Variações em torno de tema e rema

João Antônio de Moraes (UFRJ)

Considerações iniciais

As noções de tema e rema (e suas variantes) surgem na cena lingüística no seio da Escola de Praga, com Mathesius (1915) e têm sido, desde então, abordadas de maneira bastante diferenciada, segundo o ponto de vista adotado pelas distintas escolas lingüísticas que, de alguma forma, se interessam pelo fenômeno, como o funcionalismo, o gerativismo, a semântica cognitiva, a pragmática, a fonologia (cf. Bosch & van der Sandt 1998, Chafe 1976, Gómez Txurruka 2002, Prince 1981, Rossi 1999, Steedman 2003). Essa diversidade de pontos de vista se reflete também na variada terminologia utilizada para se referir ao fenômeno: tema-rema, tópico-comentário, pressuposição-foco, suporte-aporte, fundo-figura, etc. (Kruijff-Korbayová & Steedman 2003)

Tal como utilizadas aqui, as noções de tema e rema são definidas em termos da estrutura informacional do enunciado, como sendo, respectivamente, sua porção que constitui a informação previamente dada, ou inferível, portanto não (ou menos) relevante para a comunicação (o tema) e a parte que corresponde a sua informação central, nova (o rema, ou foco).

O argumento que vou defender é o de que, mesmo se atendo a essa definição restritiva de tema e rema, em termos de dado/novo, há três sub-categorias de foco a serem discriminadas, que correspondem a fenômenos distintos, tanto do ponto de vista fonológico, quanto do semântico-pragmático, que serão aqui designadas por:

Focalização neutra;

Focalização contrastiva com valor exclusivo;

Focalização contrastiva com valor não-exclusivo.

2. A manifestação prosódica da articulação de tema (informação dada) / rema (informação nova) no português do Brasil [1]

 

Focalização “neutra”

Uma frase como Pedro vendeu o carro velho é ambígua do ponto de vista de sua estrutura informacional e pode, segundo sua entoação, veicular informações radicalmente distintas, centradas, por exemplo, em carro velho ou em Pedro vendeu, que é o que ocorre quando o enunciado responde a O que Pedro vendeu?, ou O que foi feito do carro velho?, respectivamente.

Com base nesse “teste das perguntas” (Hatcher 1956, Halliday 1967), o rema (R) pode ser definido como sendo o segmento que fornece a informação solicitada numa pergunta prévia supostamente feita pelo interlocutor, correspondendo o tema (T) à informação dada, mais especificamente à parte do enunciado que retoma a informação que já vinha pressuposta na pergunta anterior. Os enunciados abaixo ilustram as sete segmentações possíveis em termos de T/R para um enunciado composto de quatro palavras fonológicas (ou grupos clíticos, cf. Bisol 2001):

1) [Quais as novidades?]

[José pintou o muro ontem]R
(2) [O que José fez?] [José]T [pintou o muro ontem]R
(3) [O que José pintou?] [José pintou]T [o muro ontem]R
(4) [Quando José pintou o muro?]
 
[José pintou o muro]T [ ontem]R
 
(5) [Quem pintou o muro ontem?] [José]R [pintou o muro ontem]T
(6) [Que houve com o muro ontem?] [José pintou]R [o muro ontem]T

(7) [O que foi feito ontem?]

[José pintou o muro]R [ ontem]T

(

Esses sete enunciados se distribuem em três grupos, quanto a sua organização em tema (T) e rema (R), correspondendo a três padrões melódicos: enunciado monorremático (1), tema anteposto (2-4) e rema anteposto (5-7), como se pode observar nas figuras 1 a 3:

Figura 1. Enunciado 1 [José pintou o muro ontem]R , monorremático. [Quais são as novidades?]

Figura 2. Enunciado 4 [José pintou o muro]T [ ontem]R, com foco em ontem. [Quando José pintou o muro?]

Figura 3. Enunciado 7 [José pintou o muro]R [ontem]T, foco em José pintou o muro. [O que foi feito ontem?]

O enunciado monorremático, cuja curva tonal pode ser observada na figura 1, não apresenta uma ruptura melódica nítida, caracterizando o que por vezes é chamado de entoação “ligada” (Martins-Baltar 1977). A prosódia, ao contrário, sinaliza o padrão de T anteposto, que é a forma não marcada, através de uma inflexão ascendente sobre a tônica final do tema, indicada pela primeira seta na figura 2 e descendente sobre a tônica final do rema, assinalada pela segunda seta, na mesma figura. No padrão melódico do R anteposto, haverá duas inflexões, ambas descendentes, uma mais importante sobre a tônica final do rema, indicada pela primeira seta na figura 3 e outra, menos acentuada, sobre a tônica final do tema, sinalizada pela segunda seta; nesse padrão, o tema, que ocupa a posição final, será emitido em um tom globalmente baixo, fenômeno referido na literatura como “entoação parentética”.

