A REPETIÇÃO
MARCA DA ORALIDADE
NO DISCURSO LITERÁRIO DE ADRIANA FALCÃO

Anete Mariza Torres Di Gregorio (UERJ e UNIG)

Antes de iniciar propriamente as reflexões pertinentes ao tema, parece-me necessário um breve comentário a respeito de a autora.

Adriana é escritora que exerce atividade também nas áreas de teatro (seu romance A Máquina foi levado aos palcos) e de televisão. Nesta, entre outras coisas, colaborou em vários episódios de “Comédia da Vida Privada”, “Brasil Legal” e “A Grande Família”, da Rede Globo. Adaptou para a TV, junto com Guel Arraes, O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, posteriormente levado ao cinema. Estreou na literatura infantil com o livro Mania de Explicação, que recebeu o Prêmio Ofélia Fontes) “O melhor para a Criança”/2001, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

Dentre as suas produções literárias, elejo para a pesquisa Luna Clara & Apolo Onze, cuja narrativa revela que a autora deixou-se influenciar pela língua oral e/ou apropriou-se (intencional ou intuitivamente, isso não importa) da riqueza de seus recursos, especificamente, do emprego da repetição, contribuindo para a sedução do leitor. Há quem considere, como Tannen (In Koch, 2000: 93), que “a emoção está intimamente associada ao familiar, àquilo que se repete”, posicionando-se de modo contrário ao senso comum, que insinua ser enfadonho aquilo que é previamente estruturado, inalterável, repetido. Tannen ressalta que é preciso reconhecer a existência no ser humano de uma propensão para imitar e repetir.

Não se pode ignorar esse ponto de vista, pois da infância a fase adulta, o homem interage fundamentalmente por meio de atos ilocutórios repetitivos, quer em situações quotidianas (fórmulas de cortesia em geral) quer em situações rituais (fórmulas estereotipadas, cujas performances têm o poder de “criar” o fato). Sem contar o prazer que se sente nos jogos intertextuais realizados nas conversas do dia-a-dia ou nos discursos altamente formais.

A discussão concernente à repetição como marca da oralidade no discurso literário, a meu ver, deve ser precedida pela distinção entre fala e escrita.

ALGUNS ASPECTOS DISTINTIVOS ENTRE FALA E ESCRITA

Os estudos atuais vêem as características diferenciadoras dessas duas modalidades de uso da língua não mais de forma dicotômica, estagnada, localizando-as em dois pólos opostos, mas sim, sob uma nova ótica: distingue-se fala e escrita no interior do continuum tipológico das práticas sociais, pois é nele que as diferenças ocorrem. É Koch (2000: 61/62) quem escreve:

(...) existem textos escritos que se situam, no contínuo, mais próximos ao pólo da fala conversacional (bilhetes, cartas familiares, textos de humor, por exemplo), ao passo que existem textos falados que mais se aproximam do pólo da escrita formal (conferências, entrevistas profissionais para altos cargos administrativos e outros), existindo, ainda, tipos mistos, além de muitos outros intermediários.

O olhar preconceituoso respeitante à fala originou-se das diferenças que eram, e, por vezes, são ainda estabelecidas entre as modalidades falada e escrita. Enquanto a fala foi sempre caracterizada como não-planejada, fragmentária, incompleta, pouco elaborada, predominância de frases curtas, simples ou coordenadas, pouco uso de passivas, etc.; à escrita – em oposição – imputou-se constantemente as qualidades de ser planejada, não-fragmentária, completa, elaborada, predominância de frases complexas, com subordinação abundante, emprego freqüente de passivas, etc. (cf. Koch, 2003: 77).

Hoje, o que se verifica, na verdade, é que fala e escrita apresentam tipos de complexidade diversos, embora se utilizem do mesmo sistema lingüístico, obviamente.

Nas últimas décadas do século XX, em todo o mundo, as pesquisas da Ciência da Linguagem vieram progressivamente ampliando o espaço para os estudos da língua oral, enfatizando a sua importância. O surgimento de áreas novas como, por exemplo, a Análise da Conversação e a Sociolingüística Interacional (voltadas à compreensão do ato conversacional e da ação de fatores internos e externos que o influenciam) validam o atual “status” atribuído à fala.

