VÍRUS DA INTOLERÂNCIA
A SOCIEDADE SOB QUARENTENA

Cláudio Luis Serra Martins (UERJ)

A AIDS não é mortal, mortais somos todos nós. A AIDS terá cura, e o seu remédio hoje é a solidariedade. (Herbert de Souza, o Betinho)

A citação acima foi extraída de uma carta escrita pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em fevereiro de 1992, intitulada “Carta Contra o Preconceito e endereçada ao presidente cubano Fidel Castro. Nela, Betinho ratificava a sua admiração e respeito pelo povo cubano, e principalmente pela causa revolucionária “sem interferência de inimigos ou amigos”. Ele acrescentava ainda que por conhecer “a tradição humanista e revolucionária de Cuba” e dos seus avanços tecnológicos esperava que Cuba fosse um exemplo mundial no combate a AIDS. No entanto, ao ler no Granma e através de informações dadas por pessoas que haviam visitado Cuba, Betinho ficou estarrecido ao saber que os soropositivos eram submetidos a uma política segregacionista, de vigilância sanitária total que consistia na internação em hospitais como doentes de AIDS, resultando na separação de suas famílias, e transformando-os assim, no que ele chamou de “presos políticos da epidemia”.

Betinho falava com conhecimento de causa. Hemofílico de nascimento contraiu o vírus HIV através de uma transfusão de sangue. Aliás, fato um tanto comum nesta época, visto que a AIDS só veio a ser diagnosticada em meados da década de oitenta do século passado. Em 1986, Betinho tornou-se presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, desenvolvendo, desde então, um trabalho que visava lutar contra as políticas públicas do governo brasileiro em relação à AIDS. Toda essa luta só veio a provar que o fato de ser soropositivo não lhe tirava a vontade de trabalhar, e acima de tudo, de levar uma vida normal com sua mulher e filho: “preferiria morrer a ser isolado no melhor hospital público”, dizia ele. Para Betinho, a doença não poderia se transformar em pretexto para a perda da cidadania.

Betinho, através do seu manifesto contra o preconceito, deixa claro que para o doente de AIDS a luta mais árdua não é somente contra o vírus HIV, mas principalmente contra uma sociedade que tem uma “visão fatalista e anticientífica da AIDS”, disseminando “condutas discriminatórias, desumanas e terroristas em relação às vítimas da doença”.

Verifica-se, portanto, que a tragicidade da AIDS faz a sociedade ultrapassar as fronteiras do cientificismo médico e tomar “carona na tragédia”, como bem relata Betinho, “para expressar todos os seus preconceitos e culpar as vítimas e suas condutas, ao invés de atacar a causa real da doença: o vírus”. Em suma, fazer com que o aidético seja merecedor de sua hamartia (“erro”, “falta”) e exigir dele uma expiação, uma purificação do mal que ele causou, culminando em seu isolamento.

O drama do portador do vírus da AIDS deixa de ser um caso médico para se transformar em um caso de polícia. Mesmo com todo avanço tecnológico do mundo moderno, a AIDS vai expor uma sociedade com um comportamento não muito diferente da retórica dos corpos alterados da Grécia do século V a.C., como na peça Filoctetes de Sófocles.

Na Grécia de Homero, acreditava-se que qualquer hamartìa (“erro”, “falta”) cometida por um membro do génos (“família”, “grupo familiar”, “descendência”) recaía sobre o génos inteiro, isto é, sobre todos os parentes e seus descendentes, tanto no “sagrado” como no “profano”. Em Mitologia Grega, Junito Brandão define génos “como personae sanguine coniunctae” (BRANDÃO, 1996: 77), isto é, “pessoas ligadas por laços de sangue”. Portanto, a hamartìa cometida por um génos contra o outro tinha que ser obrigatoriamente vingada.

Com a organização da Dike (Justiça), os gregos começam a restringir a dynamis dos gene, impedindo que grupos familiares dessem continuidade ao direito de vingar a morte de um parente próximo. E desta forma, a Dike possibilita a conciliação e harmonização que faltavam ao génos familiar, através da unificação da cidade. Portanto, “a legislação sobre o homicídio”, escreve Jean-Pierre Vernant:

Marca o momento em que o assassínio deixa de ser uma questão privada, um ajuste de contas entre gene [família]; à vingança do sangue, limitada a um círculo estreito, mas obrigatório para os parentes do morto e que pode engendrar um ciclo fatal de assassínios e de vinganças, substitui-se uma repressão organizada no quadro da cidade, controlada pelo grupo e onde a coletividade se encontra comprometida como tal. Não é mais somente para os parentes da vítima, mas para a comunidade inteira que o assassino se torna um objeto de impureza. (VERNANT, 2004: 80)

