COMO TORNAR AS TEORIAS SOBRE A LINGUAGEM
APLICÁVEIS AO ENSINO DO PORTUGUÊS

Helênio Fonseca de Oliveira (UERJ)

A linguagem é um objeto de estudo que se presta a múltiplas abordagens. Dentre as disciplinas que dela se ocupam, cada qual com suas divergências teóricas internas, podemos citar a gramática, a filologia, a lingüística do texto, a lingüística da frase (ou lingüística propriamente dita), a análise do discurso, a retórica, a sociolingüística, a estilística da língua, a estilística a literária, a estilística normativa, a psicologia da cognação, a filosofia da linguagem, a psicolingüística etc.

Há uma constante produção de saber nessas áreas, tanto no Brasil quanto no exterior, e os conhecimentos produzidos ou não são levados em conta no ensino escolar ou são para ele transplantados sem a devida aclimatação, sem que sejam, portanto, verdadeiramente aplicados ao ensino.

Há pouco tempo, por exemplo, uma lingüista teórica declarou, em matéria publicada num jornal de grande circulação, que não há mal em se colocar vírgula entre o sujeito e o predicado, com o argumento de que, na fala, é possível a ocorrência de pausa entre esses dois constituintes, como parte de um processo de topicalização.

De fato, a pausa após o sujeito é possível na fala e pode estar a serviço da topicalização, ou seja, pode-se pronunciar uma frase como “O Paulo vai casar com a Renata” com uma pausa depois de Paulo, destinada a fazer do sujeito o tópico da frase, ou, em linguagem mais “leiga”, destinada a dar um destaque ao sujeito. Isso pode ocorrer também com o objeto direto, como em “O relógio, eu não vi”, ou com o indireto, como em “Ao Bruno, eu não entreguei nada”, bem como com outros constituintes da oração.

Há, contudo, um equívoco no raciocínio da lingüista. As regras de pontuação da gramática escolar, praticadas na variedade formal culta da língua, só permitem a vírgula quando a topicalização resulta na ordem inversa, deslocando para o início da frase constituintes que normalmente ficariam depois do verbo, como o objeto direto e o indireto.

O que acontece é que o mais forte “candidato” a sofrer topicalização é precisamente o sujeito, que é freqüentemente o tema da oração. Ora, estabelecer que não se deve usar vírgula entre o sujeito e o predicado, mesmo quando se topicaliza o sujeito, é uma decisão razoável, tanto quanto a de pôr acento nos paroxítonos que terminam, digamos, em r (para dar apenas um exemplo), mas não nos oxítonos assim terminados, já que há mais oxítonos em r do que paroxítonos, ou seja, é a opção pelo uso de notações – sejam acentos gráficos ou vírgulas – nos casos menos freqüentes, evitando-se, desse modo, sobrecarregar o texto com excesso de grafemas como acentos e vírgulas. Alguns autores abrem uma exceção para as frases em que o sujeito é excessivamente longo, mas a tendência da maioria é generalizar a regra para todos os contextos.

Legitimar o uso da vírgula entre o sujeito e o predicado em nome da topicalização é o mesmo que legitimar formas como “mantesse”, “suposse”, “opita” etc. em nome da analogia. O raciocínio do tipo “resulta da analogia (ou da topicalização), logo é aceitável” parte de uma premissa falsa: a de que todo fato lingüístico que resulta de um conjunto de operações mentais é válido, no sentido de pedagogicamente válido, isto é, de hábito lingüístico que o professor deve estimular o aluno a cultivar. Como todos os fenômenos de uso do idioma resultam de tais operações, todos seriam didaticamente válidos. Portanto, da possibilidade de se topicalizar o sujeito não se conclua que se deva estimular o aluno a, na língua escrita, empregar vírgula nessa posição, como não se pode concluir do fato de “mantesse”, “suposse” e “opita” resultarem da analogia (como de fato resultam) que não se devam corrigir essas formas na redação do aluno.

Quem se dedica à ciência “pura” às vezes não está sensibilizado para o que é relevante na aplicação dos conhecimentos para cuja produção contribui, não tendo muitas vezes uma visão clara de como a tecnologia e a ciência interagem. Julgar uma com os valores da outra pode levar a equívocos. A aplicação das teorias sobre a linguagem ao ensino do português é ciência aplicada e ciência aplicada é tecnologia. O que é relevante na física teórica pode não o ser na física aplicada à produção de motores de automóveis. A hierarquia das prioridades não é a mesma.

