Blimunda: a mulher-demônio
enquanto elemento do profano
atuando no campo do sagrado

Elisabete Macedo da C. dos Santos (UERJ)
Maria Cristina Batalha (UERJ)

O presente artigo se propõe a analisar uma personagem que, por sua natureza tão complexa e intrigante, nos faz refletir sobre o que é realmente o sagrado e, obviamente, sobre como este vem se mostrando na religião. Responsável por um questionamento mordaz dentro do romance Memorial do Convento, de José Saramago, Blimunda é aquela que, mesmo pertencente ao campo do profano (já que é vista como uma herege pela mentalidade da época) envolve-se com o campo do sagrado (ora questionando os dogmas, ora indispondo-se contra a história), dessacralizando-o.

Herdeira de Eva, Blimunda não deixa de sustentar a imagem negativa que se cristalizou na história a respeito da alma feminina, pelo contrário, é uma mulher que não se rende diante dos desmandos de uma sociedade baseada na opressão e no despotismo do poder dominante, contribuindo, assim, para uma total confirmação do poder feminino, este, sem dúvida, oriundo das trevas.

Visto que atendeste a voz de tua mulher, e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e comerás a erva do campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás. E deu o homem o nome de Eva a sua mulher, por ser a mãe de todos os seres humanos. (BÍBLIA SAGRADA, 1962: 3: 17-20)

Sendo assim, como podemos observar nessa passagem bíblica, a religião insiste em ver a mulher como a própria encarnação do demônio, depositando na figura feminina, desde já, toda a gama de infortúnios a que o homem pode estar predisposto; nesse sentido, à mulher, por ser da gênese de Eva (fêmea criada de uma parte de Adão e, por isso, naturalmente inferior a ele), cabe o espírito rebelde e perverso de quem, por vingança, busca castrar o homem, seu adversário, com o único poder que sua natureza inferior pode dispor: o poder da magia.

Dessa forma, antes de adentrarmos nesse Memorial de Saramago, cabe-nos, a princípio, fazermos uma análise mais profunda dessas questões que, nos primórdios, relacionaram ao feminino essa tamanha proximidade com o profano, observando, ainda, que tipos de elementos estiveram veiculados a esse diagnóstico. Assim, estaremos fazendo um estudo antropológico sobre a mulher, destacando, principalmente, questões inerentes à sua formação, cultura e posição na sociedade; e, para isso, começaremos por identificar as questões relacionadas à liderança e as questões relacionadas ao conhecimento das primeiras sociedades que se formaram.

Questões relacionadas à liderança

Segundo a maioria dos antropólogos, na sociedade em que o homem sobrevivia sem a necessidade da força física (culturas de coleta e caça a pequenos animais), a mulher possuía um lugar central, isso porque, nesses grupos, ela ainda é considerada um ser sagrado, porque a mulher é aquela que pode dar a vida e, por isso, acreditava-se que ela poderia ajudar tanto na fertilidade da terra como na fertilidade dos animais. Dessa maneira, nessa sociedade não havia desigualdade entre sexos, até porque eram as mulheres que, por permanecerem a maior parte do tempo em casa cuidando dos filhos, tinham o poder de cura – por meio de poções e ungüentos – que lhes era transmitido de geração em geração. Como afirma Muraro (2004), na antigüidade, essas mulheres detinham um saber próprio, sendo elas, portanto, necessárias ao crescimento da sociedade de um modo geral.

Entretanto, com o surgimento da necessidade da força física (caça aos grandes animais, necessidade de explorar outras terras) é que se inicia a supremacia masculina. No entanto, nessa sociedade, a mulher ainda era considerada um ser sagrado, uma vez que os homens desconheciam sua função na procriação (acreditavam que a reprodução era um privilégio oferecido à mulher pelos deuses). Desse modo, surgia, então, a inveja da condição superior das mulheres, isso porque os homens se sentiam marginalizados no processo de perpetuação da espécie. E, como retaliação a essa “inveja do útero”, praticava-se, nessas sociedades de caça, dois ritos ainda universalmente bastante comuns nesse tipo de comunidade:

