Discurso Literário, função poética
e literatura infanto-juvenil
um olhar sobre a construção do Conhecimento
em Bartolomeu Campos de Queirós

Mônica de Queiroz Valente da Silva (UFRJ)

 

Muito se tem dito sobre as atuais produções literárias destinadas às crianças e jovens que, de maneira geral, tem nos levado a diversas e oportunas discussões acerca da especificidade da literatura. Não há como se pensar, entretanto, a questão da literatura infanto-juvenil, historicamente, sem mencionar, por exemplo, a questão do gênero, uma vez que dela depreendemos reflexões importantes que explicitam a origem dessa produção literária, bem como a implicação mercadológica que a constitui como tal, refletindo-se isto, muitas vezes, no atual estabelecimento do cânone contemporâneo brasileiro. Segundo Khéde (1983: 17), as categorizações e hierarquizações dispensadas à literatura dita infantil e juvenil, mesmo pretendendo-se operacionais, terminam por determinar certa funcionalidade social garantida pelo aparelho cultural da sociedade, através de certas classes hegemônicas “que atuam no campo intelectual”.

Por entendermos que a literatura expressa conhecimento e experiência da humanidade, sendo fonte de conhecimento do homem sobre si próprio, também depreendemos que ler e experimentar são experiências que se fundem, pois se traduzem em novas leituras, leituras de mundos, porque nascidas de uma vivência concreta que é a própria vida, e esta se manifesta na interação dos homens, numa relação que, partindo do individualmente perceptível, estende-se à uma coletividade.

Dada a abrangência com a qual podemos tratar a literatura, resolvemos delimitar alguns aspectos que consideramos relevantes neste estudo, a saber: discurso literário e função poética. Para tanto, destacaremos o texto do mineiro Bartolomeu Campos de Queirós em Até passarinho passa.

A primeira razão desta escolha é que estamos nos debruçando sobre o atual cânone contemporâneo brasileiro e Bartolomeu, pelas suas diversas produções, está inserido neste cânone.

A segunda razão é que a tessitura textual de Bartolomeu permite-nos melhor evidenciar os aspectos que destacamos anteriormente como estratégia de pesquisa, ao lançar um olhar sobre as produções literárias destinadas a crianças e jovens.

A terceira razão é que, uma vez ancorada na dimensão filosófica, o texto de Bartolomeu Campos de Queirós em Até passarinho passa nos oferece subsídios para depreendermos alguns níveis de conhecimento na construção do Ser. Por ser uma questão ontológica, portanto universal, procuraremos explicitar alguns conceitos que poderão nos remeter à melhor compreensão da especificidade da literatura e contribuir no entendimento da produção literária destinada ao público jovem e infantil, segundo todo o exposto até aqui.

O primeiro aspecto que destacaremos é o discurso literário. Entendemos discurso como “efeito de sentidos”, como defendido por Orlandi (1997: 125). A produção de linguagem se dá na proporção em que sujeitos interagem em uma prática social. E esta prática é impregnada de formações ideológicas que determinarão os sentidos entre uma formação discursiva e outra. Assim, a produção da linguagem engloba dois processos distintos: o parafrástico e o polissêmico.

Estas contribuições no âmbito da lingüística corroboram a idéia de que o texto literário entendido como tal é polissêmico, uma vez que transgride o espaço convencional da linguagem, em seus diversos níveis (morfológico, fonológico, sintático e semântico), de maneira a estabelecer um efeito diferente de sentido. Assim, temos uma diferenciação da linguagem “comum”, presente em outros discursos. Segundo Pondé (1983: 97), “(...) toda expressão literária é sempre poética e transgressora”. É a estética do Belo que se manifesta criando estilos e comunicando. Todavia, o que torna o discurso literário literatura propriamente dita, por isso arte, é seu caráter afetivo no tratamento de temas por natureza humanos e antagônicos, como vida e morte, alegria e tristeza, esperança e desesperança, redimensionando-os pelo seu caráter polifônico.

O segundo aspecto que podemos abordar é o que diz respeito à função poética. Na literatura os recursos de linguagem geram significantes que pela sua natureza polissêmica, sincrética e ambígua são desvelados na interação com o leitor real, levando-o a se organizar e se mobilizar, de alguma forma, no seu mundo.