Cada profissional é condicionado a perceber certos aspectos da realidade e a ficar cego para outros, como aquele professor que tinha em casa um móvel produzido artesanalmente por um marceneiro e foi visitar um amigo desenhista industrial. Quando este – que pretendia mandar fazer um móvel igual – lhe pediu que desenhasse a peça, desistiu de aproveitar o desenho, ao ver que, desenhada como estava, determinada gaveta cairia quando se abrisse a porta por cima da qual ficava. O desenhista inexperiente se esquecera de registrar a existência de uma tira horizontal de madeira que ficava entre a gaveta e a porta. Essa insensibilidade para com aspectos não explorados pela profissão que se exerce verifica-se não só entre atividades completamente diferentes, como nesse exemplo, mas também entre o especialista da forma “pura” e o da aplicada da mesma ciência.

Mas voltemos à pontuação. Apesar de a vírgula ter a função de representar uma pausa, nem toda pausa é representada por vírgula e nem toda vírgula corresponde obrigatoriamente a uma pausa. O ritmo da fala pode ser mais pausado ou mais rápido, o que torna a correlação entre pausas e vírgulas muito fluida.

A fonologia natural, em voga no final da década de 70 e início da de 80, referia-se aos vários ritmos de pronúncia, utilizando com eles a nomenclatura dos andamentos, tomada de empréstimo à teoria musical. No caso do texto escrito, o andamento da leitura é em grande parte uma decisão do leitor, e não do autor. É o leitor quem decide sobre a velocidade com que vai ler, mas é o autor quem pontua o texto.

Isso quer dizer que, ao formularmos regras para o emprego da vírgula, temos de escolher entre uma flexibilidade quase impossível de codificar para fins didáticos (adotar-se-ia um conjunto de regras para cada andamento?) ou uma vinculação da pontuação à sintaxe, como faz a tradição escolar, o que é evidentemente a melhor opção, até por que nossa gramática “mental” contém regras que correlacionam a hierarquia das pausas com as fronteiras sintáticas. Não há pausa, normalmente – para dar apenas um exemplo – entre o artigo e o substantivo, a não ser que se trate de um recurso estilístico ou que entre os dois haja um filler (som que produzimos, na fala espontânea, enquanto pensamos no que vamos dizer a seguir, como que para ganhar tempo).

E, como todo texto é produzido numa situação comunicativa concreta, há também um aspecto discursivo nos sinais de pontuação. Por exemplo: os dois-pontos têm valor catafórico, as reticências podem estar a serviço do suspense e assim por diante. O emprego dos sinais de pontuação fica, por conseguinte, na interseção da prosódia com os estudos do discurso e com a sintaxe. A pontuação foi criada para refletir a prosódia, no entanto a reflete com limitações, decorrentes da diferença estrutural que há entre fala e escrita. Regras como a de que o aposto explicativo fica entre vírgulas, a de que não se usa vírgula entre o sujeito e o predicado, a de que o vocativo fica entre vírgulas e outras do gênero – que são uma convenção necessária – exploram a correlação existente entre sintaxe e pontuação.

Há aspectos das línguas sobre os quais é difícil, às vezes impossível, estabelecer regras artificialmente. Certa vez, por exemplo, um reformador ortográfico propôs simplificar o plural dos nomes em “ão”, aplicando a eles a regra geral de plural dos nomes, ou seja, acrescentando-lhes apenas o morfema “s”, o que resultaria em plurais como “opiniãos”, “canhãos”, “grandalhãos” etc. A proposta era obviamente ingênua e, além do mais, não se referia ao sistema ortográfico, e sim à flexão nominal. Ocorre, no entanto, que certas convenções, sobretudo as exclusivas da escrita, como é o caso das regras de pontuação, são necessárias e podem ser estabelecidas com relativa facilidade.

Os médicos empreenderam recentemente, como sabemos, uma reforma na nomenclatura da anatomia, o que equivale a “legislar” sobre a língua, uma vez que o léxico também faz parte do idioma e a terminologia especializada da ciência também faz parte do léxico. Na verdade, quanto mais artificial for um aspecto da língua, mais fácil será interferir artificialmente nele. As terminologias científicas são, pois, mais “legisláveis” que o léxico da conversação cotidiana, como a ortografia o é mais que a flexão nominal. Por isso foi possível implantar, por meio de um decreto-lei, o sistema ortográfico atualmente em vigor. A ortografia, sendo exclusiva da escrita, é inteiramente adquirida na escola, abstração feita de uma ou outra palavra ou expressão a que os olhos da criança se acostumam desde cedo, principalmente por influência da televisão, como certas logomarcas, por exemplo.