Chegou-se ao consenso, nesses estudos, que a língua falada é organizada e possui uma gramática própria, cujas categorias de análise diferenciam-se da gramática da língua escrita.

Segundo Koch (2000: 62-64), a fala peculiariza-se pelas seguintes características: é localmente planejada; no texto falado, planejamento e verbalização se dão concomitantemente; o fluxo discursivo mostra descontinuidades freqüentes, definidas por um conjunto de fatores de ordem cognitivo-interacional (portanto, as descontinuidades têm justificativas pragmáticas de grande relevância); embora sirva-se da sintaxe geral da língua, o texto falado apresenta uma sintaxe singular (há falsos começos, truncamentos, correções, hesitações, além de inserções, repetições e paráfrases; tudo isso ocorre porque as normas da sintaxe submetem-se, amiúde, a pressões de ordem pragmática, uma vez que é a interação – imediata – o que importa); a fala é processo, por conseguinte, dinâmica, enquanto a escrita é o resultado de um processo, logo, estática.

Cabe lembrar, também, que, na organização textual e interacional da fala, observa-se a presença de marcadores conversacionais, construções impessoais de fundo atenuador etc. Quanto ao vocabulário, percebem-se elementos constitutivos da linguagem afetiva do falante: o emprego cada vez mais generalizado de vocábulos gírios, obscenos e ofensivos.

REPETIÇÃO E ORALIDADE

No processo de inter-ação, uma das estratégias de composição de texto a que os interlocutores mais recorrem é a repetição (cf. Marcuschi, 1997: 95). O reuso (duas ou mais vezes) dos mesmos ou de parecidos segmentos lingüísticos na cadeia discursiva contribui para a leveza textual, criando condições facilitadoras que, por um lado, permitem ao ouvinte ter tempo de assimilar melhor as informações, por outro, propiciam ao falante as circunstâncias precisas não só para (re)organizar o seu discurso, mas também para acompanhar e avaliar a coerência textual.

A repetição auxilia ainda a coesão e a realização de seqüências mais compreensíveis, além de promover o prosseguimento da organização tópica e favorecer o envolvimento entre os participantes da comunicação textual.

Constata-se, portanto, que a repetição não é apenas uma simples característica da língua falada. Ela assume diversas funções, tornando-se, por conseguinte, essencial em uma gramática da textualização nessa modalidade de língua.

Falante/ouvinte, utentes de sua língua materna, têm a possibilidade de observar e absorver paradigmas da produção lingüística face a face, arquivando-os em sua memória, prontos para serem acessados e (re)utilizados em um dado evento comunicativo.

No discurso literário, o escritor-falante elabora os recursos da língua falada de tal forma – entre eles, a repetição – que dá ao leitor a ilusão de uma realidade oral. Utiliza, na escrita, marcas de oralidade, que, de acordo com Dino Preti (2004: 126), “permitem ao leitor reconhecer no texto uma realidade lingüística que se habituou a ouvir ou que, pelo menos, já ouviu alguma vez e que incorporou a seus esquemas de conhecimento, frutos de sua experiência como falante”.

Logo, é preciso deixar claro que a oralidade na escrita literária não pode ser pensada como transcrição fidedigna da fala. Trata-se de um artifício de linguagem elaborado pelo escritor, que esmera a situação discursiva da ficção, tentando aproximá-la do verdadeiro contexto lingüístico-interacional.

O estudo da repetição como marca da oralidade no discurso literário circunscreve-se, portanto, ao campo da estilização desse recurso próprio da língua falada, revelando a desenvoltura do escritor ao lidar com o sistema lingüístico.

Em Luna Clara & Apolo Onze, a autora trabalha habilmente o emprego da repetição, explorando suas várias formas e suas multifunções.

Neste trabalho, dirijo a atenção apenas às repetições que manifestam segmentos discursivos acima do nível morfemático, isto é, às repetições de itens lexicais e às de estruturas sintáticas, examinando seus aspectos funcionais. Deixo de lado, portanto, as fonológicas (aliteração, alongamento, entoação etc.) e as de morfemas (prefixos, sufixos etc.).

Quanto às funções, as repetições na língua falada acionam dois planos: o da composição do texto e o discursivo. No primeiro, a repetição desempenha basicamente o papel de coesividade, abarcando, portanto, os aspectos de seqüenciação, referenciação, correção, expansão, parentetização, enquadramento. No segundo, atua com mais funções, concorrendo para compreensão, continuidade tópica, argumentatividade e interatividade (cf. Marcuschi, 1997: 107).

