NA TRILHA DAS FORMIGAS VICENTINAS:
A FORMATAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA EXPANSIONISTA
NO AUTO DA ALMA, DE GIL VICENTE

Eloísa Porto Corrêa (UFRJ)

Introdução

No Auto da Alma, pode observar-se a importância dos trabalhadores humildes e dos burgueses: formigas, como a força motriz fundamental e inesgotável possibilitadora do sucesso da Expansão Portuguesa, mas, muitas vezes, enganada e explorada. Além disso, percebe-se também o vasto, criativo e diversificado trabalho doutrinário desenvolvido dentro da Arte, mais especificamente das obras teatrais vicentinas, buscando moldar o povo em “mão-de-obra perfeita” para atender ao “Rei e aos seus planos expansionistas”.

O ufanismo, o idealismo, a fé e o nacionalismo exacerbados, entre outros, aparecem a todo o momento dentre as armas ideológicas usadas para obter a adesão incondicional e ilimitada das massas, encantadas com a possibilidade de fundar e integrar uma potência mundial e de poder trabalhar a serviço de Deus e de seus “representantes na Terra”: o Rei e a Igreja. Em contraponto à “ingenuidade popular”, tem-se a nobreza e o clero, verdadeiras raposas, aquela traçando metas e antevendo os lucros da empreitada, este executando trabalhos doutrinários junto às massas e ambos abocanhando a parcela majoritária da bem sucedida empresa.

Assim, a obra de Gil Vicente, um dos expoentes máximos do Quatrocentismo e do Quinhentismo Português, mostra-se terreno propício para a pesquisa e a investigação da execução do projeto expansionista; do incansável, vasto e criativo trabalho literário e doutrinário exercido pela sua arte; bem como dos métodos e dos processos de arregimentação de mão-de-obra para a Expansão, por causa da freqüência e do relevo com que o dramaturgo enfocou as figuras populares do Portugal de mil e quinhentos.

Auto da Alma: comportamentos condenados

No Auto da Alma, além de se reiterar a necessidade de devoção e abnegação em prol da vida eterna e do deleite celestial, enumeram-se comportamentos condenados, que devem ser evitados pelos cidadãos, através da figura da alma indecisa entre os encantos do Céu, apontados pelo Anjo, e as falsas riquezas e deleites, prometidos pelo Diabo.

Contudo, o trabalho vicentino passa, e muito, de uma mera apologia, convertendo-se numa espécie de alerta às almas “desavisadas” ou “desvirtuadas” sobre os perigos e as tentações materiais e carnais (na voz do Diabo), de que se devem desviar e combater, pois conduzem ao castigo do inferno.

Além disso, revela-se como respeitável o plano celestial para a vida das almas, que são construções perfeitas, “à imagem e semelhança de Deus” e, por isso, devem trilhar os caminhos recomendados por Deus. O sacrifício é colocado como fundamental para a preservação, a purificação e a santificação da alma humana, conforme revelam as falas dos santos e do Anjo Custódio:

ANJO Alma humana, formada

de nenhüa cousa feita,

mui preciosa,

de corrupção separada,

e esmaltada

naquela frágoa perfeita,

gloriosa!

(...)

Um ponto não esteis parada,

que a jornada

muito em breve é fenecida,

se atentais.

O Anjo alerta, ainda, para a atenção redobrada que devem ter as almas em seu trajeto terrestre, pois um descuido, uma negligência (“não durmais”) para com suas obrigações espirituais pode implicar em fenecimento.

Logo na primeira fala, a de Agostinho, aparece uma espécie de permissão e de alerta à necessidade de que a Igreja interceda, proteja e zele para que as almas se mantenham no caminho da virtude, seguindo um projeto divino (“nesta carreira da glória / meritória, / foi necessário pensada / para as almas”).

Percebe-se, ainda, a colocação da Igreja como “porta-voz oficial, fiscal e agente” da vontade celeste. Além disso, o exemplo de Cristo aparece invocado também como um chamado à obrigação e à responsabilidade humana de levar a vida segundo os ensinamentos cristãos. Ao mesmo tempo, pode ser encarado como um incentivo às “almas” para que morram em nome da propagação da fé, que levem vida humilde, pensem na coletividade e não apenas em si (ideal expansionista, por excelência), entre outros procedimentos que Cristo adotou na terra, segundo a doutrina católica.