A pólis torna-se um corpo integral, e neste imaginário helênico todo e qualquer ato “impuro” do indivíduo pode colocar em risco a integridade da coletividade. O “miasma individual” vira uma obsessão para os gregos, e as atitudes em relação à este comportamento estão diretamente ligadas ao despertar religioso – um movimento de seitas conhecidas como “Órficos”. “Ao lado de um ‘ensino’ sobre o destino das almas,” descreve Vernant,

Seu castigo no Hades, a hereditariedade da falta, o ciclo das reencarnações e a comunidade de todos os seres animados, essa renovação religiosa caracteriza-se pela instituição de processos purificatórios em relação com as crenças novas.

Partindo deste mesmo ponto de vista, o teatro literalmente entra em cena na luta contra a discriminação em relação aos doentes de AIDS. Em A Mancha Rocha, de Plínio Marcos e Angels in America, de Tony Kushner, por exemplo, a questão da AIDS é abordada não somente em relação ao perigo real de contágio do HIV, mas também como o imaginário do começo da década de oitenta, por associar a doença a uma punição divina, acaba espalhando um vírus ainda mais letal – o da intolerância.

Da mesma forma que o herói trágico é um “contaminado” que deve purgar sua hamartia, as personagens de Plínio e Kushner, estando contaminadas pelo vírus da AIDS, acabam representando assim, uma espécie de “mìasma” (“mancha”) social. Assim como os gregos consideravam o assassínio uma terrível mancha que põe em perigo todo grupo social em cujo seio é praticado, os aidéticos, por causa do preconceito, também refletem “a mancha que nos torna impuros” (SÓFOCLES, 2004: 35), usando as palavras de Édipo. E precisam, portanto, passar por um processo de “purificação” que se dá através da privação da convivência humana.

Em a Mancha Roxa, Plínio Marcos revela um país onde as elites tradicionalmente conferem a elas mesmas o direito de escolher aqueles que devem fazer parte do status social, e aqueles que devem ser excluídos. Na peça, Plínio mostra como seis mulheres confinadas em uma cela de uma penitenciária brasileira, são brutalizadas pela sociedade sendo descartáveis na medida em que vão se tornando velhas, doentes ou presidiárias. Sob a sombra da AIDS, a peça remete ao drama das mulheres que lutam por respeito, amor e inclusão social.

Publicada em 1988, é talvez a peça mais conhecida do público brasileiro que trata da questão da AIDS. Ao longo da peça, Plínio levanta questões concernentes à necessidade da sociedade brasileira de esconder aqueles que contraíram a doença, e acima de tudo, de evitar o debate a respeito da mesma, visto que nos primeiros anos da década de oitenta do século passado acreditava-se que a AIDS era uma doença de homossexuais, mais precisamente de homens homossexuais, que estavam sendo punidos por uma ordem mítica devido à forma pecaminosa como conduziam suas vidas.

Ao convidar o público / leitor para um debate que está muito além da questão da marginalidade, Marcos expõe como as elites brasileiras acabam confirmando a definição de cultura de Edward Said como um “sistema de exclusões”. “Ninguém ouve nosso grito de dor. A indiferença total da sociedade é degradante” (p. 36), denuncia a personagem Professora. Mais adiante, uma outra detenta, chamada de Doutor, resume bem o que aquela tenta e não consegue: “Não adianta gritar. Ninguém vai escutar”. Fica aqui evidente que os não desejados pela sociedade estão arbitrariamente colocados à margem dela, tornando-se tão invisíveis quanto o vírus do HIV.

Analogamente, pode-se dizer que a relação entre o indivíduo e a sociedade moderna ainda está fortemente atrelada à mentalidade democrática construída pelos gregos no século V. Como já vimos anteriormente, se a sociedade deixa de ser meramente um génos familiar para se transformar em um corpo integral; os corpos doentes passam então a serem vistos como uma ameaça a esta unidade. Carlinda Fragale Pate Nuñez, ao analisar a peça de Sófocles, em “Invasões Bárbaras no Imaginário Tecnológico dos Gregos” observa que:

Na confluência de uma cena social hedonista, atlética e espetacular, a retórica da dor física, a mutilação e o desacordo com a sanidade pública anunciam o lugar escabroso a que a imagem dos corpos doentes se destina. Filoctetes encena a marginalidade a que a doença leva, numa sociedade que tem em alta estima o estatuto da pureza, da beleza e da desinfecção.