Segundo Bosi (1995: 57), a arte literária constitui-se como tal por potencializar expressões desgastadas pelo uso, revelando o raro e o belo. Compartilhamos com Vanoye (1997: 184) a idéia de que a mensagem literária prescinde da função poética para se estabelecer como tal. É ela que fundamenta a linguagem poética recriando o existente, ou seja, produzindo um conhecimento que examinará a humanidade do próprio homem em sua fragilidade e temporalidade.

O discurso literário, enquanto produtor de conhecimento, articula-se segundo alguns fatores, como por exemplo, a presença do narrador, o tempo e o espaço. Entendermos a narrativa como um ato verbal que objetiva

(...) apresentar uma situação inicial que, passando por várias transformações, chega a uma situação final. Essas transformações são ocasionadas por acontecimentos, fatos, vivências, episódios, ou, como freqüentemente ocorre na narrativa contemporânea, por diferentes estados psicológicos de um personagem. (MESQUITA, 1986: 21).

Para Mesquita, o “real simbólico, articulado pela palavra, se instaurará, realimentando sem cessar o diálogo eterno entre vida e o sonho, entre a vontade de morrer e o medo de viver (Idem, p. 14). Portanto, por mais ficcional que seja a obra, ela sempre está vinculada ao real vivido. Instaura, com. ele, uma tensão dialética manifestada na obra através da “ação verbal ficcional”. Afinal, um “discurso que narra também constrói um universo”. A relação desse universo com o real empírico pode estabelecer um eixo metonímico (contigüidade) ou metafórico (substituição). Em relação ao espaço e ao tempo, a autora acima ainda destaca que “a matéria narrada”, portanto “universo representado”, constitui signos, adquirindo diferentes significações em diferentes momentos do texto. Referem-se à materialidade do espaço físico (objetos, pessoas, animais, etc.). Esses signos certamente se constituirão referências, pelos seus recorrentes empregos, que nos ajudarão a desvendar o texto não-dito, articulado nas entre linhas. Os recursos de retrospectivas (flashbacks) ou antecipações (forwards), nos remeterão a uma marcação temporal mais cronológica ou psicológica: a primeira, centrada nos acontecimentos exteriores, ou, no caso da segunda, em estados interiores dos personagens ou narrador(es). O discurso narrador, dessa forma, apresentar-se-á carregado de certas implicações, ou considerações, como opiniões, comentários, avaliações filosóficas e etc., que nos permitirá evidenciar o estilo do autor. As digressões, por exemplo, ilustram bem esse caso.

O texto de Bartolomeu de Campos Queirós em Até passarinho passa situa-se enquanto prosa poética, e privilegia a dimensão filosófica ao tratar de temas como vida e morte. Esses temas geram um aprendizado no narrador-personagem a partir das suas observações, articuladas nas categorias de espaço e tempo, o que deflagra e instaura um processo de conhecimento do próprio ser.

Todo a instância narrativa em Até passarinho passa ocorre motivada pelas memórias do narrador, fato este recorrente em outras obras do autor como em Indez e como Ler, escrever e fazer contas de cabeça. São lembranças de um menino que se surpreende com as marcas da passagem do tempo, que arrasta para sempre as suas ainda incertezas, deixando-lhe, através das experiências vividas, outras marcas que formarão a memória do narrador, um narrador adulto, por isso mais capaz e habilitado para discorrer sobre tudo que aprendeu a apreender na sua vivência infantil, pois agora dominando a linguagem através do código verbal.

A memória, segundo Chauí,

É uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais . É nossa primeira e mais fundamental experiência do tempo e uma das obras mais significativas da literatura universal contemporânea é dedicada a ela: em busca do tempo perdido, do escritor francês Marcel Proust. (CHAUÍ, 2002: 125).

O discurso poético em Até passarinho passa é um discurso, sobretudo, da memória. Memória que relembra uma experiência dolorosa e revela o caminho da busca do Ser que, no caso de Até passarinho, se realiza a partir do cotidiano da vida em família, através do espaço de uma varanda em uma casa que “já não existe mais”, pois, “como tantas outras coisas, ela passou” (p. 5).