O primeiro é o fenômeno da couvade, em que a mulher começa a trabalhar dois dias depois de parir e o homem fica de resguardo com o recém-nascido, recebendo visitas e presentes... O segundo é a iniciação dos homens. Na adolescência, a mulher tem sinais exteriores que marcam o limiar da sua entrada no mundo adulto. A menstruação a torna apta à maternidade e representa um novo patamar em sua vida. Mas os adolescentes homens não possuem esse sinal tão óbvio. Por isso, na puberdade eles são arrancados pelos homens às suas mães, para serem iniciados na “casa dos homens. (MURARO, 2004: 6)

Assim, por meio de inserções culturais, o homem foi ampliando seu espaço na medida em que a sociedade foi se desenvolvendo. Enquanto as sociedades eram de coleta, havia um regime de cooperação em prol da sobrevivência, não havendo, portanto, coerção ou centralização; entretanto, quando a coleta se torna escassa ou os animais e os recursos naturais vão se esgotando, o homem, necessitando competir para sobreviver, estabelece a lei do mais forte, deixando de lado os princípios feminino e masculino que outrora governavam juntos o mundo. O que antes poderíamos classificar como um rodízio de lideranças passa a ser encarado como um salto para as futuras sociedades patriarcais.

Enquanto o homem desconhecia sua participação na reprodução, ainda reservava à mulher algum poder de decisão, entretanto, como afirma Muraro (2004):

(...) em algum momento o homem começa a dominar a sua função biológica reprodutora e, podendo controlá-la, pode também controlar a sexualidade feminina. Aparece então o casamento como conhecemos hoje, em que a mulher é propriedade do homem e a herança se transmite através da descendência masculina. (...) A mulher fica, então, reduzida ao âmbito doméstico, perde qualquer capacidade de decisão no domínio público, que fica inteiramente reservado ao homem. (Idem, ibidem, p. 7)

Questões relacionadas ao conhecimento

Como já foi exposto, as mulheres desse tipo de sociedade – camponesas pobres – possuíam certo tipo de poder, visto que detinham um saber próprio advindo de experiências com curas por meio de ervas e, também, proveniente da sabedoria popular que umas aprendiam com as outras. Assim, possuidoras de tamanho conhecimento e, além disso, não integrantes do poder que vigorava então (sociedade patriarcal), passam a representar uma forte ameaça àqueles que estavam se formando médicos (homens da ciência) e, sobretudo, àqueles que estavam buscando centralizar o poder do sistema feudal, uma vez que tais mulheres participavam de revoltas camponesas, contribuindo, assim, para dispersão do poder que se procurava implantar.

A religião católica e, mais tarde, a protestante contribuem de maneira decisiva para essa centralização do poder. E o fizeram através dos tribunais da Inquisição que varreram a Europa de norte a sul, leste e oeste, torturando e assassinando em massa aqueles que eram julgados heréticos ou bruxos. Este “expurgo” visava recolocar dentro de regras de comportamento dominante as massas camponesas submetidas muitas vezes aos ferozes excessos dos seus senhores, expostas à fome, à peste e à guerra e que se rebelavam. E principalmente as mulheres. (Idem, ibidem, p. 14)

Dessa forma, a centralização do poder no mundo teocrático fez-se necessária e essa, como toda forma de domínio, destinou-se ao controle do corpo, ao controle da sexualidade e, sem dúvida, à perseguição às mulheres.

Objetivando o controle do corpo e da sexualidade, o sistema feudal desejava a obediência (corpo dócil do trabalhador), isso porque acreditava-se que se o homem fosse capaz de controlar o seu corpo, isto é, sua liberdade, este não se rebelaria contra os desmandos do poder vigente. O controle da sexualidade significava o controle do corpo, já que a transgressão sexual implicaria na transgressão da fé e essa, por sua vez, na transgressão política. Assim, nada mais indicado do que o extermínio do próprio demônio, ou seja, a mulher. A perseguição às mulheres deveu-se ao fato de se acreditar que, por meio delas, o demônio agiria sobre os homens que se deixassem dominar pelas mesmas – estes, claro, sempre tão ingênuos e vulneráveis.