Compete-me, na pesquisa, examinar em que medida essas funções da repetição materializam-se no discurso literário da obra em questão.

REPETIÇÃO DE ITENS LEXICAIS

Os exemplos (1 a 9) apresentam casos de repetição (R ) lexical adjacente, ou seja, quanto à distribuição na cadeia textual, os segmentos repetidos são contíguos ou próximos.

Em (1 a 7), nota-se R integral (com identidade de forma), que reproduz com exatidão a primeira entrada do segmento discursivo depois repetido, denominada por Marcuschi de matriz (M). Consoante o autor (1997: 97), a “M caracteriza-se por operar como base ou modelo para a projeção de outro segmento construído à sua semelhança ou identidade, chamado de repetição (R)”.

Já em (8 e 9), vê-se a R com variação (um nome se verbaliza).

Quanto às funções dessas R, opta-se por analisá-las caso a caso.

Naquela sexta-feira dos ventos, 7 de julho, (...)

Ela [Luna Clara] estava lá, sentada na beira da estrada como ficava todos os dias,

esperando, esperando, esperando, esperando, esperando. (7)

O fragmento constitui o 1º (incompleto) e o 2º parágrafos iniciais de Luna Clara & Apolo Onze. Adriana Falcão, ao usar o gerúndio na locução verbal (Ela estavaesperando, ...), acentua o aspecto durativo do processo verbal ocorrido naquele dia. No tocante a esse emprego do gerúndio, Celso Cunha (1985: 481) afirma que “estar seguido de GERÚNDIO indica uma ação durativa num momento rigoroso”. O aspecto inconcluso do gerúndio possibilita-lhe expressar a idéia de progressão indefinida, bem mais marcada com a repetição de sua forma.

Do ponto de vista das funções, a repetição em (1) atua no plano discursivo, colaborando para a compreensão textual através da criação de pistas. Este é o caso da continuação, efeito semântico produzido pela repetição. Conforme Ishikawa – citada em Koch (2000: 98) – trata-se de significado icônico, ou seja, tipo de “diagrama em que a quantidade aumentada de forma assemelha-se à extensão de tempo aumentado durante a ação”.

Os desejos antigos devem ficar muito entusiasmados quando se realizam, a ponto de se tornarem repetitivos, tanto é que ela [Luna Clara] disse mil vezes:

– Está chovendo, está chovendo, está chovendo, está chovendo, está chovendo...

Outro pingo.

E outro.

E outro. Muitos deles. Pingos incontáveis. (174/175)

O exemplo permite duas perspectivas de análise: a repetição de itens lexicais e a repetição de estrutura sintática. Arrolo-o, no momento, por simples razão de proximidade das explanações do caso (1) sobre a utilização do gerúndio na locução verbal e seu efeito semântico de continuação gerado pela repetição, pois estas aplicam-se também ao (2): Está chovendo, está chovendo...

Em relação à repetição da estrutura sintática, parece-me que ela funciona, aqui, como elo coesivo – plano da textualização, portanto – retomando a idéia anterior contida no item lexical está chovendo por meio da frase nominal M outro pingo:

Outro pingo (caía).

E outro {Ø} (Ø).

E outro {Ø} (Ø).

Ao mesmo tempo que colabora para a continuidade temática, confirmando o dito através da repetição feita pela substituição lexical, favorece a progressão semântica, permitindo que o leitor infira a que tipo de chuva o texto se refere. A presença do conectivo e – em polissíndeto – e a repetição do pronome indefinido outro sugerem o processo gradual da precipitação atmosférica formada de gotas.

No que tange à coesão (designada por Michel Charolles de coerência microestrutural) e à coerência (chamada por ele de coerência macroestrutural), vale lembrar a primeira e a segunda metarregras elaboradas por Charolles (1997: 49, 58) acerca da coerência global do texto:

1ª. Metarregra de repetição: Para que um texto seja (microestruturalmente e macroestruturalmente) coerente é preciso que contenha, no seu desenvolvimento linear, elementos de recorrência estrita. 2ª. Metarregra de progressão: Para que um texto seja microestruturalmente ou macroestruturalmente coerente, é preciso que haja no seu desenvolvimento uma contribuição semântica constantemente renovada.

