OS ECOS DA ORALIDADE
NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

Telma Ardoim (UNIVERSO)

A escrita é essencialmente um processo mecânico, sendo necessárias a manipulação de um instrumento físico e a coordenação consciente de habilidades específicas motoras e cognitivas. Assim, a escrita é completa e irremediavelmente artificial, enquanto a fala é um processo natural, fazendo uso dos meio assim chamados órgãos da fala. (Akinnaso)

Ao abordarmos a oralidade, não nos podemos esquecer de que lidamos com uma das modalidades do sistema lingüístico que, junto com a escrita formam o processo de construção do pensamento humano. Embora utilizando o mesmo sistema lingüístico, as duas modalidades possuem características diversas e, por não serem estanques, verificamos que existem textos escritos situados bem próximo ao âmbito da fala e, por outro lado, textos falados que se aproximam da escrita formal. Entre eles, encontramos também tipos de textos que misturam as características pertinentes às duas possibilidades mencionadas. Não há como questionar qualquer distinção entre a fala e a escrita. Existem diferenças estruturais justificadas pelos pesquisadores porque apresentam diversidade no que diz respeito ao modo de aquisição, na condição de produção, transmissão e recepção e nos meios em que se organizam.

A língua falada não possui uma gramática própria, fato que a faz destoar da língua escrita. Naquela, em detrimento desta, há maior liberdade de criação e, conseqüentemente, mais criatividade.

Sempre consideramos a escrita como parâmetro do ideal, levando-nos a uma visão preconceituosa da língua falada, em que a descontinuidade, a pouca organização e planejamento e correlação “errônea” com a gramática projetada para a língua escrita culta, nos leva a julgá-la elementar.

A fala possui características próprias que explicam o pragmatismo que se lhe impõe. Dotada de natureza altamente interacional se, por um lado, não é anteriormente pensada, deve ser planejada e replanejada a cada momento do ato de comunicação.

No que diz respeito ao processo de construção “o texto falado apresenta-se ‘em se fazendo’, isto é, em sua própria gênese” (Koch, 2000: 63); se no texto escrito temos um tempo para planejar e fazer revisões e correções; no texto falado “planejamento e verbalização ocorrem simultaneamente, porque ele emerge no próprio momento da interação: ele é o seu próprio rascunho.” (2000: 63).

A descontinuidade está presente com muita freqüência no fluxo do discurso, determinada por fatores cognitivo-interacionais com justificativas de cunho pragmático.

Assim, o texto falado apresenta uma sintaxe própria, embora embasada na sintaxe da língua escrita.

Se a escrita é o resultado de um processo, a fala é o próprio processo visto o seu dinamismo em detrimento ao caráter estático daquela. Koch (2000: 63), utilizando-se da metáfora criada por Halliday, diz que o texto escrito parece uma tela em que, ao olhá-la, tem-se uma visão sintética; no texto falado acontece a dinâmica presença cenográfica, como num filme.

Ao levarmos a teoria apresentada para o âmbito das letras de música da MPB, nos remetemos ao compositor e lingüista Luiz Tatit (Apud Costa, 2002: 108) para quem “uma canção é uma fala camuflada em maior ou menor grau”.

A música popular, enquanto gênero discursivo, traduz a superposição entre as duas modalidades da língua e não pode ser descontextualizada do tempo / espaço em que se produz. Segundo Guilherme Veiga Rios (1998: 132):

Se por um lado uma música popular não é um ensaio acadêmico, por outro lado, também não é uma conversa cotidiana que se esvai tão logo seja entabulada. Dessa maneira, sob a perspectiva do ‘modelo autônomo do letramento’ a música popular não se enquadra nem nos atributos naturalizados para a escrita, nem naqueles naturalizados para a oralidade. Há aí uma natureza mista entre o oral e o escrito.

A mistura entre o oral e o escrito na produção musical se baseia em evidências socioculturais. Falamos das letras que surgem de um agradável “bate-papo” ou de algumas situações corriqueiras da vida, sem nos esquecermos de que “a música popular tem uma letra escrita, mas esta existe para as pessoas desde que gravada com a voz de alguém. Aí está o ‘segredo’ da sobreposição entre o oral e o escrito na música popular” (1998: 150-151).

Concebendo a canção como gênero híbrido, pois resulta da conjugação de dois tipos de linguagem, a verbal e a musical, o seu estudo exige uma competência tripla, pois ela não é apenas um texto verbal, nem só uma peça melódica, mas um gênero lítero-musical, o resultado da conjugação dessas duas materialidades citadas.

A canção popular, por sua vez, se coloca fronteiriça à linguagem escrita e à oral, apresentando características das duas modalidades em diferentes graus.