Ainda na fala de Agostinho, a Igreja é eleita a “santa estalajadeira”, um abrigo e a “curandeira dos males das almas em seus destinos terrenos”, reiterando a posição maternal do Templo cristão e paternal do Padre (assim como Deus). O Anjo aparece, também, na já conhecida posição de protetor designado de Deus, como anjo da guarda: “aio”, “zelador imaterial” das almas:

A Sua mortal empresa

foi santa estalajadeira

Igreja Madre:

consolar à sua despesa,

nesta mesa,

qualquer alma caminheira,

com o Padre

e o Anjo Custódio aio.

Alma que lhe é encomendada,

se enfraquece

e lhe vai tomando raio

de desmaio,

se chegando a esta pousada,

se guarece.

A própria alma, em seguida, parece “passar uma procuração para a Igreja”, clamando para ser vigiada e protegida das tentações terrenas, o que praticamente legitima o trabalho de vigilância e de doutrina desenvolvidos pelos “emissários da fé” (a Igreja, o Rei, Gil Vicente), já que estariam simplesmente zelando pela salvação das almas:

ALMA Anjo que sois minha guarda,

olhai por minha fraqueza

terreal!

de toda a parte haja resguarda,

que não arda

a minha preciosa riqueza

principal.

Cercai-me sempre ò redor

porque vou mui temerosa

de contenda.

Ó precioso defensor

meu favor!

Vossa espada lumiosa

me defenda!

Tende sempre mão em mim,

porque hei medo de empeçar,

e de cair

Assim, Gil Vicente passa para a voz do Anjo (da guarda, protetor e conselheiro) todas as doutrinas que deseja reforçar nos procedimentos populares, de desapego material, desprendimento terreno e abdicação do mundano, em prol do celeste, chegando a enumerar os males a serem evitados e execrados e as virtudes a serem cultuadas e seguidas:

ANJO Pera isso sam e a isso vim;

mas enfim,

cumpre-vos de me ajudar

a resistir

Não vos ocupem vaidades,

riquezas, nem seus debates.

Olhai por vós;

Em contraponto à “postura séria” do Anjo, aparece a sedutora e tentadora figura do Diabo, apresentando, como seu primeiro argumento para desvirtuar a alma, possibilidades de uma vida mais folgada e menos cansativa, revelando a condição humana como licença para errar e gozar os prazeres da carne e os materiais:

DIABO Tão depressa, ó delicada,

alva pomba, pera onde isso?

Quem vos engana,

e vos leva tão cansada

por estrada,

que somente não sentis

se sois humana?

Não cureis de vos matar

que ainda estais em idade

de crescer

Tempo há i pera folgar

e caminhar

Vivei à vossa vontade

e havei prazer.

Assim, Gil Vicente transfere para a boca do Diabo tudo o que quer criticar, tudo o que é prejudicial aos objetivos expansionistas, do mesmo modo como colocou na boca do Anjo o que era interessante à Expansão: uma população desprendida tanto dos deleites carnais como da própria vida terrena e, portanto, disposta a morrer pelo rei, por Portugal e pela Fé.

O Anjo tenta manter a Alma em um caminho retilíneo, que simboliza a correção, de forma que o papel do Anjo, mais uma vez, remete ao papel que se atribui à Igreja na terra: o de resgate, busca e aconselhamento das almas. Enquanto isso, o Diabo tenta desviar a Alma ou, no mínimo, retardá-la no seu percurso, o que sugere o desvirtuamento e o descompasso, desaconselhados.

A insistência do Diabo e a relutância da Alma apontam para a necessidade de perseverança e de persistência das almas rumo ao “BEM”, já que o “MAL” nunca desiste:

ALMA Não me detenhais aqui,

leixai-me ir que em al me fundo.