Como se verifica em (2), a segunda metarregra completa a primeira, porquanto determina que um enunciado, para ser coerente, não pode simplesmente ser tautológico. Adriana Falcão equilibra a continuidade temática e a progressão semântica.

(3) Desde que ficou sozinho com aquelas três meninas para criar, Seu Erudito pegou essa segunda mania: andar, andar, andar, andar. (33)

Em (3), a repetição age no plano discursivo com a função de iteração, mais um de seus efeitos semânticos. Ishikawa (In: Koch, 2000: 98) considera esse efeito como significado icônico, isto é, “o diagrama em que a forma repetida assemelha-se à ação repetida (iteração)”.

(4) Lá de longe, [Doravante] gritou alguma coisa para ela, mas Luna Clara só ouviu o final da frase:

... perigosa!

Perigosa, perigosa, perigosa”, ela foi repetindo no pensamento. (46/47)

A repetição em (4) caracteriza a constituição de um tópico, funcionando também no plano discursivo. Adriana quer trazer à tona a situação de perigo que cerca o personagem Luna Clara.

(5) Beijos e beijos e beijos e beijos, ele [Doravante] sonhou com ela [Aventura] a noite inteira. (64)

Neste exemplo, a repetição tem a função de intensificar o sentido, outro de seus efeitos semânticos, atuando no plano discursivo. Relaciona-se, segundo Ishikawa (In: Koch, 2000: 98), com significado icônico, quer dizer, “o diagrama em que, a quantidade aumentada de forma assemelha-se à quantidade aumentada de significado da forma (intensidade)”.

Observa-se ainda a acentuação desse efeito pelo uso do conectivo e – em polissíndeto – insinuando, de acordo com Celso Cunha (1985: 612), “movimentos ininterruptos ou vertiginosos”.

(6) – Aventuraventuraventuraventura... – Ia cantando, em sol maior, para ver se ou Aventura ou o sol apareciam. (130)

O excerto (6) reflete uma característica marcante em Luna Clara & Apolo Onze: o humor. Linha de trabalho desenvolvida por Adriana Falcão como, a meu ver, estratégia para conquistar o público infanto-juvenil, alvo da referida obra.

Em (6), ao lançar mão de um homônimo perfeito da M, Adriana brinca com o leitor, fazendo a repetição de uma forma, mas não a repetição de um mesmo referente. O jogo de palavras (próprio da oralidade) instiga o leitor a procurar esclarecimento para a compreensão do texto, funcionando no plano discursivo.

(7) A última vez que choveu na cidade foi na noite em que Luna Clara nasceu.

Então.

Doze anos, oito meses e quinze dias antes daquela sexta-feira.

Então.

De lá para cá nunca mais tinha ventado.

Então.

E nem chovido.

Então lá em Desatino do Norte não existiam lagos, rios, mares, poças, nada molhado. (8)

Observa-se, no trecho (7), a importância coesiva de então, que aparece com macrofunções distintas.

A primeira R desempenha, no meu entender, a macrofunção organização tópica, em que a M (primeira entrada de então) atua como introdutora de um subtópico (tempo de nascimento do personagem) e a primeira R tem a subfunção de retomada do tópico (A última vez... De lá para cá...).

Mercedes Risso (In: Santos, 2003: 63) declara que, em textos orais mais formais, “a atuação de então revela-se centrada com ênfase no processamento da informação e na tessitura dos tópicos que se lhe associam. Trata-se, portanto, de um marcador tipicamente articulador de partes do texto”.

Na segunda R (De lá para cá nunca mais tinha ventado. Então. E nem chovido.), vê-se a macrofunção progressão narrativa com a subfunção de conclusão discursiva.

Se não houvesse então alinhavando os dois segmentos, o efeito seria apenas o de um acréscimo de informação: nem vento e nem chuva. Entretanto, a presença de então mostra que o segundo enunciado foi gerado como uma conclusão lógica do primeiro. De acordo com Lygia Moraes (In: Santos, 2003: 66), “o papel conclusivo é um dos valores básicos de então, podendo a conclusão ser lógica(se p, então q) ou discursiva (“de um enunciado vai nascendo outro”)”.