Tatit (2002: 109) acrescenta que “a voz da fala não é subsumida de modo absoluto pela voz do canto. Ao contrário, o segredo da canção popular é exatamente preservar o elã conferido pela fala coloquial”, enquanto que Nelson Barros da Costa (2002: 110) arremata: “E se esta voz é a voz da fala, o canto ganha contornos de coloquialidade altamente persuasivos.”

Reside aí a distinção entre a música popular e a erudita. A influência da voz da fala confere àquela um sabor especial que a distancia do formal que caracteriza esta. A música erudita se aproxima bastante do texto escrito formal, não só pelo aspecto verbal, mas também pelo melódico. Já a canção popular tem uma dimensão escrita que se situa no momento da produção e da distribuição, através do encarte do disco ou CD, das partituras, folhetos ou das próprias antologias poéticas. É explicável porque passa a objeto de análise de disciplinas que privilegiam o conteúdo escrito. A canção faz uso de recursos que se assemelham ao processo poético de criação, entre eles a métrica, as palavras conotativas, a rima e as imagens.

No texto literário, as marcas de oralidade constituem um expressivo elemento de linguagem e Aldir Blanc aproxima os dois pólos – o escrito e o falado – se apropriando de um vocabulário usado, não só na comunicação do cotidiano, empregando o coloquial, espontâneo, sem qualquer restrição gramatical. Muitas vezes, o poeta julga necessário reproduzir a fala popular, grafando os vocábulos exatamente como falados / ouvidos, com supressão de fonemas e marcas de tonicidade para melhor realçá-los.

Revendo as poesias, constatamos a presença de acentuada manifestação dessa oralidade. Elencamos algumas para mostrar a expressividade da linguagem.

Em Negão nas Paradas (Guinga e Aldir Blanc), reproduz o falar “desprestigiado” de uma camada da população. Toda a poesia conta a dificuldade de se chegar ao bairro do Estácio:

Eu vou pro Estácio, negão
parece fácil, nenão...
(...)
Eu vou pro Estácio, negão
Que de metrô? Na-na-não!
(...)
eu vou movido a limão.
Aí, no Estácio mermão
aceito a tal transação
tu fica frio, negão
qu’esses cabôco é tudo lôco
e hoje eu tô um pôco-rôco.

Mastruço e Catuaba (Cláudio Cartier e Aldir Blanc) nos apresenta duas expressões bastante populares, ambas se referindo ao ato sexual: “Disse que faz uns seis meses / que o fuque-fuque anda ruço.” (VERSOS 5 e 6) e “ Era louco por vedete / mas na hora H não armava o boneco.” (VERSOS 11 e 12).

Nos três primeiros versos da canção Reencontro, o poeta incorpora a coloquialidade quando cria

Quando minha amiga disse: esse é o cara!
eu quase perdi a fala
ao murmurar: prazer, e ouvir um “igualmente

Em Nítido e Obscuro (Guinga e Aldir Blanc) encontramos:

Sobe inté o coração – e é bão!
(...)
Mas o próximo é ilusão – que bão!
(....)
E quando eu rio faz frio de calafrio
As moça tem arrupio e terção
É alegria capaz de acovardar lobisome.
Eu mato a cobra
E dispois exibo o pau pra nós dois.

No trecho há registros de linguagem bastante comum ainda na população interiorana: inté, bão, lobisome, dispois.

A canção Viola Variada (Guinga e Aldir Blanc) também nos mostra exemplos desse processo dinâmico que é a fala, em que “o fluxo discursivo apresenta descontinuidades freqüentes” (Koch, 2000: 63):

Minha viola hoje variou
E ateu fogo num igarapé
Feito a esfinge que também é
Garra de bicho com voz de muié
(...)
Viu esmeralda no verdor do escarro
Pra se apurar remisturou
Nelso Rodrigueum com Manel de Barro
(...)
Mas agora inventou
Que é um pouco para fazer bobage
Com dois é bom
Com três é sacanage.

Em Incompatibilidade de Gênios (João Bosco e Aldir Blanc) temos a possível “confissão” de um marido para um juiz que ele chama de “dotô”, narrando as desavenças com a mulher e fazendo uma espécie de petição de divórcio. O humor intrínseco nos versos, as marcas de oralidade presentes no “diálogo”, a narrativa de um cotidiano “normal”, mas ao mesmo tempo mágico, não nos permitem retirar apenas fragmentos do texto. Colocamos a letra-poesia em sua íntegra:

dotô
jogava o Flamengo, eu queria escutar
chegou.
mudou de estação, começou a cantar.
tem mais:
um cisco no olho, ela em vez de assoprar,
sem dó,
falou que por ela eu podia cegar.
Se dou
Um pulo, um pulinho, un instantinho no bar,
bastou.
durante dez noites me faz jejuar.
levou
as minhas cuecas prum bruxo rezar
coou
meu café na calça pra me segurar.
se eu tô
devendo dinheiro e vem um me cobrar,
dotô,
a peste abre a porta e ainda manda sentar.
depois,
se eu mudo de emprego que é pra melhorar,
vê só,
convida a mãe dela pra ir morar lá.
dotô,
se eu peço feijão, ela deixa salgar.
calor,
mas veste casaco pra me atazanar.
e ontem,
sonhando comigo, mandou eu jogar
no burro
e deu na cabeça a centena e o milhar.”