Em a Mancha Roxa, as mulheres têm consciência que estão em desacordo com a sanidade pública, e que o Estado com seu poder arbitrário as mantém longe de qualquer possibilidade de serem ouvidas. Professora, por exemplo, reconhece que: “O Estado é surdo. Os promotores, os juízes, os políticos são todos surdos. O Governador é surdo. Todos são surdos”. (p. 34). O próprio fato delas se auto-proclamarem de “mulheres roxas”, já demonstra que elas percebem que seus corpos manchados por causa da AIDS desestabilizam a noção de integridade do corpo social. A própria canção que a personagem Professora canta no final da peça revela que “o corpo doente é uma barbaridade...uma presença desadaptada ao modelo triunfante da própria pólis” (Ibidem):

Nada do que amaram era belo
Ninguém mais deseja
As carnes podres
Podres, roxas
Mancha roxa
Melhor
Pra muitas mulheres roxas
É mais fácil morrer
Quando não há o que esquecer. (p. 35-36)

No decorrer da peça, as mulheres admitem serem portadoras do vírus da AIDS, visto que elas não conseguem mais esconder os sintomas da doença, pois lesões na pele de cor púrpura (“as manchas roxas do título da obra”) começam a aparecer. Uma cor avermelhada que nos faz lembrar da expressão popular, “vermelho(a) de vergonha”, estampando na pele a vergonha de ser uma portadora do HIV.

Com o desenrolar da trama, descobre-se que das seis mulheres confinadas somente uma não está infectada, e ela desempenha o papel de fazer lembrar todo momento sofrimento e santidade, pois ela é sarcasticamente chamada pelas outras detentas de Santa, ao descobrirem que ela havia matado o próprio marido. Simbolicamente, ela passa a ser o negativo no meio das outras soropositivos, além de fazer parte da minoria não contaminada. A contaminação de uma para todas as outras, da prisão para o mundo é feito através do uso de uma luz púrpura que contagia o palco, e gradualmente se espalha até o público, demonstrando que todos são iguais, e propensos a serem atingidos pela doença.

Neste ponto, é possível, inclusive, fazer um paralelo com o imaginário grego sobre o conceito de génos abordado mais acima. Se para a mentalidade grega o génos é definido como personae sanguine coniunctae, pessoas ligadas por laços de sangue, então desta forma, as mulheres doentes de AIDS em A Mancha Rocha acabam criando um novo tipo de génos: as das mulheres ligadas por laços de sangue contaminado – unidas pela suposta falta que cada uma cometeu.

É importante ressaltar que Plínio Marcos ao escolher mulheres contaminadas pelo vírus da AIDS rompe com a crença de uma doença exclusivamente gay. Ao focalizar exclusivamente mulheres aidéticas, ele enfatiza que AIDS não discrimina, e muito menos leva em consideração à questão sexual, racial ou social da pessoa. Além disso, pode ser visto, simbolicamente, como uma democratização da doença, em uma época em que homens homossexuais eram vistos como “vetores da praga”, como veremos a seguir em Angels in America.

Na peça Angels in America, do dramaturgo norte-americano Tony Kushner, fica ainda mais evidente o projeto atlético da polis. O teatro transgressor de Kushner desconstrói a imagem de sociedade perfeita da nação supostamente tida como a mais democrática e liberal do mundo. A tão-exaltada liberdade do indivíduo, por exemplo, cessa a partir do momento que o diferente e o estranho ameaça “manchar” as fronteiras imaginárias desta pólis democrática, como podemos observar na atitude do antagonista Roy Cohn ao dizer que:

A pior coisa de ficar doente na América...é que você é chutado para fora da parada. Americanos não têm nenhuma serventia como doentes. Olhe para o Reagan: Ele é tão saudável. Ele nem parece humano...ele leva um tiro no peito e dois dias depois já está andando de cavalo em seu rancho. Aí eu pergunto quem consegue isso? Esta é a América. Um país que não tem lugar para o enfermo. (KUSHNER, 1992: 192)

Angels in America retrata bem o colapso de um universo moral durante a Era Reagan; uma América perdida onde as personagens lutam contra a indiferença e o preconceito. Dividida em duas partes, Millenium Approaches e Perestroika, a peça tem como foco principal a solidariedade dentro de uma comunidade. Como o próprio Kushner admite, “a pergunta que estou tentando fazer é até onde a comunidade se abraça. Qual o alcance deste abraço?”. Para ele, a comunidade refere-se tanto aos laços afetivos entre os indivíduos assim como os laços políticos que um cidadão exerce dentro de um Estado democrático.