Havia, no passado, autores, como Barbosa (1887), que – a nosso ver acertadamente – tratavam a pontuação como parte da ortografia. De fato, a fonologia segmental está para o que conhecemos hoje como ortografia, assim como os estudos da entoação e das pausas estão para a pontuação. Se admitimos a existência de uma fonologia no nível da frase, por que não considerar que as regras de pontuação pertencem a uma ortografia nesse nível? Quer-nos parecer que tenha sido isso o que levou Barbosa a incluir a pontuação na ortografia.

Quanto à hipótese de se formularem regras excessivamente flexíveis de pontuação, é didaticamente contra-indicada e reveladora de desconhecimento dos conceitos sociolingüísticos de graus de codificação da variedade padrão da língua e de maturidade dessa variedade – sobre isso ver Oliveira (2004). Quanto mais alto for o grau de codificação de tal variedade, mais madura ela será. A história externa da língua portuguesa é uma longa caminhada da não padronização para a padronização, revelando, portanto, um processo de amadurecimento, apesar de ainda existirem nela aspectos “imaturos”. Embora padronização do galego, por exemplo, se encontre num estágio menos avançado que a do português, a deste, por sua vez, está menos avançada que a do francês, para exemplificar com um idioma altamente maduro, nesse sentido do termo. Pelo número de regras facultativas na gramática normativa de uma língua, pode-se ter uma idéia do grau de maturidade de sua variedade padrão. Quanto menos regras facultativas, maior a maturidade.

Os manuais de redação dos jornais ilustram bem o repúdio que os usuários da língua padrão têm pela facultatividade, codificando o que não está codificado pela tradição escolar, isto é, tomando posição nos casos em que esta é omissa e fazendo sua escolha nos que ela dá como facultativos. Se a escola não estabelece uma norma ou o faz de modo flutuante, os grupos profissionais que necessitam da padronização da variedade formal culta do idioma (ou língua padrão) tendem a estabelecê-la. A codificação dessa variedade não é, pois, um capricho de uma tradição escolar anticientífica, mas uma necessidade social. Se, do fato de se ter lidado mal até hoje com o aspecto normativo do ensino da língua, concluirmos que ele deva ser banido, estaremos jogando fora o bebê junto com a água suja.

Como a criança, ao ingressar na escola, já fala a língua de seu país, o ensino escolar da língua nacional, compreensivelmente, tende a enfatizar a leitura e a produção de textos escritos (redação e interpretação textos). Podemos dizer, portanto, que os principais objetivos gerais do ensino do português como língua materna são: capacitar o aluno a interpretar textos (leitura) e capacitá-lo a produzir uma prosa formal não literária de boa qualidade (redação). Isso não implica desprezar a modalidade falada do idioma, negligenciando as atividades de expressão oral. Significa apenas priorizar a escrita, sem abandonar a fala.

Vistas as coisas dessa maneira, chega-se à conclusão de que o aprendizado da gramática tem de estar, em grande parte, a serviço da aquisição das habilidades necessárias à redação (o ensino de interpretação de textos depende, como veremos mais adiante, de outros fundamentos teóricos). Objetivos específicos como os de capacitar o aluno a pontuar, a fazer as concordâncias, a grafar corretamente as palavras etc. subordinam-se, dentro dessa visão, ao objetivo geral de torná-lo capaz de redigir.

Como o conjunto desses objetivos “consome” uma carga horária muito grande (boa parte das horas destinadas ao idioma nacional na escola são por eles preenchidas e não há como ser diferente), torna-se indispensável, para que não ocupem mais espaço do que o inevitável, a seleção de noções, limitando o ensino da gramática às verdadeiramente operacionais. O aprendizado de redação não deve restringir-se à gramática, mesmo que à centrada nele, mas não se pode negar que as noções gramaticais fazem parte desse aprendizado.

