Biondetta, entre a liberdade do desejo
e o recatamento da moral

Maria Cristina Batalha (UERJ)

A identificação da mulher como um perigoso agente de Satã percorre uma longa história na civilização ocidental, ao longo da qual ela era associada aos mistérios do sexo e aos tabus que sobre ele pesavam. Os depoimentos que a História registra sobre os processos contra feiticeiras nos revelam uma parte importante do imaginário coletivo de determinadas épocas que, mesclado aos sonhos e temores de cada indivíduo, nos permitem compreender o lugar reservado à mulher e suas diversas significações sociais e imaginárias. Muitos historiadores, Jacques Le Goff entre eles, vêem a crença nas feiticeiras como um ponto significativo da evolução histórica, em que, aos poucos, o limite entre o real e o imaginário vai sendo estabelecido. Em seu famoso estudo sobre as feiticeiras, Michelet afirma poeticamente em sua Introdução:

Natureza as fez feiticeiras – É o gênio próprio da Mulher e seu temperamento. Ela nasce Fada. Pelo retorno regular da exaltação, ela é Sibila. Pelo amor, ela é Mágica. Por sua fineza, sua malícia (muitas vezes fantástica e generosa), ela é Feiticeira e faz o destino, ou pelo menos faz adormecer todos os males (...) O homem caça e combate. A mulher cria, imagina; ela engendra sonhos e deuses. Ela é vidente em alguns dias; ela possui a asa infinita do desejo e do sonho. (MICHELET, 1964 [1862]: 21) (A tradução é nossa)

Assim, portadora de tão diferentes papéis vinculados a poderes que escapam à razão e ao controle dos sentidos, é pelo viés da transgressão e da resistência que passamos agora a examinar a personagem Biondetta, do romance de Jacques Cazotte (1772), considerado pela crítica como a primeira narrativa fantástica, estética tomada aqui em seu stricto sensu.

O romance O diabo enamorado conta a história de Alvare que, em conversa com amigos sobre a cabala, doutrina esotérica complexa e muito em voga no final do século XVIII, é levado por estes a evocar o diabo nas ruínas de Portici, perto de Nápoles. Movido pela curiosidade e desejoso de realizar a experiência, aceita o desafio proposto por Soberano, “profundo conhecedor das ciências ocultas”. O demônio surge então sob a forma grotesca de uma cabeça de camelo e pergunta: “Che vuoi?”. Logo em seguida, este se transforma em um cãozinho, que acompanhará Alvare por toda parte; o demônio sofre uma segunda transformação, assumindo a forma hermafrodita de um pajem que, por sua vez, passa posteriormente à imagem de uma encantadora jovem chamada Biondetta. Esta tenta por todos os meios seduzir o rapaz e mantê-lo sob sua influência. Alvare, conhecendo sua origem demoníaca, procura resistir aos encantos de Biondetta que, contrariando a tradição da literatura maravilhosa que enfoca os espíritos elementares, sofre como uma simples mortal com a indecisão de Alvare. Instala-se então entre os dois um amor ambíguo, contra o qual a mãe do protagonista busca alertá-lo em nome do bom senso e da tradição. Depois de inúmeras aventuras em que este consegue escapar do poder de sedução de Biondetta, o jovem termina por deixar-se levar pelos encantos da moça. Porém, no momento da consumação do amor, esta relembra a Alvare sua verdadeira origem e sua figura se transforma novamente em cabeça de camelo, como durante sua primeira aparição. Alvare desperta então como de um pesadelo maldito, segue para casa de sua mãe, na Espanha, onde o doutor Quebracuernos lhe explica as artimanhas do diabo que quase causaram sua perdição, sugerindo que a partir de então o jovem estaria amadurecido para viver um amor verdadeiro, sem os riscos dos excessos da adolescência.

À maneira dos romances de aprendizagem e da fina análise psicológica do personagem movido por seus desejos, que caracterizam a produção romanesca da segunda metade do século XVIII, O diabo enamorado é a história da sedução de um jovem inexperiente às voltas com uma mulher astuciosa, de aparência inocente. Em meio à proliferação de romances que enfocam a educação de um indivíduo, sua formação e seu caminho para auto-afirmação no mundo, em uma linha de continuidade com Emile, Werther e tantos outros, no Diabo enamorado, o homem se transforma em palco de uma luta mais ampla entre as forças do Bem e as forças do Mal. Sabemos que, como lugar das contradições, e não somente o da aplicação de esquemas ideológicos e cognitivos vigentes, a literatura vai enfocar as rupturas do processo desta formação, as descontinuidades, vacilações e dúvidas que pontuam a trajetória de auto-afirmação do homem em seu devir. No combate travado no interior do próprio indivíduo, Satã, apesar de seu imenso poder, só poderá triunfar se conseguir o abandono completo da alma humana, cuja liberdade é, no entanto, capaz de se opor às suas artimanhas.

