo de gramaticalização, em que o tópico é reanalisado como sujeito, instaurando-se inclusive a concordância verbal, o que colabora para a manutenção da ordem canônica no Português do Brasil: SVO. É uma estratégia decorrente da tendência atual do PB de preencher o sujeito.

(4) as casas antigas eram famílias grandes.

(D) Deslocamento à esquerda – define-se pela presença no comentário de um pronome-cópia.

(5) aquelas casas antigasi elasi viram tudo.

 

Análise entonacional
das construções de tópico

A análise e a notação fonológica aqui utilizadas seguem o modelo formalizado por Pierrehumbert (1980) para o inglês. A autora desenvolve uma representação abstrata para entoação, tornando possível mapear os diferentes padrões entonacionais que um enunciado pode ter em função da intenção comunicativa do falante, além de identificar as regras de implementação das seqüências tonais. Desta forma, a seqüência tonal de uma sentença é o resultado da aplicação dessas regras nos pontos de maior proeminência, da esquerda para direita.

Os tons são entidades lingüísticas independentes do texto, sendo alinhados a este por meio das regras locais de implementação. Pierrehumbert (op. cit.) propõe dois tons: um alto (H) e um baixo (L). Esses podem ser simples ou complexos (acentos bitonais), isto é, constituído de um par de tons. O tom que se alinha à sílaba acentuada é marcado por um asterisco – H* ou L* – e o que se alinha à fronteira do sintagma entonacional, pelo sinal (%). A atribuição de um tom depende da sua relação com a linha de base, do grau de proeminência impresso pelo falante e de sua relação com os tons precedentes.

Usaremos aqui dois tipos de tom:

Acentos melódicos (pitch accents) – podem ser simples ou complexos. Quando simples, alinham-se sempre à sílaba tônica. Quando bitonais, consistem em dois elementos ordenados no tempo e relacionados entre si pelo fator intensidade (sílaba forte x sílaba fraca). Pierrehumbert (op. cit.) apresenta um inventário dos acentos melódicos do inglês: H*, L*, L* + H, L + H*, H* + L, H + L*, H* + H. Os acentos bitonais são responsáveis pela representação dos fenômenos de elevação (upstep) e declive (downstep) da curva melódica em torno da sílaba acentuada.

Tons de juntura (ou fronteira) – alinham-se à última sílaba do sintagma entonacional ou do enunciado (texto). Há fronteira onde existe uma pausa ou onde a pausa poderia ser inserida sem perturbação do contorno melódico. Na fala espontânea, há situações em que a fronteira é marcada por um alongamento da última sílaba do enunciado ao invés da pausa.

 

O corpus

O corpus constitui-se de 10 sentenças de cada uma das estratégias de construção de tópico focalizadas, mais 10 de construções de sujeito / predicado e 10 de construções de tópico com valor contrastivo, totalizando 60 frases, selecionadas de 18 informantes, de ambos os sexos e de diferentes faixas etárias.

 

O Cecil

Para detectar as modulações de F0 e a duração da pausa (quando presente), fizemos uso do programa de análise acústica computacional CECIL (Computerized Extraction of Components of Intonation in Language), que fornece a curva melódica do enunciado, além da forma de onda e de sua curva de intensidade.

A medição da F0, nos experimentos aqui descritos, se deu no ponto de maior intensidade da sílaba. Optamos por esse critério apesar de sabermos que essa medida pode ser feita com base em outros pontos do continuum sonoro, como (a) porção central da vogal, (b) os valores máximos ou mínimos de F0 na vogal ou na sílaba, (c) a média dos valores de F0 ao longo da vogal ou da sílaba, calculada manual ou automaticamente. Testes feitos no Laboratório de Fonética da Faculdade de Letras da UFRJ, pelo Professor João Moraes, com um mesmo enunciado mostram que as diferenças obtidas segundo os vários pontos de medida são irrelevantes, se não há modulações melódicas intra-silábicas importantes. (cf. Moraes, 2003)

 

Padrões melódicos

A análise entonacional das sentenças aponta para existência no sistema de três padrões prosódicos distintos que, embora não sejam exclusivos das diferentes estratégias de construção de tópico, revelam a importância do estudo da prosódia na caracterização de fenômenos sintáticos.