De certo modo, a peça faz uma reavaliação do modelo real de comunidade com o ideal, visto que a crença no modelo inspirado pelo sonho americano acaba se transformando em um grande pesadelo. O enredo de Angels in America gira em torno dessas duas comunidades.

Na primeira parte, o universo das personagens é baseado em manipulações e distorções de leis, “contrate um advogado, processe alguém, faz bem para a alma” (221) aconselha o poderoso advogado Roy Cohn; relacionamentos entram em colapso; a AIDS surge ainda como fator desestabilizador e as personagens ficam renegadas ao abandono e solidão. Todo este caos é simbolizado pela destruição física causada pelo surgimento do Anjo no final de Millenium Approaches.

Em Perestroika, tem-se o trabalho de reconstrução de uma nova comunidade, inserida em uma nova mentalidade; uma comunidade que tenta unir laços onde aparentemente não teriam como serem unificados devido às suas diferenças. Uma fantasia gay, como o próprio título da peça já diz, reunindo no Epílogo um grupo multirracial – os membros desta nova sociedade.

A peça está centrada na figura de Prior Walter que mesmo tendo seu corpo infectado pelo vírus HIV, e com conseqüente abandono de seu namorado Louis, transforma-se no principal articulador na luta contra o preconceito, e principal arquiteto da construção desta nova comunidade. Em suma, no universo de Kushner, Prior representa o herói trágico aidético que, assim como Schelling, vê na liberdade “a essência do Eu”, o “alfa e ômega de toda filosofia” (SZONDI, 2004: 30). O próprio Anjo o investe na categoria de mensageiro e Profeta.

Sendo constantemente assediado pelo Anjo que tenta impor uma paralisia total nas ações humanas, Prior reconhece que aquele possui “um poder objetivo absoluto que ameaça aniquilar a” sua “liberdade, mas mesmo assim, ele decide lutar contra ele”, mas diferentemente do sistema de Schelling, não irá sucumbir. Prior descobre que a arena principal de sua luta contra as forças que tentam fazê-lo sucumbir, está na realidade dentro de si mesmo. E esta postura é confirmada no final da peça, no Ato V, cena 5, quando ele diz ao Anjo que reconhece “o vício de estar vivo”, e por esta razão quer o direito de ter “mais vida”. (p. 267)

O drama de Prior começa exatamente no momento em que ele mais precisa do apoio de Louis. Entretanto, este não consegue suportar ver o corpo manchado de quem ele ama. Para alguns críticos, a reação de Louis é deplorável, comprovando um comportamento fraco, imaturo, e acima de tudo, egoísta. Embora o comportamento de Louis nesta situação não seja nem um pouco aceitável, admite-se, porém, que o sentimento de culpa o persegue tal qual as Erínias perseguiram Orestes após este matar sua própria mãe nas Coéforas de Ésquilo. Da mesma forma que Atena, através do célebre voto de Minerva, libera Orestes da pena, mas não da culpa, em Angels in America, Kushner igualmente não condena Louis, mas o martiriza a peça inteira com seu sentimento de culpa.

Vale ainda destacar que o ato individualista de Louis revela o alto preço que os americanos pagam por manter o que Kushner chama de “mito da individualidade”. No posfácio, ele conscientemente expõe o que talvez seja a grande Hýbris (“démesure”, “descomedimento”, “excesso”) do povo americano:

Nós não temos um sistema único de saúde, nós não educamos nossos filhos, nós não conseguimos aprovar leis de controle de armas de fogo, nós elegemos presidentes como Reagan, nós odiamos e tememos os processos inevitáveis como o envelhecimento e a morte. (283-4)

Não é nenhuma coincidência que as palavras de Kushner pareçam ecoar no que Roy Cohn diz acima em não haver espaço para o doente, visto que no imaginário da polis perfeita americana, os heróis nacionais são idealizados para serem perfeitos e jamais sucumbirem diante do inimigo. Contrário a este padrão de pensamento, o doente provoca estupor, espanto, uma espécie de pollà tà deinà (“há muitos assombros”) sofocliano (Cf. NUÑEZ, “Invasões Bárbaras no Imaginário Tecnológico dos Gregos”) que ao penetrar as fronteiras do corpo social deve ser imediatamente combatido. Não é à toa que a sociedade individualista americana sempre pregou, e ainda prega, o conceito puritano de “elect” (eleito) – povo escolhido para iluminar as trevas do mundo. Este conceito teve seu nascimento no ideal de comunidade do líder puritano John Winthrop. Para ele, esta nova comunidade deveria ser um modelo a ser copiado por mundo afora, “uma cidade no topo da colina”, onde “os olhos de todos os povos” recaíssem “sobre eles”.