Aprender a redigir inclui também a aquisição de habilidades como as de fazer escolhas estilísticas, empregar o vocabulário com adequação, utilizar os variados mecanismos de coesão textual da língua, planejar a produção do texto, bem como as de narrar, descrever e argumentar por escrito.

O ensino de interpretação de textos, ao contrário, envolve habilidades bem diferentes dessas. Descodificar mensagens é uma operação bem distinta da de codificá-las. Nas aulas de interpretação o professor terá de operar com conceitos como inferência, polifonia, sujeitos do discurso, projeto de comunicação, modos de organização do texto, bem como informar os alunos sobre os contratos de comunicação dos gêneros textuais que pretenda levá-los a interpretar. Operar com esses conceitos não quer dizer teorizar sobre eles num plano abstrato, mas realmente torná-los operacionais, isto é, capazes de ajudar o aluno a interpretar textos. A forma de fazer isso, no entanto, seria assunto para outro trabalho.

Aqui nos limitamos a lembrar que o ensino de interpretação de textos e o de redação têm conteúdos e objetivos – e por conseguinte métodos – bem distintos, necessitando, portanto, de diferentes fundamentações teóricas. O primeiro pode beneficiar-se, entre outras, de disciplinas como a análise do discurso, a lingüística do texto (mais daquela que desta) e a semântica argumentativa. O segundo encontrará fundamentos muito úteis na parte “saudável” gramática escolar, na estilística normativa (por incrível que pareça!), bem como na lingüística do texto e na semântica argumentativa (estas úteis a ambos os objetivos) e ainda na descrição – feita pela lingüística stricto sensu – da gramática internalizada do aluno, isto é, de sua gramática “mental”.

A julgar pelo caráter utilitário da nossa proposta, poderia parecer que não resta nela espaço para o estudo científico da linguagem, contudo isso não é verdade, até porque teorizar pode às vezes ser muito prático.

Segundo nosso colega Humberto Menezes, em comunicação feita há alguns anos num congresso da ASSEL, “ensina-se teoria gramatical” (no sentido amplo do termo, que é o de teoria lingüística) “para que o estudante tenha acesso ao conhecimento consciente do sistema de sua língua, assim como tem acesso ao conhecimento de biologia, física, matemática, geografia, etc.” – cf. Menezes (1994). O grifo é nosso. Um dos objetivos do ensino da língua materna seria, segundo essa visão, fazer o aluno entender o que é uma língua, em que consiste a natureza da linguagem, como as línguas evoluem etc. – abordar, enfim, a linguagem de um ponto de vista científico.

Não há dúvida quanto à validade desse objetivo, que é da mesma natureza que o de entender como os vegetais se reproduzem, por que o fogo queima, por que os planetas giram em torno do Sol etc. O que se pode discutir é em que altura da hierarquia das prioridades ele se situaria. Pode-se unir o alético ao útil, trabalhando, sim, com o aluno tal objetivo, mas a partir de noções aplicáveis à aquisição de habilidades. Mais adiante daremos uma idéia de como isso pode ser feito.

É bom não esquecer que, em qualquer hipótese, com ou sem a preocupação da aplicabilidade, vamos ter de selecionar noções, porque o sistema de uma língua é um mecanismo tão complexo, que nunca o descreveríamos em toda a sua totalidade no ensino escolar. Sendo assim, que se privilegiem as noções de maior aplicabilidade prática.

Ao que parece, a mente humana detesta lacunas, não gosta de incompletude. O porquê de uma regra ajuda a fixar-lhe a aprendizagem (e quanto mais inteligente é o aluno, menos ele se contenta com o quê sem o porquê). A título de ilustração, tomemos como exemplo duas regras de utilidade inquestionável no ensino de redação (porque o aluno, ao redigir, freqüentemente hesita nas estruturas sintáticas a que elas se referem):

1ª – Quando um único adjetivo modifica dois ou mais substantivos, o adjetivo fica no plural e no gênero comum aos substantivos, prevalecendo o masculino se os gêneros forem diferentes (fizemos abstração da concordância “atrativa”). Exemplos:

Ø “Encontrei mortAS, perto da ponte, uma cabra e uma vaca” (mortAS, porque cabra e vaca são substantivos femininos).

Ø “Encontrei mortOS, perto da ponte, um burro e uma boi(mortOS, porque burro e boi são substantivos masculinos).