E este domínio lhe vem através do controle e da manipulação dos atos sexuais. Pela sexualidade o demônio pode apropriar-se do corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade que o primeiro homem pecou e, portanto, a sexualidade é o ponto mais vulnerável de todos os homens. E como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam as agentes por excelência do demônio (as feiticeiras). (Idem, ibidem, p. 15)

Sustentava-se que, por Eva ter nascido de uma costela torta de Adão, nenhuma mulher poderia ser reta. Portanto, acreditava-se que a mulher, além de mexer com a magia, seria capaz das maiores atrocidades possíveis – inclusive copular com o demônio em prol da realização de um desejo, o que, de fato, poderia acarretar diversos malefícios, entre eles a impotência masculina, o estrago de colheitas e doenças em animais.

Segundo Paiva (2002), entre as superstições magia e malefício – a primeira vista, tão sinônimas para nossa compreensão – há uma sutil diferença, visto que a primeira seria responsável por efeitos admiráveis e sobrenaturais, enquanto que a segunda, corresponderia ao ato de fazer mal, isto é, provocar dano a outrem.

Malefício definia-se como a arte de fazer mal a terceiros com a ajuda do poder do Diabo, poder obtido através de um pacto com ele estatuído. Para que um malefício pudesse ocorrer era imprescindível que se associassem três condições. Fazia lei a teoria clássica que sustentava que o malefício resultava da acção conjugada de dois agentes – o poder do Diabo e malícia humana – a que obrigatoriamente se teria que juntar a autorização divina. (PAIVA, 2002: 53)

De EVA para AVE: a imagem que se transforma
no imaginário cristão

Observando as escrituras sagradas, podemos perceber a iniciativa eclesiástica de reformular a imagem feminina que se tinha no velho testamento, uma vez que de EVA (mulher pecadora e responsável por todos os males e desgraças futuros) há uma transformação para AVE no novo testamento – como nos diz S. Jerônimo “e todo pecado de Eva é expungido pela bem-aventurança de Maria” (KRAMER, 2004: 116).

E quais características tem Maria, a mulher virtuosa?

Segundo um provérbio de um livro do século XVII, “há três ocasiões em que a mulher poderia sair de casa durante toda sua vida: para se batizar, para se casar e para ser enterrada” (ARAÚJO, 1997: 192). Com ele, observamos o quanto machista tornou-se a sociedade dos seiscentos, a partir da idéia que se tinha sobre a mulher virtuosa advinda de séculos passados. Automaticamente passiva e disciplinada, pura, religiosa e sem vaidade, são algumas das características que podemos deduzir daquilo que se esperava de uma mulher abençoada, estando, certamente, qualquer mulher que se insubordinasse a isso, propensa a queimar na fogueira da Inquisição. Assim, observamos que nessa mulher “destaca-se claramente a apologia do sofrimento santificador, do radical desprezo pelas vanidades passageiras desse mundo imperfeito, em prol do alcance da vida perdurável para sempre” (MALEVAL, 1995: 73).

À mulher virtuosa não caberia, pois, rebelar-se ou, até mesmo, questionar os desmandos que lhe fossem impostos – no caso, pela sociedade, marido, costumes ou doutrina religiosa – mas acatá-los como verdade única, aceitando-os como máximas para sua existência. Acima da mulher está o homem, acima do homem está a Igreja e junto à Igreja está Deus, aquele que fora desobedecido pela mulher e, portanto, aquele que, ainda por misericórdia, lhe oferece uma posição no mundo.