DIABO Oh! Descansai neste mundo

que todos fazem assi:

Não são em balde os haveres.

não são em balde os deleites,

e fortunas;

não são debalde os prazeres

e comeres:

tudo são puros afeites

das criaturas:

Na segunda investida tentadora sobre a Alma, o Diabo critica o desperdício da vida em penitências, pobreza, humildade, abstinência, como fez Cristo, “perdendo oportunidades únicas de deleite”. Enquanto argumenta, ainda, com sua “sem cerimônia”, o Diabo vai envolvendo, apoderando-se da Alma, vestindo-a:

DIABO Que vaidades e que extremos

tão supremos!

Pera que é essa pressa tanta?

tende vida.

Is muito desautorizada,

descalça, pobre, perdida,

de remate:

não levais de vosso nada.

Amargurada,

assi passais esta vida

em disparate.

Vesti ora este brial;

metei o braço por aqui.

(...)

Agora estais vós fermosa

como a rosa;

tudo vos mui bem está.

Descansai.

A rica e sensual vestimenta, que o Diabo vai convencendo a Alma a adquirir, pode simbolizar a ganância, a vaidade, o apego terreal, a licenciosidade sexual, entre outros pontos, combatidos por serem desinteressantes aos ideais expansionistas.

A concepção maniqueísta, corrente na época e defendida na obra de Gil Vicente, não deixa alternativas intermediárias aos doutrinandos, devem seguir rigorosa e estreitamente os ideais e valores do “BEM, do BOM e do BELO”, qualquer titubeio é condenado e deve ser severa e implacavelmente combatido e castigado.

A sedução diabólica, em contraponto à seriedade angelical, remete ao redobrado cuidado necessário para não se deixar enfeitiçar pelo “MAL”, que é realmente afável e encantador. Além disso, a liberdade e a autoridade com que o Diabo vai vestindo a Alma (e se apoderando dela), em contraponto ao oferecimento da mão pelo Anjo e a tentativa mais respeitosa e carinhosa de orientar a Alma a retomar o seu caminho, mostram a forma como o “Mal” se impõe aos seres humanos, enquanto o “Bem” apenas convida e adverte, cabendo a cada um não se deixar cegar e arrebatar pela tentação:

ANJO Oh! andai; quem vos detém?

Como vindes pera a Glória

devagar!

Ó meu Deus! Ó sumo bem!

Já ninguém

não se preza da vitória

em se salvar!

Já cansais, alma preciosa?

Tão asinha desmaiais?

Sede esforçada!

Oh! Como viríeis trigosa

e desejosa,

se vísseis quanto ganhais

nesta jornada!

Caminhemos, caminhemos.

Esforçai ora, Alma santa,

esclarecida!

(...)

Andai! dai-me cá essa mão!

ALMA Andai vós, que eu irei,

quanto puder.

O posicionamento da Alma, então, já tendendo a favor do Diabo, defendendo-lhe os argumentos e fazendo “corpo mole” ao Anjo, demonstram como foi fácil ao Diabo vencer essa alma, que resistiu muito pouco.

Na terceira investida tentadora sobre a Alma, o Diabo se apodera do discurso bíblico para convencer esta de que, como para tudo há seu tempo (nascer, crescer, morrer), há também o tempo para folgar (preguiça, futilidade e desfrute):

DIABO Todas as cousas com razão

têm sazão

Senhora, eu vos direi

meu parecer:

Há i tempo de folgar

e idade de crecer;

e outra idade

de mandar e triunfar

e apanhar

e adquirir prosperidade

a que puder.

Ainda é cedo pera a morte;

tempo há-de arrepender

e ir ao Céu.

Ponde-vos à for da corte;

desta sorte

viva vosso parecer

que tal naceu.

O ouro pera que é,

e as pedras preciosas,

e brocados?

(...)

ALMA Oh! Como estou preciosa,

tão dina pera servir

E santa pera adorar!

A fala da Alma, já totalmente “catequizada pelo Diabo”, reflete uma satisfação com o engano, satisfação esta proporcionada pela licenciosidade respaldada na inversão da passagem bíblica. Ao mesmo tempo, a Alma associa a futilidade (preciosa) e a aparência exterior com a dignidade e a santidade, ao invés de associar estas últimas (dignidade e a santidade) aos dons interiores, como seria de se esperar segundo as concepções católicas.