A varanda, assepticamente construída para o Ser, o abriga das/ nas descobertas ainda não dolorosas, mas que ao longo da narrativa se desconstrói, à medida que se estabelece como mundo e se revela aos olhos atentos do narrador-protagonista. A partir do olhar do menino, o discurso narrativo articula as categorias de espaço e tempo: um tempo cronológico remoto que se presentifica no gradativo adensamento psicológico das reflexões do narrador-personagem. Interessante lembrar que, no pensamento infantil não há domínio da noção de tempo. Segundo Pondé, “não só o presente impera como a idéia de opção e exclusão causa estranhamento, possibilitando ainda mais esta visão globalizante e simultânea” (PONDÉ, 1983: 98). Até passarinho passa nos revela que o narrador-personagem apreende a realidade a partir do olhar. É através deste olhar sensível que o menino avança no conhecimento do Ser. O objeto desse olhar é a natureza que em sua perfeição parece bela aos seus olhos, fundindo forma e força que se correspondem reciprocamente. O tempo que passa, dando lugar às estações do ano que se alternam, é o tempo que abriga o ser-no-mundo e que se deixa reconhecer, como outrora afirmou Heidegger: “a essencialização da aparência está no aparecer” (apud Buzzi, 1972: 35).

A descrição do espaço ocorre fundamentalmente através da construção de imagens que operam no sentido de aproximar realidades distantes, opostas ou indiferentes. Quando isso ocorre, uma nova significação se estabelece, intermediada pela emoção (caráter sensível). Em Até passarinho passa o espaço físico é representado através da casa com varanda e da natureza com sua grandiosidade e mistério, a se tentar desvendar. A primeira forma de conhecimento humano é a estabelecida pela intuição sensível, através da percepção do mundo que nos rodeia. É o campo do conhecimento imediato que se origina na experimentação e nos sentidos propiciados pelos órgãos dos sentidos. A intuição sensível apreende a realidade empírica observando a sua aparência, numa experiência meramente contemplativa. A grandiosidade desta realidade leva à apreensão do Belo. A varanda da casa torna-se responsável pela apreensão da intuição sensível do narrador-personagem, uma vez que nela, por exemplo, dão-se os temas dos encontros em família e é revelada pela primeira vez a presença da morte, “na dança dos miúdos insetos” (p. 9). Torna-se um índice espacial que localiza o personagem no mundo físico e centraliza a narrativa; semanticamente é o espaço absoluto das descobertas e do crescimento, portanto, conhecimento. Nela, ou a partir dela, as questões existenciais e factuais se confrontarão na construção do conhecimento do Ser, instaurando o conhecimento intuitivo.

A função poética nos permite constatar isto a partir de certas escolhas verbais que conferem aos seres e fenômenos naturais atributos humanos: borboletas pintavam/ visitavam; as cigarras serravam a tarde; vento anunciava; um nada varria o mundo, afagando a natureza (p. 7). Paralela e gradativamente, assim como os ciclos das estações do ano se sucedem, também há no menino a passagem para outro estágio, um outro nível de conhecimento. A morte, revelada no destino dos insetos miúdos que dançavam em torno da lâmpada de luz na varanda, espanta o menino. O tempo, que ameaça o Belo, representado na/pela natureza, através dos ciclos naturais da vida presente nas flores,frutos e animais, revela sentimentos de inquietação e de medo, pois a passagem do ser-no-mundo termina por revelar o não-ser, a nulidade, a impotência, por extensão a própria morte. Ao mesmo tempo em que essa inquietação é revelada, no nível da narrativa ela é desviada através do recurso de descrição poética dos ciclos das estações do ano – ambiente, espaço físico – como se o narrador, adiando as suas lembranças, intentasse nos poupar da dor de uma descoberta que fatalmente se processará mais adiante, pela passagem inexorável do tempo. A utilização da conjunção MAS introduz essa evidência e é índice que anuncia a entrada de um novo grupo de elementos na história: os passarinhos. Com a eles a narrativa sofre uma pequena interrupção em sua linearidade e uma interlocução ocorre; um “parênteses” no discurso narrador que presentifica e corrobora a experiência do passado do narrador-personagem, através dos verbos que se encontram no presente:

Mas, no calor do dia vagaroso, os passarinhos aproximavam para colher migalhas dos bolos que caíam de propósito de nossas mãos sobre o ladrilho frio e limpo (...). Nos visitavam sem canções mas sem nos negar sua secreta poesia . No corpo dos passarinhos está escrito um poema que assusta até a alma mais desavisada. Sua leveza traz uma festa desmedida, capaz de invejar os mais contidos. (p. 10)