O assombro de Louis ao ver Prior dominado pelo invasor – o vírus da AIDS – pode ser compreendido analogamente pela cultura do medo a que ele e todo americano foram submetidos desde a chegada do Mayflower em 1620, trazendo os expatriados puritanos ingleses que iriam povoar o território onde hoje está situado o estado de Massachusetts. O medo do desconhecido fez surgir não apenas uma, mas várias comunidades que para sobreviverem ao inóspito e selvagem país que acabara de nascer tiveram que se fechar, como verdadeiras fortalezas protegidas de invasores indesejados.

Devido a estes fatores, é possível dizer que os vários povos que migraram para a América do Norte acabaram se constituindo em comunidades tão individualizadas e autônomas como se cada uma fosse um corpo social diferente. E mesmo não tendo suas fronteiras uma linha demarcatória visual e oficial, de modo a indicar seus territórios, estas comunidades, vindas de várias partes da Europa, trouxeram juntamente com seus valores tradicionais, as fronteiras mentais que separavam um povo do outro, negando assim, a existência de uma unidade maior chamada América.

Isto fica claro inclusive durante a independência americana que teoricamente deveria unificar as várias comunidades em uma única unidade. Para Bryn O´ Collaghan em An Illustrated History of The USA, mesmo com o Tratado de Paris de 1783, reconhecendo os Estados Unidos como uma nação independente, “a maioria dos americanos sentia mais lealdade aos seus próprios estados do que ao novo Estados Unidos. Eles se viam como virginianos ou nova-iorquinos ao invés de americanos” (O´CALLAGHAN, 1990: 32). Em suma, cada estado americano individual tinha seu próprio governo e leis, e comportava-se muito mais como um país independente.

De fato, a história do povo americano é uma história que começou com imigrantes; desenvolveu-se com imigrantes, e consolidou-se como potência mundial através da imigração. Entretanto, vale ressaltar que a chegada de cada comunidade não significou na união, e principalmente na aceitação de um grupo pelo outro, de todos aqueles que cruzaram o atlântico em busca do sonho americano. Em Angels in America, o discurso do Rabino Isidor Chemelwitz durante o funeral da avó de Louis, no primeiro ato da peça, confirma esta tese quando ele revela que:

...aqueles que cruzaram o oceano, que trouxeram conosco para a América as vilas da Rússia e Lituânia – e da forma como nós lutamos, e brigamos pela família, pelo lar judaico, foi para que você não crescesse aqui, neste lugar estranho, no caldeirão fervilhante onde nada se misturou. Descendentes desta imigrante, vocês e seus filhos não cresceram na América. Vocês não vivem na América. (16)

Visto por este prisma, não se pode negar que Louis, como um descendente de Judeus, carrega dentro de si, os valores tão enaltecidos acima de seus ancestrais. Mesmo que em alguns momentos ele renegue sua origem, ao se deparar com o imprevisível, como a doença de Prior, ou com uma situação conflitante, como na cena em que para se defender da insinuação de racismo feita por Belize a acusa de anti-semita, todos aqueles valores adormecidos emergem como forma protetora para evitar a sua autodestruição.

Analogamente, esta postura de autopreservação em Louis espelha, de algum modo, a mesma fobia que os gregos tinham em relação ao contato com os outros – “estranhos, incultos, ameaçadores e bárbaros”. Os valores internalizados de cada personagem entram em colisão a partir do momento que as diferenças culturais afloram.

É por isso que Louis após abandonar Prior tenta amenizar a dor de consciência que o aflige procurando inicialmente ajuda exatamente dentro de sua comunidade judaica. Ao perguntar o Rabino Chemelwitz o que as Escrituras Sagradas dizem a respeito de uma pessoa que abandona alguém que ama em um momento de dificuldade, Louis deixa transparecer um sentimento tipicamente judaico – a culpa. O Rabino percebe que aquilo que Louis busca não pode ser encontrado no judaísmo, mas somente no catolicismo – o perdão. “Mas eu não sou católico, eu sou judeu”, argumenta Louis. “Azar o seu, Católicos acreditam no perdão. Judeus acreditam na culpa” (31) rebate conscientemente o líder religioso.