Desse modo, oposta a essa mulher é a mulher-demônio, aquela que, descendente de Eva, ocupa a pior posição na cadeia da vida. Agindo sempre por seus próprios meios e sendo sujeito de sua vida, essa mulher não aceita sua condição na sociedade e luta por condições iguais, isto é, procura ser senhora de sua vida. Por isso, devido a essa insubordinação, essa mulher é encarada como o próprio diabo, já que, ao buscar ser senhora de si, rompe com o poder estabelecido, dirigindo-se à marginalidade – não se sujeita a homem algum, uni-se por amor, enfrenta a família, continua utilizando-se de ungüentos para curar, enfim, rompe com os grilhões da ideologia cristã na tentativa de deixar de ser um cadáver ideal e ser uma pessoa real e, tudo isso, ainda que a fogueira esteja próxima.

Blimunda: a mulher-demônio
atuando no campo do sagrado

Blimunda, personagem impulsionadora de Memorial do Convento, é aquela que, embora feminina, age juntamente com Baltasar e padre Bartolomeu no intuito de realizar um sonho: a construção de uma passarola. Ela não é passiva ou simplesmente o objeto do desejo de Baltasar, mas uma mulher que possui força e opinião e, além disso, conta com poderes sobrenaturais: é capaz de enxergar dentro das pessoas.

Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra. (SARAMAGO, 2001: 53)

Filha de uma mãe feiticeira “condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola” (Idem, ibidem, p. 51), os poderes de Blimunda também não poderiam ser aceitos pela Inquisição – mantendo-os ela em segredo por todo o tempo. No entanto, Blimunda é amiga de um religioso que conhece seus poderes e que os utiliza para construir sua máquina voadora (Blimunda é aquela que recolhe as vontades humanas). Assim, constatamos, então, um laço fraternal que envolve uma mundana e um religioso numa época em que magia e religião não poderiam estar envolvidas. Quanta heresia!

Sim, há muita heresia nesse romance. E é justamente por meio de sua ação que vamos avaliar os desvios inseridos por Saramago no campo do sagrado.

Primeiramente, notamos que, apesar de referir-se a uma mulher, Saramago abre um espaço em sua narrativa para falar sobre seus poderes sobrenaturais e não para descrevê-la como o objeto de desejo de Baltasar, este que, quando a vê, impressiona-se com os olhos envolventes que ela tem e não com seu corpo – este que nem sabemos como é. Assim, percebemos haver aí um tratamento respeitoso do narrador em relação à cristã-nova. O que, sem dúvida, não podemos afirmar a respeito do tratamento que o mesmo dá à rainha D. Maria Ana, “que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou” (Idem, ibidem, p. 11) (grifo meu).

Dessa maneira, notamos o quanto Saramago inverte posições já então estabelecidas, manifestando, assim, algo já tão comum em seus romances: a dialética entre o dominador e o marginal, cabendo sempre ao marginal a verdadeira ótica responsável pelo desenvolvimento de seu romance. Optando pelo profano (Blimunda), o romance deixa de lado o sagrado (a rainha), realizando algo que, segundo Silva (1989), é a maior heresia desse romance, isto é, a concentração do discurso sob a ótica daqueles que transgridem o poder.

Na prioridade que o discurso concede ao ficcional já vimos como a passarola foi privilegiada ao longo do romance. A construção do convento é parcialmente escamoteada, enquanto a construção da passarola é acompanhada passo a passo, e só depois que assistimos à sua ascensão e à sua queda, o convento garante a liderança da narrativa. Entretanto, ainda assim, essa liderança é ilusória, pois mais uma vez a passarola rouba para si o privilégio do olhar do narrador e o momento, supostamente climático, da construção do convento – a sua sagração – é roubado ao leitor que, em seu lugar, vai ser informado sobre o destino de Baltasar, que voara na passarola (...) (SILVA, 1989: 97).