 

H* L+H* H%

Esse padrão é freqüente nas construções de sujeito / predicado e em algumas construções de topicalização, evidenciando que o sistema não parece diferenciar por meio da curva entonacional as estratégias de sujeito / predicado das de topicalização.

A fig. 2 mostra que a curva entonacional do sujeito mantém-se acima da linha de base do informante. Verifica-se elevação de F0 na 1ª tônica, havendo um declive acentuado até a sílaba que antecede a 2ª tônica, o que justifica o acento bitonal L+H*. Percebe-se uma sustentação do nível de altura entre a última tônica e a postônica final.

Fig. 2: curva melódica e seqüência tonal da sentença
todos os sapatos da casa eram guardados ali” (sujeito)

Do total das construções de sujeito, 70% não apresentaram pausa entre sujeito e predicado.

As construções de topicalização não revelaram um comportamento estável. Quatro, dentre as dez ocorrências investigadas, apresentaram padrão semelhante ao das construções de sujeito, como mostra a fig. 3.

Fig. 3: curva melódica e seqüência tonal da sentença
banana fritai de vez em quando a gente faz __i” (topicalização)

A fig. 3 apresenta uma curva entonacional com ataque alto, elevação sustentada nas vogais tônicas, final e postônica, com variação de apenas 7Hz. Não há pausa entre tópico e comentário. Aliás, a pausa está ausente em 70% do conjunto das sentenças de topicalização.

A fig. 4 evidencia a semelhança entre as curvas de sujeito e tópico-sujeito (Tsuj.). A primeira tônica é alta, a última tônica e a postônica caracterizam um padrão em que há sustentação do nível de altura, além de uma pausa de 262ms entre tópico e comentário. A diferença entre as construções de sujeito e Tsuj. parece ser a presença de pausa nesta última. Do total de sentenças desse tipo, 5 apresentam a curva exemplificada abaixo, sendo quatro com presença de pausa, o que se revela significativo. Verifica-se, no nível prosódico, uma distinção entre essas construções, visto que as de sujeito caracterizam-se pela ausência de pausa, enquanto as de Tsuj., pela presença.

Fig. 4: curva melódica e seqüência tonal da sentença
todos aniversário(s) tem festa” (Tópico-sujeito)

 

H* L+H* L%

As construções de deslocamento à esquerda revelam um comportamento entonacional bastante peculiar.

A fig. 5 apresenta uma primeira tônica com freqüência fundamental alta seguida por uma descida (downstep) nas sílabas subseqüentes, atingindo seu valor mínimo na sílaba que antecede a próxima tônica, que também é alta e é seguida por uma curva descendente. Destaque-se a presença de uma pausa de 138ms. Das cinco construções com esse padrão entonacional, quatro possuem pausa entre tópico e comentário.

Fig. 5: curva melódica e seqüência tonal da sentença
aquelas casas antigasi elasi viram tudo” (DE)

Cinco entre as dez construções de anacoluto apresentaram a mesma configuração entonacional do tópico da fig. 5, o que parece revelar uma tendência quanto ao padrão entonacional dessas estruturas. A fig. 6 ilustra esse comportamento prosódico.

Fig. 6: curva melódica e seqüência tonal da sentença
conta conjunta é difícil de acertar aquele saldo final” (anacoluto)

 

L* H*+H H%

O padrão L* H*+H H% revelou-se bastante produtivo entre as construções com valor contrastivo, independente da estratégia de construção de tópico empregada pelo falante. Isso mostra que a contrastividade tem um padrão próprio no sistema.