Ø “Encontrei mortOS, perto da ponte, um burro e uma vaca” (mortOS, porque burro é masculino e vaca é feminino, prevalecendo, portanto, o masculino).

2ª – O verbo impessoal (entendido como aquele que não tem sujeito semanticamente preenchido) fica na terceira pessoa do singular, daí choveu ontem” e nãochoveram ontem”, ou chovi ontem”, “chovemos ontem” etc. e houve problemas”, “havia duas moedas na gaveta”, e não houveram problemas”, “haviam duas moedas na gaveta” etc.

O que faz prevalecer o masculino no primeiro caso e a terceira pessoa do singular no segundo é o mesmo princípio, a saber, o de que, em determinados contextos, em que há possibilidade de hesitação do falante, se dá preferência ao membro não mercado da oposição envolvida, que nos pares masculino/feminino e singular/plural são, respectivamente, o masculino e o singular e, entre as pessoas gramaticais, é a terceira. Por isso, quando existe a possibilidade de dúvida entre masculino e feminino, predomina o masculino, que é o gênero não marcado. É por isso que nos referimos a um animal felino doméstico cujo sexo ignoramos como “gato”. Se estamos informados do sexo do animal, empregamos “gata“ ou “gato”, conforme se trate, respectivamente, da fêmea ou do macho. Em dúvida, empregamos com o masculino, que é o gênero não marcado.

Quanto aos verbos impessoais, a explicação para prevalecer a terceira pessoa do singular é que existe uma regra em português segundo a qual o verbo concorda com o núcleo do sujeito (“o filho dos alemães saiu”, “os filhos do alemão saíram) e a flexão número-pessoal é obrigatória, portanto a forma verbal tem de ficar na primeira, segunda ou terceira pessoa do singular ou na primeira, segunda ou terceira do plural, o que nos dá seis possibilidades, não havendo uma sétima. Portanto, quando não há sujeito com que concordar, emprega-se automaticamente a pessoa não marcada (que é a terceira) e o número não marcado (que é o singular), o que resulta em choveu ontem”, “houve problemas”, “havia duas moedas na gaveta” etc.

Os exemplos são inúmeros. Voltando à categoria de gênero, é ainda o masculino que prevalece em português, quando temos de “concordar” um adjetivo com uma oração, como em “é bom fazer isso”. Como oração não têm gênero, prevalece, nesse caso, o masculino, que é o gênero não marcado. Na verdade, nas línguas em geral, o gênero não marcado é em princípio o neutro, que cede lugar ao masculino nos idiomas em que só há masculino e feminino. Essa frase em latim, por exemplo, fica “bonum est hoc facere”, com a forma neutra do adjetivo.

Há, pois, um princípio universal da linguagem humana, segundo o qual, nos casos em que poderia haver hesitação quanto ao membro de uma oposição a ser empregado, prevalece o membro não marcado – que doravante denominaremos “curinga”. O curinga é, portanto, o elemento que se usa em determinadas situações de hesitação previstas na gramática “mental” dos falantes. O curinga dos gêneros é o neutro (ou o masculino, se não existir neutro na língua em questão). O dos números é o singular. O dos tempos é o presente. O dos modos é o indicativo. O das pessoas é a terceira. O das vozes é a ativa. O dos aspectos (na oposição entre o durativo e o pontual) é o durativo.

Um ensino desse tipo não só fornece ao aluno as informações necessárias ao uso da língua em situações reais de comunicação, ajudando-o a dirimir suas dúvidas quanto à variedade formal culta do idioma, mas também lhe permite entender, à luz de princípios universais da linguagem humana, o porquê das regras que terá de aplicar ao redigir, unindo, assim, aquisição de habilidades lingüísticas e conhecimentos científicos sobre a linguagem, sem falar no fato (didático) de que a justificativa racional de uma regra é talvez o melhor recurso mnemônico para a sua fixação.

Faríamos apenas a ressalva de que o professor, na gestão do tempo disponível para suas aulas, quando tiver de decidir entre o aspecto científico e o operacional, deverá, a nosso ver, privilegiar o operacional. E, por outro lado, como vimos, mesmo essa faceta científica do ensino da língua deve ser trabalhada de preferência com noções úteis à aquisição de habilidades.

Outro objetivo do ensino da gramática da língua materna é fornecer ao estudante a metalinguagem necessária ao aprendizado de línguas estrangeiras. Às vezes o aluno, ao estudar outros idiomas, encontra dificuldade na nomenclatura gramatical porque não a conhece em nenhuma língua, nem na sua própria.