Do ponto de vista fonológico, seguindo as premissas da teoria autosegmental e métrica (Pierrehumbert 1980, Pierrehumbert & Hirschberg 1990), proponho que o padrão melódico do enunciado assertivo monorremático deva ser representado, de uma perspectiva explicitamente distintiva, pela atribuição de um único tom baixo L* sobre a tônica final, seguido de um tom de fronteira igualmente baixo L%:

O padrão T + R caracteriza-se fonologicamente pela presença de um acento tonal alto H* sobre a sílaba tônica do vocábulo que ocupa a posição final do tema, e de um acento tonal baixo L* sobre a tônica final do rema, seguido de um tom de fronteira baixo L%:

No padrão melódico R + T, as duas inflexões descendentes são representadas por tons baixos L*, associados às sílabas tônicas finais do rema e do tema, sendo que à última segue-se um tom de fronteira baixo:

 

Focalização contrastiva com valor exclusivo

Embora seja freqüentemente confundida, de maneira não justificada, com o fenômeno da focalização tout court, a focalização contrastiva com valor exclusivo dela se distingue por manifestar um contraste entre um elemento do enunciado e um outro referido anteriormente, com a finalidade específica de retificar ou contradizer uma informação, supostamente errada, que vem de ser fornecida pelo ouvinte (cf. Moraes 1998; Pierrehumbert & Hirschberg 1990, Hedberg & Sosa 2003), como se pode observar nos quatro enunciados abaixo:

(8) [Pedro pintou o muro ontem]

     JOSÉ pintou o muro ontem.

(9) [Pedro lixou o muro ontem]

     José PINTOU o muro ontem.

(10) [Pedro pintou as paredes ontem]

     José pintou o MURO ontem.

(11) [Pedro pintou o muro hoje]

     José pintou o muro ONTEM.

Na figura 4 podemos ver a curva melódica própria desse tipo de focalização:

Figura 4. Enunciado 8 JOSÉ pintou o muro ontem, dito com foco contrastivo exclusivo sobre José.

O perfil prosódico mais freqüente do enunciado que apresenta focalização por contraste com valor exclusivo pode ser sumariado como segue:

(a) a sílaba tônica do vocábulo enfatizado é emitida com um nível melódico médio (ou médio-baixo), como indicado pela segunda seta na figura 4;

(b) o nível melódico da sílaba que imediatamente precede a tônica é alto (freqüentemente extra-alto), como indicado pela primeira seta na mesma figura, produzindo assim um nítido contraste entre a altura melódica da tônica e da sílaba precedente;

(c) o padrão melódico da parte do enunciado que eventualmente precede o vocábulo enfatizado não se altera substancialmente, isto é, corresponde ao padrão assertivo neutro; o que segue a porção enfatizada se caracteriza por apresentar um nível baixo, parentético;

(d) a sílaba tônica do vocábulo enfatizado apresenta igualmente uma maior intensidade e duração, em relação à sílaba correspondente do enunciado neutro.

Do ponto de vista de sua representação fonológica, à sílaba tônica do vocábulo enfatizado, emitida com um tom médio, é atribuído, na análise binária adotada, um tom baixo L* e à sílaba imediatamente precedente, um tom alto H, o que caracteriza um acento bitonal; a tônica final do enunciado recebe um acento tonal baixo L*, seguido de um tom de fronteira igualmente baixo L%:

Na eventualidade de não haver sílaba precedendo a tônica do vocábulo enfatizado, o nível sobre a tônica será foneticamente alto e não médio[2], ou seja, o nível alto se desloca da pretônica para a tônica, como por exemplo, em:

 

Focalização contrastiva com valor não-exclusivo

Devemos ainda considerar uma focalização contrastiva mais tênue, em que o falante contesta o que foi dito com pouca força, de maneira menos incisiva, o que justifica o valor “não-exclusivo” que lhe atribuímos, pois, a rigor, embora haja contraste, pode-se admitir a verdade simultânea do que diz o falante e do que foi anteriormente dito pelo interlocutor, como explicitamos no enunciado abaixo:

(12) [Pedro vendeu o fusca.] A motoca, ele vendeu. [Implicando: disso eu tenho certeza, já o fusca eu não sei, desconfio que não]

(13) [Pedro pintou o muro ontem.] José pintou o muro ontem. [Implicando: quanto a Pedro, eu não sei, talvez tenha também pintado o muro.]

Observe-se que, neste padrão, é o elemento que ocupa a posição inicial do enunciado que é enfatizado, limitação que não ocorre na focalização exclusiva (exemplos 8 a 11). Para que adquira esse valor não-exclusivo, sua prosódia distingue-se nitidamente da do padrão exclusivo, como podemos observar na figura 5 abaixo:

Figura 5. Enunciado 13 JOSÉ pintou o muro ontem, dito com foco contrastivo não-exclusivo sobre José.