A transgressão do poder em Memorial do Convento permite-nos constatar a opção por um tipo de ideologia revolucionária que rompe com a tradição e com o conservadorismo religioso da época. Saramago cria personagens que, apesar da imagem rebelde, são pessoas que respeitam suas próprias regras, isto é, agem de acordo com suas convicções e desejos, lutando por aquilo que acreditam. Bartolomeu, Baltasar e Blimunda são representantes de uma nova trindade, trindade esta que traz uma nova proposta: a liberdade, seja ela de crença, de expressão, de vontade, de sonho, do corpo... enfim, de tudo aquilo que é constantemente reprimido pela Igreja, aquela que se diz defensora e seguidora da verdadeira Santíssima Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo. Segundo as reflexões de padre Bartolomeu e de Domenico Scarlatti, a ação conjunta dessa nova trindade possibilitaria a realização de um sonho – o vôo da passarola:

Não irei revelar o segredo último do vôo, mas, tal como escrevi na petição e memória, toda a máquina se moverá por obra de uma virtude atractiva contrária à queda dos graves, se eu largar este caroço de cereja, ele cai para o chão, ora, a dificuldade está em encontrar o que faça subir, E encontrou, O segredo descobri-o eu, quanto a encontrar, colher e reunir é trabalho de nós três, É uma trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito santo, Eu e Baltasar temos a mesma idade, trinta e cinco anos, não poderíamos ser pai e filho naturais, isto é, segundo a natureza, mais facilmente seríamos irmãos (...) Quanto ao espírito, Esse seria Blimunda, talvez seja ela a que mais perto estaria de ser parte numa trindade não terrenal... (SARAMAGO, op. cit, p. 164-165).

Eis, então, a trindade terrestre abençoada pelo romance. Trindade, esta, composta por um ex-soldado maneta, por um padre que contesta a doutrina a qual está atrelado e, ainda, por uma “cristã-nova” (que, ainda que condenável pela Igreja, é, segundo padre Bartolomeu, a prova humana de uma natureza mais próxima do espiritual).

Realmente, Blimunda é uma mulher diferente, pois é a única que tem a capacidade de enxergar e não somente olhar como os demais. E o que vê Blimunda? Blimunda é aquela que percebe que o sagrado enquanto religião institucionalizada representa o domínio repressivo dos instintos do corpo individual e do corpo coletivo. Ela passa por cima do poder supremo do Rei e da Igreja, que prima pela igualdade de todos, ou seja, todos devem ser e agir de uma determinada maneira, sendo considerada heresia toda e qualquer variação de conduta. Dessa forma, abre-se um espaço para uma nova teologia, teologia, esta, que, partindo dos desígnios do sagrado – concepções já cristalizadas pela religião – busca humanizá-los, dessacralizá-los. Isso porque, como afirma Clément (2001), o “sagrado entre as mulheres exprimiria uma revolta instantânea que atravessa o corpo, e que grita.” (CLÉMENT, 2001: 17)

Desse modo, percebemos na ação de Blimunda uma forte colaboração para o advento de grandes transformações no campo do sagrado, uma vez que, diferente da maioria das mulheres de sua época, ela fez sua opção. Blimunda e Baltasar não estão para o mundo como o rei e a rainha estão, pois, como transgressores, escolhem-se, não fazem de sua união um martírio; unem-se naturalmente por meio de um ritual nada cristão testemunhado por padre Bartolomeu:

Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito que sim antes de perguntada, Então declaro-vos casados. O padre Bartolomeu Lourenço esperou que Blimunda acabasse de comer da panela as sopas que sobejavam, deitou-lhe a benção, com ela cobrindo a pessoa, a comida e a colher, o regaço, o lume na lareira, a candeia, a esteira no chão, o punho cortado de Baltasar. Depois saiu. (SARAMAGO, op. cit., p. 54)

Sendo assim, a forma como se dá a união entre Baltasar e Blimunda parece vir a comprovar o que vem sendo ressaltado a respeito do surgimento de uma nova teologia em Memorial do Convento, teologia, esta, cuja doutrina rompe totalmente com o dogmatismo cristão no que concerne aos votos matrimoniais. A troca de talher, ou seja, a espera pelo objeto com o qual se alimenta Baltasar, faz com que Blimunda compartilhe com seu escolhido o pão/colher, assim como Jesus Cristo o fez com seus eleitos durante a Santa Ceia. Nesse sentido, da mesma forma que Jesus, Blimunda escolhe seu companheiro, este a segue e a ela se une. E tendo isso acontecido, padre Bartolomeu – nesse momento, entre os desígnios do sagrado e a magia do profano – não só os abençoa, como também a seu lar, deixando-os em seguida.