Uma questão interessante também é a da qualidade da teoria gramatical a ser adotada. Aqui, o problema que se põe é o seguinte: diante de duas análises do mesmo fenômeno lingüístico, devemos ficar com a da tradição escolar, para não “tumultuar” o ensino, ou com a análise cientificamente mais aceitável? Por exemplo: segundo a tradição, o adjunto adverbial fica facultativamente entre vírgulas. Ainda segundo essa tradição, o vocábulo muito de A Joana é muito tímida é um adjunto adverbial de intensidade, o que levaria à conclusão – absurda – de que essa palavra poderia ficar, facultativamente, entre vírgulas: *A Joana é, muito, tímida.

Felizmente o aluno intui que o emprego dessas vírgulas é inadmissível, de modo que, na prática, ele dificilmente cometerá um erro como esse ao redigir, mas fica evidente que se trata de uma incoerência, que consiste num conceito incorreto de advérbio. O verdadeiro advérbio é o que modifica o verbo. A idéia de que advérbios possam modificar adjetivos e outros advérbios é equivocada. Portanto, a falha da tradição escolar não está na regra de que adjuntos adverbiais ficam facultativamente entre vírgulas, que é boa e válida, mas no conceito de advérbio.

Como lidar, então, com as imperfeições da teoria gramatical subjacente à descrição escolar do português? Há pesquisadores, como Mário A. Perini, que vêm procurando formular uma teoria gramatical consistente como base para o ensino escolar – cf. Perini (1985 e 1997). A experiência nos ensinou, porém, que uma “reforma” da teoria, embora à primeira vista pareça que não, depende de uma decisão em nível no mínimo nacional. Não está, pois, ao alcance do professor, pessoa física, que pode, quando muito, fazer ligeiros reajustes nos pontos mais nevrálgicos.

Enquanto tal reforma não acontece, cabe ao professor administrar a transição, numa atitude discretamente crítica para com a tradição escolar, o que implica trabalhar de “boa vontade” com ela, ficando intransigente apenas com os aspectos mais prejudiciais à aquisição de habilidades. Urge, portanto, promover essa reforma.

Convém ressaltar que estamos falando de um aspecto específico do ensino da língua, a saber, a qualidade da teoria gramatical. Há inovações, no entanto, que o professor pode empreender a qualquer momento, caso deseje, como é o caso, entre outros, da substituição da atitude tradicional sobre o correto e o incorreto na linguagem por uma postura mais flexível ­– sobre isso ver Oliveira (1999) e Oliveira (2003) – e da mudança de um ensino centrado na frase para um trabalho sensível ao texto, que leve em conta inclusive a situação comunicativa em que este é produzido.

O que depende de uma decisão coletiva – embora não necessariamente tomada de cima para baixo – é o aprimoramento da qualidade da teoria gramatical utilizada, bem como da descrição lingüística daí resultante.

Outra inovação que o professor pode promover a qualquer momento é a formulação de regras ainda não explicitadas pela tradição escolar, mas necessárias ao ensino da redação. Observe-se, a esse respeito, este exemplo, colhido num trabalho acadêmico de um estudante do primeiro período: “Essa decisão independe das necessidades sociais, e sim dos interesses pessoais daqueles que detêm maior fatia de poder”. O correto, como sabemos, seria “Essa decisão não depende das necessidades sociais, e sim dos interesses pessoais daqueles que detêm maior fatia de poder”, visto que a locução “e sim” tem de ser precedida por uma estrutura que contenha a palavra “não”, que não pode ser substituída por prefixos negativos. São, portanto, agramaticais frases como *Independe disto, e sim daquilo; *Desgosta de pêra, e sim de maçã; *Descumpriu a primeira tarefa, e sim a segunda. As construções bem formadas são Não depende disto, e sim daquilo; Não gosta de pêra, e sim de maçã; Não cumpriu a primeira tarefa, e sim a segunda etc.

Quando o aluno apresenta falhas redacionais desse tipo – pra as quais a gramática escolar não tem respostas explícitas – compete ao professor, com base em sua intuição de usuário maduro da língua, identificar a regra “infringida” e promover atividades didáticas que levem o estudante a aplicá-la em sua redação.