Sua curva melódica caracteriza-se por uma modulação ascendente sobre a primeira tônica, atingindo um tom alto, indicada pela primeira seta vertical no traçado acima, modulação essa que habitualmente é mais elevada que a que ocorre nos enunciados com foco neutro e que se mantém num nível alto, numa espécie de platô, até a pretônica final, característica assinalada pela seta horizontal; a curva melódica retorna ao nível baixo sobre a última tônica do enunciado, como indica a segunda seta vertical. A diferença mais notável entre essa curva melódica e a do tema/rema na focalização neutra reside no referido platô alto, ausente nesta última.

A representação fonológica que propomos para esse padrão é a de um acento tonal alto H* sobre a sílaba tônica do primeiro vocábulo, que é focalizado, e um acento bitonal H+L* sobre a tônica final, o que dá conta do espraiamento do primeiro tom alto até a pretônica final (o platô melódico observado), seguido de um tom de fronteira baixo L%:

Considerações finais

Acredito que o fato de os três fenômenos de focalização aqui tratados não serem habitualmente considerados separadamente explica, em parte, as dificuldades com que nos deparamos ao tratar o tema e definir seus limites, especialmente no que se refere a sua manifestação prosódica no PB. Para concluir, queria lembrar que as considerações aqui feitas se baseiam na análise de enunciados lidos, típicos da fala carioca. Descrever a fala lida tem, freqüentemente, a suposta vantagem de exacerbar as marcas prosódicas previstas no sistema fonológico, o que facilita sua detecção na análise acústica. Essas marcas, contudo, muitas vezes se neutralizam na fala espontânea; a investigação, portanto, desses fenômenos no estilo espontâneo constitui uma etapa necessária para se capturar, em sua essência, os traços pertinentes de sua manifestação prosódica.

Referências Bibliográficas

Bisol, Leda. Os constituintes prosódicos. In: L. Bisol (org.) Introdução a Estudos de Fonologia do Português Brasileiro. 3ª ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 229-241.

Bosch, Peter & Rob van der Sandt (eds.). Focus: Linguistic, Cognitive, and Computacional Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

Chafe, Wallace L. Givenness, contrastiveness, definiteness, subjects, topics and points of new. In: C. Li (ed.) Subject and Topic. New York: Academic Press, 1976, p. 25-56.

Gómez Txurruka, I. Foco y Tema: una aproximacción discursiva. Bilbao: Universidad del País Vasco, 2002.

Halliday, M.A.K.. Notes on transitivity and theme in English. Part II. In: Journal of Linguistics 3: 199-244, 1967.

Hatcher, Ann.. Syntax and the sentence. In: Word 12: 234-250, 1956.

Hedberg, Nancy; Sosa, Juan M. Pitch contours in negative sentences. In: 15th International Congress of Phonetic Sciences, Barcelona, 2003.

Kruijff-Korbayová, Ivana and Mark Steedman.. Discourse and information structure. In: Journal of Logic, Language and Information 12: 249-259, 2003.

Martins-Baltar, Michel. De l’Énoncé à l’Énonciation: une approche des structures intonatives. Paris: Didier, 1977.

Mathesius, Vilém. O passivu v moderní anglictinê. In: Sborník filologický 5: 198-220, 1915.

Moraes, João A. Intonation in Brazilian Portuguese. In Hirst, D.; Di Cristo, A. (eds.) Intonation Systems: a survey of twenty languages. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 179-194.

Pierrehumbert, Janet. The Phonology and Phonetics of English Intonation. PhD Thesis, MIT, 1980.

Pierrehumbert, Janet and Julia Hirschberg. The meaning of intonational contours in the interpretation of discourse. In: Cohen, P.; Morgan, J.; Pollack, M. (eds.). Intentions in Communications. Cambridge: The MIT Press, 1990, p. 271-311.

Prince, Ellen. Toward a taxonomy of given-new information. In Cole, Peter (ed.). Radical Pragmatics. New York: Academic Press, 1981, p. 223-256.

Rossi, Mario. L’Intonation, le Système du Français: descrip-tion et modélisation. Paris: Ophrys, 1999.

Steedman, Mark. Information-structural semantics for English Intonation. Massachussets, 2003.

 

 


 

[1]  A variante lingüística aqui considerada é a do Rio de Janeiro, embora suas características prosódicas,  no que tange à manifestação dos fenômenos aqui abordados, sejam comuns a grande parte dos falares brasileiros.

[2] O padrão com a pretônica alta seguida de tônica média e sua variante com a tônica alta sem pretônica alternam-se, como disse, basicamente segundo o vocábulo enfatizado possua ou não sílaba pretônica, respectivamente, o que irá permitir, ou não, uma manifestação fonética “plena” do padrão. Por vezes, entretanto, o nível alto sobre a tônica, no lugar de sobre a pretônica, ocorre mesmo em enunciados que possuem pretônicas, como JOÃO toca piano, o que indica que os dois padrões podem, em certa medida, variar livremente, isto é, independentemente da pauta acentual do vocábulo a ser enfatizado. Além disso, parece também haver uma escolha regionalmente motivada, o dialeto carioca preferindo a subida na pretônica, o paulista na tônica.

 

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