NO diabo enamorado, a metamorfose sofrida por Biondetta se reveste da ambigüidade quanto à sua natureza, pois, para Alvare, ela pode ser mais uma das artimanhas do diabo, tomado em seu sentido próprio e não apenas metafórico, leitura ambígua para a qual aponta, aliás, o próprio autor na apresentação de seu livro. Assim, a dupla freudiana Eros e Thanatos presente na obra de Cazotte, problematizada e relativizada pela perspectiva do fantástico nesse romance, vale como uma forma de escapar à censura, pois, como lembra Jean Fabre, o terrível poder de Eros não investe “contra”, mas encontra sua razão de ser no “âmago mesmo” da mentalidade puritana, que vai gerar este processo de erotização fantástica, já que no mecanismo do erotismo, abriga-se uma zona de impulsos que escapam à consciência e, por isso mesmo, provocam medo e fascinação. (FABRE, 1992: 231) E é este Eros destruidor que surge como representante dos poderes mágicos, capazes de devorar a razão e o livre-arbítrio.

Nada mais adequado para representar a dimensão desse poder do que a mulher, sobretudo quando esta é identificada com a bruxaria e os poderes maléficos que lhe são imputados. Assim, nos explica Nubia Hanciau:

Conhecedora, desde a Antigüidade, de segredos mágicos, a mulher converte-se em artesã demoníaca, já que o mundo que a circunda não admite outra magia senão a maléfica. Os laboratórios de feitiçaria representam, no imaginário coletivo, arsenais de amor e lubricidade, repletos de importantes substâncias e de simbolismos sexuais destinados a satisfazer os desejos e os apetites eróticos reprimidos ou proibidos. A feiticeira, ou a bruxa, representa a intermediária entre a amarga realidade e o mundo do prazer, fornecendo à coletividade os meios mágicos – passaporte de ingresso – que muitas vezes no entanto, ela é forçada a temer e a rejeitar. (HANCIAU, 2001: 105)

De modo geral, como lembra Jean Fabre, a figura do diabo, por sua capacidade proteiforme, pode ser identificada com o grande mestre da “ilusão”, na medida em que ele pode ser qualquer um e/ou qualquer coisa. Esta diversidade é a mesma do pecado e a da tentação, podendo assumir, em suas diferentes representações, configurações que oscilam entre a humanidade e a animalidade, como desdobramento do par beleza-feiúra que acompanha as diferentes metamorfoses assumidas por Biondetta. (FABRE, 1992 : 242-3) Ora, o processo de “tentação” é facilitado pela vocação pecadora do homem e, como sugere Fabre, “o Divisor toma de assalto as almas e dissociando assim a divina unidade do ser humano, faz com que esta de despedace até a dissolução baudelairiana e a evaporação do Eu” (FABRE, 1992: 246). Seria oportuno lembrar que “diabo” – diabolos – vem de diaballein que quer dizer “dividir”, logo, etimologicamente, “diabo” corresponde à divisão. (FABRE, 1992) Mas, poderíamos então nos perguntar: se o homem é feito de um corpo e de uma alma, e se Deus está em todo lugar e em tudo, então por que não podemos consumar nossos desejos, liberar nossos fantasmas e usufruir do prazer? Afinal, estaríamos apenas realizando um designo divino... Caberia ainda lembrar que, no Antigo Testamento, Satã (= adversário) era originariamente bom, transformando-se posteriormente em anjo revoltado. Assim como o Diabo, Maligno, Belzebu e Azarel, Satã é um dos mensageiros de Lúcifer, aquele que carrega a luz, em oposição a Deus, atraindo os homens para o mal e o erro.

Nesse impasse reside a ambigüidade que paira sobre o personagem de Biondetta: apesar de sobrenatural, os métodos de persuasão que utiliza para seduzir Alvare são bastante “naturais” e reveladores da malícia feminina no jogo amoroso. A complexidade do erotismo que a figura de Biondetta suscita em Alvare traduz-se nas diferentes formas que esta assume: ora trata-se de um monstro com cara de camelo, ora um pajem hermafrodita, ora a bela jovem que encarna a sensualidade feminina, misto de inocência e malícia.

Assim que Biondetta aparece, após a terceira metamorfose, o percurso de Alvare se desenvolve no plano humano e o eixo da história gira em torno de sua “queda” progressiva. Ora, em um século em que a vontade de saber se estende por todos os campos – consciente ou inconsciente, manifesto ou implícito – o desejo erótico transforma-se em um terreno privilegiado para a exploração científica, sobretudo quando este ocupa um papel fundamental no processo de educação e de amadurecimento do homem.