Eis, então, uma nova doutrina. Saramago nos apresenta, simbolicamente, um novo tipo de união, uma união que não se dá somente no âmbito dos corpos, mas, principalmente, que ocorre entre almas: “... e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu...”. De acordo com essa nova doutrina, o matrimônio vem a representar uma comunhão entre almas, ou melhor, a união entre duas pessoas que reúnem em uma só as suas vontades.

Ainda a respeito da semelhança entre essa união e o sacrifício de Jesus por seu povo, temos a presença do sangue, visto que, ao entregar-se a Baltasar, Blimunda o unta com seu próprio sangue, assim como fez Cristo para livrar-nos de todos os pecados:

Tomai, comei. Isto significa meu corpo. Tomou também um copo, e, tendo dado graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele, todos vós; pois isto significa meu sangue do pacto, que há de ser derramado em benefício de muitos, para o perdão dos pecados. Eu vos digo, porém: Doravante, de modo algum beberei deste produto da videira, até o dia em que o beberei novo, convosco, no reino de meu Pai. (BÍBLIA SAGRADA 26: 26-28)

Não estaria Blimunda, ao untar o peito de Baltasar, retomando um ato cristão? Não estaria ela, com seu sangue, consagrando sua nova e eterna aliança de amor com Baltasar? Não seria a este casal, assim tão íntimo do profano e tão próximo do herético, que a Igreja deveria reconhecer como legítimo para religião?

Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue. (SARAMAGO, op. cit, p. 55)

E, nessa relação, a paz se estabeleceu. Sim, como Sol e Lua, como luz e escuridão, como dia e noite, enfim, como um homem e uma mulher que, apesar de estranhos um para o outro, se unem, deixando de lado suas diferenças e, como testemunha, têm esse Memorial – esse documento que revela o marginal, explora o avesso e que, desprovido de medo, abre um espaço para a “heresia”.

Desse modo, notamos que o diálogo estabelecido entre o sagrado e o profano, a todo momento, se fortalece nesse Memorial, visto que não só o seu discurso como também suas personagens são instrumentos para avaliar os domínios concernentes a tal dualidade – limites da heresia x limites da cristandade. Para isso, Saramago traça perfis distintos: rei/rainha x Baltasar/Blimunda, sonho x opressão, liberdade x Inquisição, passarola x convento, enfim, tudo que se relaciona à nova doutrina vem a estabelecer oposição à doutrina cristã – é a verdadeira batalha entre o sonho e a castração.

Dessa maneira, observamos haver nessa obra algo que está para além da simples ironia ou do próprio absurdo, vemos, sim, nesse romance, uma iniciativa que busca abolir a figura da mulher enquanto elemento e arma do demônio, uma vez que percebemos nela uma capacidade de liderança e um senso de direção nem sempre tão presentes nas mocinhas de contos de fadas ou das sagradas escrituras. Saramago, por meio de sua subversão dos fatos, isto é, preenchendo as brechas deixadas pela História com seu olhar crítico, busca destacar uma mulher que, apesar de estar taxativamente posicionada no campo do profano, em sua ficção, exerce liderança no campo do sagrado.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios. Transgressão transigência na sociedade urbana colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Maltese, 1962.

CLÉMENT, Catherine; KRISTEVA, Julia. O feminino e o sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

KRAMER, Heinrich e SPENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2004.

MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Mulheres “exemplares” no Orto do Esposo. In: Rastros de Eva no imaginário ibérico. Santiago de Compostela: Laiovento, 1995.

––––––. Representações diabolizadas da mulher em textos medievais. In: DAVID, Sérgio Nazar. As mulhesres são o diabo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004.

MURARO, Rose Marie. Breve Introdução Histórica. In: KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2004.

SARAMAGO, José. Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. Memorial do Convento ou a História da Repressão da Utopia. In: José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989.

PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas” 1600-1774. 2ª ed. Coimbra: Notícias, 2002.

 

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