A função poética ao permitir a construção de imagens nos deixa antever o imaginário e este abre portas para uma reflexão mais aguçada. Produzimos imagens por estas serem de natureza perceptiva, portanto, sensível, criadas a partir do ato de pensar. Os objetos a elas referidos constituem-se por características físicas e sociais definidas segundo “suas experiências históricas, pelas condições ecológicas e pelos seus contextos socioculturais” (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003: 11). Entretanto, tal constituição de coisas e de homens somente dar-se-á como realidade após ser perceptível e interpretável. E a realidade – dada num ambiente social e natural – difere do real por este último ser a interpretação que o homem lhe atribui a partir de signos, idéias e símbolos. Isso importa para a literatura uma vez que permite visualizar os recursos de linguagem, como metáfora e metonímia, tão comuns na função poética, o que pode nos favorecer na compreensão de uma pluralidade de interpretações. Enquanto processo que se centra na relação sujeito/ objeto,

(...) o imaginário não apenas previne situações futuras, como em sua atividade antecipatória orienta-se para um porvir não suspeitado, não previsto. A determinação desse futuro virtual é acometida por uma imaginação transgressora do presente dirigida à consecução de um possível não realizável no presente, mas que pode vir a ser real no futuro. (Idem, p. 24)

Dessa forma o imaginário tem um compromisso com o real e não com a realidade. E é o que o discurso narrador em Até passarinho passa nos deixa evidenciar. O menino que se cerca de suposições e fartos acontecimentos apenas deseja adivinhá-los, tentando reter a beleza que o tempo ainda não corrompeu; mas já pressentindo que haveria a necessidade de um “olhar mais delicado” e de um “pensamento mais cauteloso” (p. 11).

O conhecimento intuitivo do menino, no início de sua trajetória, configura-se diferentemente do conhecimento intuitivo e permanente dos passarinhos, pois este último reside na sua constituição natural. Apesar de o narrador referir-se a eles enquanto seres que protegem seus pensamentos “como se fossem pérolas” (p. 13), sabemos que o ato de pensar é uma especificidade humana. Os pássaros, como os demais animais, são equipados, por assim dizer, com uma sabedoria natural que desconhece os meandros de uma rosa-dos-ventos (equipamento náutico utilizado para orientar os pontos cardeais). Entretanto,

Diferenciavam o grão da pedra, conheciam a madureza dos frutos apenas pela cor, observavam a profundeza das poças para os banhos, sentiam a ameaça dos olhares e temiam o perigo das gaiolas. E mais, eles compreendiam, que para viver era preciso nnhos, tecidos com gravetos e cuidados, em lugares ocultos e seguros.

Mesmo longe da terra eles necessitavam de um abrigo. Ter um ninho é poder retornar, é ter um lugar de repouso, uma referência , um agasalho. E, se eu encontrava, desavisadamente, alguma promessa de outras vidas dentro de seus ninhos, fazia de conta que não via para não gorá-los. (p. 15)

Na arte, segundo Buzzi (BUZZI, 2004: 211 e 212), ao contemplarmos as aparências, aprendemos a morar no mundo. Morar é, dessa forma, mais que uma forma de nos apropriarmos dele.

O início do estabelecimento da consciência que difere real de realidade percebe os perigos de se viver e a necessidade de se proteger, de cuidar ou de ser cuidado. E, por extensão, de amar. O narrador-personagem prossegue na sua narrativa introduzindo uma nova emoção: a chegada do amor: um amor do tipo platônico, silencioso, pelos passarinhos, “vírgulas delicadas pontuando o vazio das suspeitas” (p. 19). As expressões corpo/ imóvel, respiração interrompida, atestam o desejo de aprisionar o tempo, paralisando o corpo: pausa para uma liberdade mais definitiva, algo que não chegasse ao fim e que não fosse destruído pelo toque, apenas sendo mantido pelo olhar, como se para amar só os olhos bastassem. Entretanto, o narrador nos informa que é necessário controlar “a vontade de pentear suas penas com meus dedos”, pois tocar implica ter, possuir, e a posse também implica uma mudança de estado do ser-no-mundo, a partir das relações possíveis pertinentes a este estágio de conhecimento. Estas possibilidades encerrariam o sujeito no mundo: se criativamente (fazendo conhecimento), se estando simplesmente nele (usando conhecimento) ou estando nele de maneira crítica (posicionando-se diante do conhecimento). Posicionar-se frente ao conhecimento exige integração quanto ao resultado do fazer conhecimento, bem como do uso que se faz dele.