Em (7), a última R de então exerce também a macrofunção progressão narrativa, só que com a subfunção de causa/efeito: p ocorre (há doze anos, oito meses e quinze dias não chovia naquela cidade), então q acontece como conseqüência (lá em Desatino do Norte não existiam (...) poças, nada molhado.).

Vários estudos têm comprovado as ocorrências freqüentes do articulador então na fala espontânea, utilizado com uma multiplicidade de valores semântico-discursivos (Cf. Santos, 2003: 62). Portanto, o trecho (7) é bastante significativo para este trabalho, pois põem em relevo a R do articulador então como marca da oralidade em Luna Clara & Apolo Onze.

(8) – Imprevisto e Poracaso! – gritou a velha.

E lá de fora deu para ouvir o seu soluço de velha soluçando. (164)

(9) Luna Clara também presenciou o nascimento do dia. Não conseguiu dormir tentando convencer os pensamentos a pararem de pensar, mas eles estavam desvairados e foi inútil. (301)

Nos fragmentos (8) e (9), há vocábulos cuja significação expressa de modo muito exato a idéia de que a autora precisa, por isso aparecem repetidos e, nestes casos, em classes gramaticais diferentes, com a função de enfatizar as noções de soluço e pensamentos, acionando o plano discursivo. Ao efetuar a repetição por intermédio da verbalização (soluçando e pensar) dos respectivos nomes, a escritora simula um procedimento comum em uma narrativa oral.

REPETIÇÃO DE ESTRUTURAS SINTÁTICAS

Na pesquisa, concentro-me na repetição de estruturas sintáticas que apresentem, também, como seus constituintes, vocábulos repetidos. Essa é uma estratégia que singulariza a língua oral, como atesta o corpus do Projeto NURC – Recife/São Paulo analisado por Marcuschi (1997: 95-125).

O exemplário a seguir comprova que a maioria das R oracionais apresenta R adjacentes com variações, diferentemente das R de itens lexicais, em que apareciam mais R integrais:

(10) (...) [Noctâmbulo] Rogou praga, jogou pedra, acendeu vela, fez abaixo-assinado só com a sua assinatura, fez intriga, cara feia, desaforo, até que foi ao juiz reclamar do barulho e exigir uma solução. (23)

A oralidade em (10) é altamente marcada. Adriana Falcão emprega a justaposição das frases, lembrando a simplicidade do processo oral. Especificamente, nas orações com o verbo fazer, Adriana recorre a uma estratégia comum na coesão seqüencial do texto falado: o princípio da listagem (cf. Marcuschi, 1997: 107-112).

As listas – paralelismos sintáticos – além de consistirem em um recurso para o encadeamento inter-frástico, elas imprimem um certo ritmo à escrita literária, assemelhando-a à narrativa oral. As orações com o verbo fazer demonstram como se vai de uma unidade frasal completa até uma unidade frasal composta por um item lexical:

(...) fez abaixo-assinado só com a sua assinatura,

fez intriga,

{Ø} cara feia,

{Ø} desaforo,

Marcuschi (1997: 109) ressalta que “as listas fornecem uma estrutura com base na qual fazemos todos os preenchimentos dos vazios sucessivamente gerados.

(11) Que barulho danado era aquilo?

Canários desafinados cantando?

Gansos esganiçados grunhindo?

Era um show de calouros?

Um coral?

Um dueto?

Um duelo?

Um desespero? (157)

Em (11) vê-se também a formação de lista como estratégia coesiva seqüencial do texto:

Era um show de calouros?

{Ø} Um coral?

{Ø} Um dueto?

{Ø} Um duelo?

{Ø} Um desespero?

Através da coesão seqüenciadora, o falante/escritor faz o texto avançar, assegurando, todavia, a continuidade dos sentidos (cf. Koch, 2000:40).

(12) “Quem será esse aí sentado?” (Ela) [Luna Clara]

Quem será essa que vem vindo?” (Ele) [Apolo Onze]

Não é meu pai.” (Ela)

Não é a lua.” (Ele)

Mas tem a chuva.” (Ela)

Mas nem precisava.” (Ele) (177)

Este exemplo é bastante interessante, pois apresenta uma seqüência de pares de estruturas sintáticas repetidas com variações.