Pode-se dizer que a doença de Prior revela a Louis um poder absoluto que ameaça aniquilar não somente a liberdade de quem ele ama, mas também a sua própria liberdade. Portanto, o medo que faz Louis abandonar Prior está diretamente ligado ao espírito judaico que ainda está fortemente ligado a ele, pois segundo Hegel o espírito do judaísmo se dá através de uma “contraposição rígida entre humano e divino, particular e universal, vida e lei, sem que haja nenhuma possibilidade de conciliação dos opostos” (SZONDI, 2004: 39).

A Aids é logo associada ao Poder Absoluto, e a sociedade na tentativa de encontrar culpados para serem purgados, de imediato procura uma relação da doença com os homossexuais. Para muitos, eles não passam de aberrações, desvios da natureza, não podem ser “normais”. Dito desta forma, a AIDS se transforma na tragédia Gay. No artigo “Direitos Humanos e Aids, Betinho reconhece que como hemofílico podia falar aberta e publicamente que estava contaminado pelo vírus do HIV através de transfusões de sangue. Os hemofílicos eram as vítimas inocentes. No entanto, ele havia presenciado “a morte e a tragédia de várias outras pessoas, que morreram de AIDS, que tiveram que morrer clandestinamente porque eram homossexuais ou drogados”.

Em Angels in America, por exemplo, Roy Cohn se recusa aceitar o fato de estar infectado pelo vírus HIV, porque tem consciência de que sua orientação sexual seria atribuída ao homossexualismo. Mesmo sendo homossexual, nega a identidade até o fim, pois, para ele, homossexualismo é sinônimo de marginalidade e fraqueza. “Homossexuais são homens”, argumenta Cohn, “que não conhecem ninguém e que ninguém os conhece”. (p. 51) É por isso que quando seu médico diagnostica sua doença como AIDS, ele prontamente nega dizendo que “AIDS é o que homossexuais têm. Eu tenho câncer no fígado”. (p. 52) Nas palavras do vilão Roy Cohn, fica, portanto, bastante claro a interpretação do conceito universal de AIDS pela sociedade na década de oitenta, como uma doença da culpa – a vacina divina contra os pecadores.

O trabalho proposto aqui é uma tentativa de mostrar que a AIDS representou e ainda representa um dos momentos mais turbulentos da humanidade. Uma doença que surge para contradizer a idéia onipotente da medicina moderna de que estávamos próximos do dia em que todas as doenças seriam curáveis, ou seja, o sonho da imortalidade. O dia em que habitaríamos de vez a polis perfeita, o nosso Olimpo, e seríamos, de fato, deuses.

A AIDS nos despertou deste sonho, e nos demos conta da nossa vulnerabilidade. A AIDS não tem cura, e a morte é inevitável. A pessoa infectada passa a viver no corredor da morte, abandonada a espera da sentença final. Durante a crise, duas forças antagônicas entram em choque – solidariedade versus intolerância. E é exatamente esta luta, que as peças A Mancha Roxa, de Plínio Marcos e Angels in America, de Tony Kushner encenam no palco.

O teatro como força transgressora dá voz aos silenciados na luta contra o preconceito e o abandono. Mais do que isso, através do palco é que a nossa existência e o mundo justificam-se. Os gregos foram os primeiros a descobrirem isso, pois como diz Nietzsche, os gregos tiveram a necessidade de criar deuses, com o objetivo de representar as ações humanas, e principalmente, a de “suportar a existência..banhada de uma glória mais alta” (NIETZSCHE, 2003: 37) através de suas divindades. A resplandecente criação onírica dos deuses do Olimpo revelam as nossas próprias raízes primitivas, com os nossos medos e temores. Durante a crise da AIDS, o teatro, tanto de Plínio Marcos como o de Tony Kushner, colocam a sociedade sob quarentena, transformando o palco em um grande espelho refletindo mais uma vez nossos preconceitos, nossos miasmas mentais causadas pela contaminação do vírus mais letal que já existiu – o da intolerância.

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NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Trad., notas, posf., J. Guinsburg. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

NUÑEZ, Carlinda Fragate Pate. “Invasões bárbaras no imaginário tecnológico dos gregos”.

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SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

VERNANT, Jean-Pierry. As origens do pensamento grego. 14ª ed. Trad. Ísis Borges B. Da Fonseca.. Rio de Janeiro: Difel, 2004.

 

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