As expressões populares enriquecem os textos. Aldir Blanc dirige a escolha para o eu-poético das poesias, sem esquecer o jogo semântico que se estrutura através dos sintagmas facilmente assimilados, até porque muitos fazem parte do vocabulário.

Um exemplo é Feminino no Estácio (João Bosco e Aldir Blanc):

“Foi pros cafundó-do-Judas” (verso 3)“ Tô com dor-de-cotovelo” (verso 7)

“Eu caí das nuvens com cara-de-tacho.” (verso 12)

“Essa não, eu não sou capacho.” (verso 14)

“Agora ando com a pulga atrás da orelha” (verso 15)

“Quem se mete a manda-chuva” (verso 25)

“Quase, quase sempre é um chove-não-molha.” (verso 26)

Temos também em “Por que pedir perdão” (Moacyr Luz e Aldir Blanc):

Eu não resisto aos botequins mais vagabundos
mas não pretendia te envergonhar
marquei bobeira.

A expressão “marcar bobeira” significa “fazer alguma coisa errada”.

Samba de um Breque (Guinga e Aldir Blanc) fala do valor que a música tem em sua vida, apresentando nos versos 20 e 21 a sua paixão, dizendo que “Música pra mim é um megaevento, / é um pega-pra-capar, questão de sentimento.” O sintagma “pega-pra-capar” não aparece nos dicionários, substituído, no contexto, por “é decisivo, é inevitável”.

Vaso Ruim não Quebra (João Bosco e Aldir Blanc) é exemplo dessa coloquialidade que aproxima a língua falada da escrita, pois a expressão nos remete à idéia de julgamento de valores, em que o bom e mau são avaliados. No 21º verso “Romão bancou o mão-leve” aparece a expressão “mão-leve” relacionada àquele que rouba sem a pessoa sentir.

Finalmente, a poesia Amigo é pra essas coisas (Sílvio da Silva Junior e Aldir Blanc) reproduz, magnificamente, em forma de diálogo, as características da fala, citadas por Koch (2000:62), ou seja, a redundância, a predominância do “modus pragmático”, a fragmentação das frases, os períodos curtos, e a pouca densidade informacional, além da presença de uma expressão coloquial no último verso:

Eu vivo
ao deus-dará”.

Salve
Como é que vai?
Amigo, há quanto tempo
Um ano ou mais
Posso sentar um pouco?
Faça o favor
A vida é um dilema
Nem sempre vale a pena
Oh!
O que é que há?
Rosa acabou comigo
Meu Deus, por quê?
Nem Deus sabe o motivo
Deus é bom
Mas não foi bom pra mim
Todo amor um dia chega ao fim
Triste
É sempre assim
Eu desejava um trago
Garçom mais dois
Não sei quando eu lhe pago
Se vê depois
Estou desempregado
Você está mais velho
É, vida ruim
Você está bem disposto
Também sofri
Mas não se vê no rosto
Você foi mais feliz
Dei mais sorte com a Beatriz
Pois é, vivo bem,
Pra frente é que se anda
Você se lembra dela?
Não, que pretensão
Minha memória é fogo
E o l’argent?
Defendo algum no jogo
E amanhã?
Que bom se eu morresse
Pra quê, rapaz?
Talvez Rosa sofresse
Vá atrás
Na morte a gente esquece
Mas no amor a gente fica em paz.
Adeus
Toma mais um
Já amolei bastante
De jeito algum
Muito obrigado amigo
Não tem de quê
Por você ter me ouvido
Amigo é pra essas coisas
Ah, dou um real
Sua amizade basta
Se lhe faltar?
O apreço não tem preço,
Eu vivo ao deus-dará,
O apreço não tem preço,
Eu vivo ao deus-dará.

Quando a composição foi gravada (1970), o verso 53 dizia: “Toma um cabral”, referindo-se ao dinheiro em circulação na época. Confrontando a mesma letra com o Songbook do poeta, elaborado por Roberto M. Moura, notamos a troca por “Ah, dou um real”, atualizando a moeda.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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