Trata-se de um fragmento da cena em que os protagonistas da história encontram-se pela primeira vez. Há um espanto mútuo, impedindo-os de iniciarem uma conversa. O que ocorre, na verdade, é um monólogo – processado, portanto, na mente de cada um dos personagens – montado como se fosse um diálogo, imitando a interação face a face, em que os interlocutores aproveitam materiais lingüísticos anteriores, numa atividade discursiva colaborativa. Atente-se para o último par:

“Mas tem a chuva.” (Ela)

“Mas nem precisava”. (Ele)

ter a chuva.”

No plano da composição textual, esse tipo de R tem como função cooperar com a coesividade.

(13) O vento noroeste soprava dali, o sudoeste respondia daqui, os pingos pareciam feitos de chumbo, e a ponte balançava feito uma rede, para lá e para cá, para lá e para cá, para lá. (62)

A marca da oralidade em (13) não se restringe à simples repetição da estrutura sintática M:

O vento noroeste soprava dali,

{Ø} {Ø} sudoeste respondia daqui,

Se no plano da organização textual, a R funciona como elemento coesivo, no plano do discurso, o jogo dos dêiticos correspondentes (dali/daqui) atua com a função de reforçar a impressão de um texto oral, dando realce ao simulacro.

(14) “Será que é hoje que ele chega?”

“É sim.”

“Eu [Luna Clara] tenho certeza absoluta que ele [Doravante] chega hoje.

“Mas eu também tive certeza absoluta ontem.” (7)

O exemplo (14) mostra a repetição de estrutura sintática com variação como estratégia de coesão seqüenciadora. O que o torna peculiar, além do jogo temporal (adaptações do tempo verbal e o uso em oposição dos marcadores adverbiais de tempo hoje/ontem), é que a R é introduzida pela conjunção coordenativa adversativa mas, viabilizando o contraste de argumentos.

(15) Com o padre devidamente arrastado para um canto, a cerimônia aconteceu, entre uma dança e outra.

Senhor Doravante, promete amar Aventura para sempre, na alegria e na tristeza...

Nas andanças pelo caminho! – lembrava Seu Erudito.

... na saúde e na doença...

Nas andanças pelo caminho, não se esqueça!

... na primavera, outono, inverno, verão...

Nas andanças pelo caminho!

O senhor quer fazer o favor de ficar quieto? Que pai de noiva mais chato! o padre se irritou, mas acabou utilizando o tal “nas andanças pelo caminho”, para ver se conseguia terminar aquela reza. (39/40)

Aprecia-se, em (15), um procedimento de camuflagem da interação face a face, pontuado pela R com variação e a R integral do sintagma adverbial nas andanças pelo caminho.

As R desempenham a função de ratificar a interatividade, mostrando as sucessivas interrupções feitas pelo personagem Erudito em uma situação comunicativa ritualística – no caso, um casamento – em que a expectativa dos participantes do evento é a de que não haja espaço para incorporar segmentos discursivos proferidos por um dos presentes à cerimônia.

Esta insistente R do sintagma adverbial nas andanças pelo caminho cria o efeito de um refrão, sinalizando que o personagem não desistirá de influir na produção do texto em questão, desestabilizando quem está, naquele momento, com a exclusividade da posse do turno. Como se vê, o padre é levado a um alto grau de irritação, motivo pelo qual perde a polidez: “– O senhor quer fazer o favor de ficar quieto? Que pai de noiva mais chato!”. Mas, a seguir, o celebrante cede à pressão e inclui as palavras daquele que corta o seu discurso, num comportamento explícito de proteção da face. Afinal, é preciso concluir o rito.

Vocês [as outras velhas] sabiam que, nesse exato instante, uma certa moça que está lendo um livro precisa urgentemente encontrar um certo rapaz? – a velha de rosa revelou.

E vocês sabiam que, nesse exato instante, esse tal rapaz está lendo o mesmo livro e também precisa urgentemente encontrar a tal da moça? – informou a velha de azul. (323/324)

Neste excerto, a autora faz menção ao leitor, numa clara sugestão de interatividade.

Essa é uma estratégia que tem a função de envolvimento do leitor, pois dá um tom de conversa ao discurso literário, promovendo a sensação de um diálogo em presença entre escritor e leitor.

A R com variação (M: (...) uma certa moça que está lendo um livro precisa urgentemente encontrar um certo rapaz/ R: (...) esse tal rapaz está lendo o mesmo livro e também precisa urgentemente encontrar a tal da moça) confirma, na imaginação, o pressuposto de que o escritor, de algum modo, conhece o leitor e compartilha de seu universo. Trata-se, na verdade, de um apelo para que o leitor aceite a proposta de interação do escritor mediada por sua obra.