Podemos refletir um pouco mais sobre o sentido de ter a partir da concepção marterialista-histórica de Karl Marx. Inicialmente voltado à questão da propriedade privada e profundamente imbricado nas relações sociais, o pensamento de Marx a respeito do sentido de ter nos leva a avaliar o ato de conhecimento. Para Marx (MARX, 1974: 15-18), o homem é construído historicamente a partir de suas relações com o mundo e estas se dão a partir dos órgãos de sentidos (“órgãos imediatos”) e de suas faculdades, constituídas inicialmente de forma individual, como: ver, ouvir, cheirar, saborear, sentir, pensar, observar, perceber, querer, atuar, amar. Considerando que nesse sentido o conhecimento é uma relação entre sujeito/objeto, este são órgãos que também se constituem coletivamente, tornando-se “órgãos sociais”. Portanto o ato de conhecer pressupõe uma intervenção subjetiva do sujeito social no objeto, não havendo, portanto, uma interação passiva. Entendida como processo, a relação de conhecimento é dialética e se fundamenta pela apropriação do real e não de formação do real.

A varanda da situação inicial, construída para o ser, agasalhado friamente nela pelas suas inquietudes, desconstrói-se como tal e torna-se aquecida com o amor (p. 20), pela mediação sujeito/objeto, constituindo-se espaço harmônico, embora sempre com “ruídos de raízes em crescimento”, que não deixam de alertar para a passagem do tempo com todas as suas implicações: “Bastava ter ouvidos para escutar.” (p. 23)

“Tudo se deu em uma única manhã” (p. 24). Assim o discurso narrativo de Bartolomeu nos arranca da temporalidade psicológica, marcada pelas digressões filosóficas que estabelece, e lança-nos à temporalidade cronológica, marcada pela descrição brevíssima da madrugada entrando no quarto do menino e sobressaltando-o com um certo inverno que estava por chegar. O espanto, também contido no ato de admirar, estabelece entre menino e passarinho uma ligação mágica, espiritual, que se ancora muito mais num conhecimento sensível que no formal: o pressentimento: “Mas, como um passarinho, eu pressentia que um inverno havia chegado.” (p. 24)

As imagens suscitadas, segundo cuidadosas escolhas lexicais (carregado por um espanto/ embrulho de penas/ um inverno/ olhos embaçados de perda e susto – p. 24), revestem o ato verbal de intensa carga emotiva. Particularizam, especificam e adjetivam o momento mais crucial da construção do conhecimento do ser: a descoberta da finitude da vida. A função poética, a partir da utilização de recursos metafóricos, carrega o texto de uma intensidade necessária ao encaminhamento do clímax da história. A morte do passarinho torna-se banalizada enquanto equacionada na expressão embrulho de penas. Deixa a descoberto o menino-passarinho, também suscetível do mesmo destino: enfrentar um inverno (não qualquer inverno, como demonstra a escolha do artigo indefinido um adjetivando o substantivo seguinte). Seguindo o ciclo natural das estações do ano, o inverno sempre chega. Portanto, metáfora da morte, a chegada do inverno é um dado primordial no desfecho discursivo-narrativo da trajetória do Ser em construção. O espaço representado pela varanda, nessa situação final, configura-se como espaço em que a perda, pela manifestação da morte, eleva o ser a um outro nível de conhecimento. E novamente o distancia do real que ele busca, em contrapartida ao mundo que visualiza e percebe. A realidade concreta é apreendida e a imaginação não pode dar conta de resguardar e isentar o ser dessa confrontação, mesmo que “imaginando um céu com anjos e asas, sem dias e noite”, pois “ nada abrandava meu luto”. (p. 26)

O luto insere a mais absoluta solidão e esta filosoficamente pode ser entendida como “tarefa e esforço de conviver com as coisas na escuta do obscuro de seu estar-aí” (BUZZI, 2004: 185). O narrador-personagem descreve o percurso do menino nos atos ritualísticos do luto, iniciado pela busca, solitária, da “caixinha de papelão colorida, estampada com nuvens estrelas” (p. 28), na qual repousaria o corpo do amigo-passarinho, em seu último ninho:

Metáfora da liberdade, o passarinho simboliza no plano do conteúdo, as possibilidades do ser e do estar, a infinitude. Entretanto, na perda, pela revelação da morte, o passarinho simbolicamente remete-nos à voracidade e inexorabilidade do tempo, onde nada é eterno. Remonta-nos ao mito grego de Chronos, deus do tempo e devorador de seus filhos. O tempo que nos constrói é o mesmo tempo que nos exaure e nos encerra. Isto fica claramente demonstrado, no plano da expressão, pelo emprego da antítese “meu coração estava cheio de vazio” (p. 29). A realidade interpela o real : “com o cobertor enrolei o meu corpo por inteiro” (p. 29), corpo este que não é mais de passarinho. A primeira grande perda do menino é revelada pela expressão escuro da primeira noite, semanticamente ressignificada pela presença de escolhas lexicais de mesmo radical nas imagens seguintes: crua solidão/ pensamento cruel, e ainda enfatizada pela idéia de inclusão oferecida no emprego da palavra até: até passarinho passa (inclusive, também, passarinho passa), em contrapartida à preposição, com idéia de limite, “termo de movimento” (BECHARA, 1987: 287).

Etimologicamente, conhecer significa nascer-com. E nascer-com pressupõe uma relação dialética entre sujeito e objeto: um pelo e para o outro. Na intermediação deste conhecimento encontra-se a linguagem, produto de uma elaboração específica e mental do sujeito em relação ao objeto. A especificidade da linguagem humana reside em seu caráter simbólico: a expressão passa a constituir o morar-no-mundo com todas a suas potencialidades. A literatura, enquanto manifestação artística, constrói conhecimento, pois serve e é servida ao homem, cuja abrangência é pluridimensional. A essência da linguagem, sendo a palavra, busca e rebusca sentidos e horizontes que revelam o pensamento e o sentimento humanos.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao revisitarmos o espaço da matéria literária, tendo a nos motivar os conceitos de discurso literário e função poética, procuramos destacar o texto literário propriamente dito como operador de conhecimento, que observando o aspecto formal, fundamenta-se, antes de tudo, numa concepção dialética que investiga a própria natureza humana em suas questões ontológicas.

O texto de Até passarinho passa, de Bartolomeu Campos de Queirós, opera em nós uma reflexão contundente acerca da passagem do tempo e da presença da morte. Não há assombro maior ao homem, seja em que tempo histórico for, que se constatar à presença da morte, em todos os dias de sua vida.

A literatura ao tratar de temas universais, a partir do tratamento diferenciado da linguagem, firma-se como arte, a despeito das variadas discussões que lhe são peculiares; sobretudo, aquelas que atualmente envolvem a concepção de literatura infantil-juvenil, como as questões ligadas às implicações mercadológicas, sociais, o texto não-verbal, etc. Embora não sendo referidas neste trabalho, por não constituir o nosso objetivo, por si só merecem uma atenciosa investigação em outra oportunidade.

O texto de Bartolomeu Campos de Queirós, finalmente, permite-nos afirmar, pelos aspectos aqui propostos e abordados, que um bom texto literário pode ultrapassar qualquer categorização e firmar-se em qualquer tempo histórico por aquilo que a arte mais preza: a instituição do Belo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte, 5ª ed. São Paulo: Ática: 1995.

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CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática: 2000.

HÜHNE, Leda Miranda (Org.). Metodologia científica: Caderno de textos e técnicas. 7ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 2000.

KHÉDE, Sonia Salomão et alii. As polêmicas sobre o gênero. In: –––. Literatura infanto-juvenil: um gênero polêmico. Petrópolis: Vozes, 1983.

LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário, São Paulo: Brasiliense, 2003. (Coleção Primeiros Passos)

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos In: Marx. Coleção “Os Pensadores”. Nova Cultural, 1974, vol. XXXV.

MESQUITA, Samira Nahid.. O enredo. São Paulo: Ática, 1988. (Princípios).

ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: As formas do discurso, 2ª ed. Ver. e aum. São Paulo: Pontes, 1997.

PONDÉ, Glória Maria Fialho. Poesia para crianças: a mágica da eterna infância. In: KHÉDE, Sonia Salomão (org.). Literatura infanto-juvenil: um gênero polêmico. Petrópolis: Vozes: 1983.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Até passarinho passa. Ilustrações de Elisabeth Teixeira. São Paulo: Moderna, 2003.

––––––. Ler, escrever e fazer conta de cabeça. Belo Horizonte: Miguilim: 1996.

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