Parece-nos então que é a figura ambígua de Biondetta, com sua capacidade de metamorfose, que permite a Alvare especular sobre seu desejo e compreender a relação entre o proibido e o permitido, presentes no erotismo. É assim a dúvida quanto à sua natureza de sexualidade feminina, amabilidade e doçura do pajem, paralelamente à encarnação do diabo, que torna a figura de Biondetta tão atraente aos olhos de Alvare. Talvez por este motivo, o rapaz deixe de lado a vontade de saber sobre a verdadeira origem de Biondetta, e, por conseguinte, abandone a luta contra os interditos que pesam sobre sua ligação com a moça. Por outro lado, pelo que é sugerido através da perspectiva da estética do fantástico presente nessa narrativa, o diabo assume o peso simbólico e alegórico das tentações da sensualidade e da vontade desmedida de saber, mas, ao mesmo tempo, ele também é tomado em seu sentido pleno, ou seja, aponta para a existência de um poder oculto, sobre-humano no qual toda uma corrente filosófica e racionalista vê a encarnação de tudo aquilo que elas recusam: a magia, as superstições, a feitiçaria, ou qualquer apelo ao sobrenatural e ao irracional. A figura de Biondetta emblematiza assim, não apenas a ambigüidade do desejo que oscila entre o permitido e sua transgressão, mas também o jogo entre conhecer e desconhecer, possível e impossível aos olhos da ciência, que perpassam todo o século e constituem fonte de tensão entre as diferentes correntes de pensamento.

Como eixo central da problemática filosófica do século XVIII, a questão da felicidade e da liberdade do homem estão presentes na obra de Cazotte. Como especula o personagem rousseauniano – “ minha vontade é independente dos meus sentidos (...) se me abandono às tentações, ajo de acordo com os estímulos que recebo dos objetos externos (...) quando repreendo em mim essa fraqueza, só escuto minha vontade. Sou escravo pelos meus vícios e livre pelos meus remorsos; o sentimento de minha liberdade só se extingue em mim quando me deparo e quando impeço a voz da alma de se elevar contra a lei do corpo” (ROUSSEAU, Emile, Livro IV, 1964: 339-40)–, também Alvare se encontra diante de uma situação de escolha e ele pode ou não exercer sua liberdade plenamente. Neste sentido, dirá ele: “Eu sou, minha senhora, o único temível inimigo de mim mesmo”. Ter “medo de si mesmo”, como confessa Alvare, pode se traduzir pelo medo dos impulsos mais secretos e mais desagregadores dos desejos passíveis de comprometer a “salvação” humana, e abalar a estabilidade e a segurança interiores.

No Diabo enamorado, enquanto Biondetta representa a agitação e o desregramento dos sentidos, a mãe de Alvare – Doña Mencia – expressa a ordem, a continuidade da tradição e a manutenção de uma certa organização social. Biondetta é identificada com as idéias revolucionárias e sua crença ilimitada no progresso. Para ela, a “tradição” é um preconceito que é preciso eliminar “a despeito das luzes”. Biondetta, ao recusar as tradições que recomendavam um casamento consentido pela família de Alvare, encarna de certa forma o espírito do século da razão. Biondetta, “sem pai, nem mãe”, representa assim a feminilidade in natura, livre dos preconceitos religiosos, morais e sociais que permeavam as relações amorosas. Sua figura aponta para a possibilidade de realização do desejo amoroso completamente isento das limitações impostas pela censura, porém, como subjaz ao texto a origem diabólica da sedutora Biondetta, há, no Diabo enamorado, o jogo ambíguo entre a moral repressora imposta aos jovens amantes e a crença no poder ilimitado de seres infernais que escapam à fragilidade da condição humana. De um lado, a personagem encarna a contrapartida das convenções sociais ao expor sua natureza feminina em estado bruto e natural; por outro, em suas investidas para seduzir Alvare, ela reitera as crenças cabalísticas de que o demônio é poderoso o bastante para se utilizar de criaturas elementares para precipitar na queda os pretensiosos que pensam poder usar indiscriminadamente as práticas de magia.

Pela fascinação que é capaz de suscitar, a temática da liberdade irrestrita do desejo que move as criaturas elementares – as sílfides evocam o ar, os gnomos, a terra, as salamandras, o fogo, e as ondinas se remetem à água –, que atuam livremente, sem as imposições da moral social, torna-se presença recorrente na literatura da época. Possuidores de grande poder sobre o mundo terrestre, esses seres precisam unir-se aos mortais para adquirirem uma alma. Ora, como não têm alma, não conhecem o pecado e seus corpos podem assim encarnar a liberdade dos desejos sem os cerceamentos da moral, propiciando a seus amantes humanos as delícias de um prazer sem limites. Neste romance, a união entre Alvare e Biondetta, um espírito elementar, inverte a relação entre corpo-desejo e amor-alma, já que, no jogo ambíguo de sedução exercido por Biondetta, os apelos são muito mais próximos do “humano” do que os de um ser dotado apenas de um corpo à procura de uma alma. Assim, através do logro favorecido pela opção estética do fantástico, Cazotte subverte os universos do humano e do sobre-humano, relativizando o poder das forças malignas: afinal, os demônios podem ser apenas os “demônios” que trazemos dentro de nós.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAZOTTE, Jacques. Le diable amoureux. Prefácio e notas de MILNER, Max. Paris: Garnier-Flammarion, 1979.

FABRE, Jean. Le miroir des sorcières. Paris: José Corti, 1992.

HANCIAU, Nubia. Migração da feiticeira para a América: da História à Literatura. In: PORTO, Maria Bernadette (Org.). Identidades em trânsito. Niterói: EdUFF/ABECAN, 2004, p. 111-136.

MICHELET, Jules. La sorcière. Paris: René Julliard, 1964 [1862].

 

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