Fig. 7: curva melódica e seqüência tonal da sentença
óculos escurosi eu uso __i” (estrutura contrastiva)

Note-se que, nessa estrutura, a primeira tônica apresenta uma F0 baixa, que se eleva significativamente na última tônica e continua numa curva ascendente até a postônica final. A opção pelo acento bitonal H*+H seguido de um tom de fronteira alto pretende representar o espraiamento do tom H para a sílaba subseqüente inacentuada, sobre a qual recai o maior valor de F0. Além disso, essa notação representa que o nível atingido pela postônica é mais alto aqui que em outros padrões. Citamos a seguir Soza (1999) que ao usar esse tom, justifica-o da seguinte forma: “a razão pela qual consideramos necessário este acento tonal [H*+H ou H+H*] é de ordem fonética: este acento tonal é responsável pela subida do tom desta sílaba a níveis mais altos que poderia alcançar um tom simples H*” (Soza, op. cit.:157). Ladd (1996) também propõe o traço “raised peak”, representado por ↑H*.

Há uma micropausa de 14ms. Em relação a presença ou não de pausa, a tendência é para sua ausência (aproximadamente 67% das ocorrências).

Das dez estruturas contrastivas submetidas à análise do padrão entonacional, cinco apresentam o mesmo padrão descrito acima.

 

Considerações finais

A análise aqui descrita revelou que as construções de tópico apresentam configurações entonacionais distintas que opõem construções de sujeito / predicado às de deslocamento à esquerda e essas às construções de tópico contrastivas. Não há evidências que permitam diferenciar, do ponto de vista prosódico, sujeito / predicado das construções de topicalização.

Em relação às construções de sujeito / predicado e tópico-sujeito, a prosódia parece distinguir essas estruturas em função da presença de pausa. Essa distinção mostra-se pouco evidente na sintaxe, já que o tópico se gramaticaliza em sujeito, o que aponta para o fato de que a prosódia não é um traço redundante, mas distintivo.

Desta forma, no que tange à análise entonacional das construções de tópico, nosso experimento confirma os resultados de Callou et alii (1993), assinalando a inexistência de um padrão entonacional para cada estratégia focalizada. Por outro lado, aponta para existência de três padrões prosódicos distintos e sistemáticos, o que nos leva a defender a tese de que o Português do Brasil revela dois módulos – um sintático e outro prosódico – independentes, que interagem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALLOU, Dinah et alii. Topicalização e deslocamento à esquerda: sintaxe e prosódia. In: CASTILHO, A. (org.). Gramática do português falado. Vol. III: As abordagens. Campinas: UNICAMP / FAPESP, 1993.

GONÇALVES, Carlos Alexandre Victório. Focalização no português do Brasil. Tese de Doutorado em Lingüística. Rio de Janeiro. UFRJ / Faculdade de Letras, 1997, 2 vols.

ILARI, Rodolfo. Perspectiva funcional da frase portuguesa. 2ª ed. rev. Campinas: UNICAMP, 1992.

MIRA MATEUS, Maria Helena et alii. Gramática da língua portuguesa. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 1989.

MORAES, João Antônio de. Em torno da entonação: alguns problemas teóricos. In: Cultura lingüística, 1. 1982, p. 63-78.

––––––. Do contínuo ao discreto: onde, na curva melódica, medir os valores de F0? [Inédito].

PIERREHUMBERT, Janet. The phonology and phonetics of english intonation. PhD Thesis, MIT, 1980.

PONTES, Eunice. O tópico no português do Brasil. Campinas: Pontes, 1987.

ROSSI, Mario. L’intonation – Le système du français: description et modélisation. Paris: Ophrys, 1999.

––––––. et alii. L’Intonation: de l’acoustique a la sémantique. Paris: Institut de phonétique D’aix-en-provence: Librairie de Méridiens, Klincksieck, 1981.

SOSA, Juan Manuel. La entonación del español: su estructura fónica, variabilidad y dialectología. Madrid: Ediciones Cátedra, 1999.

VAISSIÈRRE, Jacqueline. Language-independent prosodic features. In: A. Cutler e D. R. Ladd (eds.), 1983, p. 53-66.

VASCO, Sérgio Leitão. Construções de tópico no Português: as falas brasileira e portuguesa. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.


 


 

[1] Agradeço ao Prof. Dr. João Antonio de Moraes pela preciosa orientação.

[2] “Essas casas, meu avô comprou-as barato.”

 

 

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