Encerro a análise da R como marca da oralidade em Luna Clara & Apolo Onze, apresentando três exemplos atípicos, pois fogem ao padrão de R analisado nos excertos anteriores.

Trata-se da R através do emprego de “frases feitas”. Embora a M não se materialize no texto, ela está presente no repertório lingüístico do usuário de língua materna, não impedindo, portanto, que a única aparição da “frase feita” seja considerada como uma R. Veja-se a seguir.

Pilhério era o papagaio mais apapagaiado que já existiu.

(...) Falava pelos cotovelos (que no caso dele eram as partes dobráveis das asas) e sua cultura geral era realmente impressionante. (35)

O uso de expressões idiomáticas, isto é, expressões formadas de distintas palavras, cujo sentido vale para o todo, e não pode ser conseguido pela montagem do sentido das palavras que as compõem, torna mais ativo o processamento da informação textual. Segundo Gibbs (IN Koch, 2000:94), “quanto mais convencionalizado for o sentido de uma expressão, tanto mais automática e rápida será a sua compreensão”.

Em (17), há a R integral da expressão idiomática, neste caso, composta por uma oração inteira: (...) Falava pelos cotovelos = falava em excesso; era ou mostrava-se muito loquaz.

Doze cães saíram da casa latindo, vai ter cães assim lá no meio do mundo! (187)

Na linha do humor, em (18), observa-se uma R com variação, dando idéia de um xingamento, causando impacto no leitor de literatura infanto-juvenil: (...) vai ter cães assim lá no meio do mundo! = PQP.

Koch (2000:94) lembra que, “em se tratando de atos de fala indiretos ou de expressões idiomáticas, o processamento será mais rápido ou mais lento, conforme sejam repetidos de forma idêntica ou submetidos a ligeiras alterações”.

Para testar cada tipo de consolo que existe, incluindo carinho, doce e conselho, Leuconíquio falou docemente para ela [Aventura] frases como: “vocês ainda vão ser muito felizes”. Ou “quando dois olhos procuram outros dois com tanta vontade assim, sempre se encontram, é claro”.

Ou ainda “a senhora quer fazer o favor de parar de chorar que eu já estou ficando nervoso?” (101/102)

Diante de situações quotidianas constrangedoras, dificilmente encontra-se, de fato, algo novo para se dizer.

Adriana Falcão retrata essa circunstância, demonstrando que, nessas ocasiões, o importante é a interatividade, a manutenção do contato com o outro. A função das frases feitas passa a ser, portanto, a de preenchimento de um vazio verbal, silêncio que fatalmente ocorreria.

Em (19), há R integral (“vocês ainda vão ser muito felizes”) e R com variação (“quando dois olhos procuram outros dois com tanta vontade assim, sempre se encontram, é claro).

Na fala espontânea, independente da faixa etária ou da cultura, o emprego de expressões idiomáticas é bem comum.

Quanto à repetição e interação, Koch (2000: 95) diz que “todo e qualquer discurso é desenvolvido internacionalmente, no sentido de que faz eco a enunciados anteriores”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Espera-se, após a análise do corpus, ter comprovado que a repetição é uma marca da oralidade em Luna Clara & Apolo Onze, funcionando na escrita literária – assim como no texto de língua falada – como uma estratégia de formulação textual.

Constitui-se, conforme demonstrado, em um importante mecanismo que possibilita tornar o texto mais coeso, acessível e coerente, além de ser um recurso semântico-estilístico de considerável poder de persuasão, em se tratando de um público-leitor de literatura infanto-juvenil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CUNHA, Celso e CINTRA, L.F.L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

FALCÃO, Adriana. Luna Clara & Apolo Onze. São Paulo: Moderna, 2002.

KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2000.

––––––. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2003.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. A repetição na língua falada como estratégia de formulação textual. In: KOCH, Ingedore Villaça (org.). Gramática do português falado, volume VI. 2. ed. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP/FAPESP, 1997.

PRETI, Dino. Estudos de língua oral e escrita. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

SANTOS, Leonor Werneck dos. Articulação textual na literatura infantil e juvenil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

 

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