Cabe aos cursos universitários de Letras, por meio do trabalho conjunto dos professores de Língua Portuguesa e dos de Lingüística, desenvolver nos futuros professores a capacidade para – a partir da observação de um corpus – formular regras desse tipo, descrevendo aspectos ainda não descritos da língua, pelo menos não nos livros didáticos. Trata-se de regras da nossa gramática mental (ou gramática internalizada), que o professor formula para fins didáticos e que, uma vez explicitadas e ensinadas na escola, passarão com o tempo a incorporar-se à gramática escolar.

As falhas desse tipo variam de um estabelecimento de ensino para outro, bem como de região para região, mas deve haver um denominador comum de incorreções muito freqüentes em todo o território nacional e em todas as instituições de ensino. É preciso desenvolver projetos de pesquisa nesse sentido, para verificar – tabus à parte – em quê nossos estudantes estão errando, a fim de definir prioridades para o aprendizado da língua, ou, mais exatamente, para a parte prescritiva (ou normativa) desse aprendizado.

Existe um aspecto prescritivo no ensino da língua e é possível cuidar bem dele. Nem todo normativismo é necessariamente ruim e, como não temos uma idéia clara dos erros que nossos estudantes cometem, urge empreender pesquisas nesse sentido. Poder-se-ia argumentar que, levando o aluno a cultivar o hábito e o prazer da leitura, resolvemos boa parte dos problemas de uso incorreto da língua padrão. Isso é verdade, mas ainda assim resta a esse normativismo saudável a tarefa de aparar as arestas. Quanto mais o aluno ler, menos arestas desse tipo haverá, mas, por mais que ele leia, sempre existirão.

A leitura está para o aprendizado da língua materna, assim como a imersão em ambientes onde se fale a língua está para o de idiomas estrangeiros. A imersão proporciona fluência, mas não é garantia de se empregarem bem certas construções, cujo ensino sistemático caberá à gramática. O mais é “trauma”, motivado pela memória de um ensino gramatical de má qualidade, a qual faz do conceito de erro de linguagem um tema proibido. O tabu contra o conceito de erro tem atrasado muito as pesquisas do tipo a que nos referimos, levando a um ensino permissivo, imaturo e anticientífico. A educação nacional precisa dessas pesquisas com urgência. Remetemos aqui, mais uma vez, a Oliveira (1999), que é uma proposta de critérios científicos para se decidir quando corrigir ou não a linguagem do aluno.

Não se trata de descrever a língua com o objetivo único de evitar falhas. A descrição do idioma contribui também para o enriquecimento das competências sintática e lexical ativas do aluno, levando-o a empregar, ao redigir, estruturas sintáticas e itens lexicais típicos do estilo formal, que normalmente não empregaria em sua produção escrita. Pode-se destacar, por exemplo, em amostras de prosa formal não literária de boa qualidade, itens lexicais e estruturas sintáticas que não façam parte da competência lingüística escrita ativa do estudante, ou seja, que ele não use ao redigir, propondo atividades destinadas a incluí-los nessa competência. É o chamado ensino produtivo da língua.

Na verdade, quando o trabalho da escola é bem-sucedido, a variedade formal culta do idioma incorpora-se à competência lingüística do aluno, de cuja gramática mental as regras da gramática escolar passam a fazer parte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MENEZES, Humberto Peixoto. A gramática gerativa e o ensino da sintaxe do português. Mimeo. Comunicação apresentada no Congresso da ASSEL/Rio (Associação de Estudos Lingüísticos do Rio), em 1994.

OLIVEIRA, Helênio Fonseca de. Como e quando interferir no comportamento lingüístico do aluno. In: JÚDICE, Norimar et alii (Org.) Português em debate. Niterói: Eduff, 1999. p. 65-82. [Há uma versão de 2000 deste artigo, disponível no site www.collconsultoria.com, mais completa que a de 1999.]

––––––. Colocação de pronomes: uma questão de política da língua. In: HENRIQUES, Cláudio Cezar (org.). Linguagem, conhecimento e aplicação: estudos de língua e lingüística. Rio de Janeiro: Europa, 2003, p. 353-360.

––––––. Língua padrão, língua culta, língua literária e contrato de comunicação. Cadernos do CNLF, 7 (10): 83-93. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2004.

PERINI, Mário A. Para uma nova gramática do português. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1985.

––––––. Gramática descritiva do português. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1997.

 

 

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