A perseverança e a convicção do Anjo, para resgatar a alma desvirtuada – mostrando-lhe a transitoriedade dos deleites materiais e carnais, a perenidade do sofrimento infernal, a graça que se obtém na Igreja e o quão quaisquer (ou todos) sacrifícios são insignificantes ante a ventura da vida eterna –, opõem-se à facilidade (falta de perseverança) com que a Alma se deixou desvirtuar e à fragilidade de suas convicções religiosas, sempre em dúvida, maleável, dividida:

ANJO Ó Alma despiedosa

perfiosa!

Quem vos devesse fugir

mais que guardar!

Pondes terra sobre terra,

que esses ouros terra são.

(...)

Tudo isso se descarrega

ao porto da sepultura.

Alma santa, quem vos cega,

vos carrega

dessa vã desaventura?

ALMA Isto não me pesa nada,

mas a fraca natureza

me embaraça.

Já não posso dar passada

de cansada:

tanta é minha fraqueza,

e tão sem graça!

Senhor, ide-vos embora,

que remédio em mim não sento,

já estou tal...

ANJO Sequer dai dous passos ora,

até onde mora

a que tem o mantimento

celestial.

(...)

ALMA É longe?

ANJO Aqui mui perto,

Esforçai, não desmaieis!

A quarta investida tentadora do Diabo sobre a Alma consiste em recomendar a esta que se permita ao desfrute e lute por bens materiais até a velhice, quando então, mais próxima da morte, terá tempo de obter perdão antes de morrer e ainda terá aproveitado a vida terrena:

DIABO Esperai, onde vos isso?

Essa pressa tão sobeja

é já pequice.

Como! Vós, que presumis,

consentis

continuardes a igreja,

sem velhice?

Dai-vos, dai-vos a prazer

que muitas horas há nos anos

que lá vêm.

Na hora que a morte vier

como se quer

se perdoam quantos danos

a alma tem.

Olhai por vossa fazenda

tendes umas escrituras

de uns casais,

de que perdeis grande renda.

É contenda,

que leixaram às escuras

vossos pais;

é demanda mui ligeira,

litígios que são vencidos

em um riso.

Citai as partes terça-feira,

de maneira

como não fiquem perdidos,

e havei siso.

Finalmente, a Alma reage negativamente aos apelos tentadores do Diabo, resistindo e retornando para o “caminho da sua salvação”:

ALMA Cal'-te por amor de Deus!

leixa-me, não me persigas!

Bem abasta

estorvares os heréus

dos altos céus,

que a vida em tuas brigas

se me gasta.

Leixa-me remediar

o que tu, cruel, danaste

sem vergonha,

que não me posso abalar,

nem chegar

ao lugar onde gaste

esta peçonha.

Na Igreja, a Alma alcança um refúgio, manifesta seu arrependimento, busca redenção dos seus pecados e obtém a salvação, através da confissão, penitência, da “sagrada iguaria” (hóstia) e do perdão de Deus concedido pela Igreja:

ANJO Vedes aqui a pousada

verdadeira e mui segura

a quem quer vida.

IGREJA Oh! Como vindes cansada

e carregada!

ALMA Venho por minha ventura,

amortecida,

IGREJA Quem sois? Pera onde andais?

ALMA Não sei pera onde vou;

sou selvagem,

sou uma alma que pecou

culpas mortais

contra o Deus que me criou

à Sua imagem.

(...)

Conheço-me por culpada,

e digo diante vós

minha culpa.

Senhora, quero pousada,

dai passada,

pois que padeceu por nós

quem nos desculpa.

Mandai-me ora agasalhar

capa dos desamparados,

Igreja Madre.

IGREJA Vinde-vos aqui assentar

mui devagar

que os manjares são guisados

por Deus Padre.

(...)

Pois que Deus a trouxe aqui,

não pereça.

Do lado de fora, os Diabos lamentam a perda de uma Alma praticamente conquistada e pensam em como poderiam recuperá-la quando esta retornasse ao seu caminho:

2º DIABO Como andas dasassossegado!

1º DIABO Arço em fogo de pesar

2º DIABO Que houveste?

2º DIABO Ando tão desatinado,

de enganado,

que não posso repousar

que me preste.

Tinha uma alma enganada,

já quase pera infernal,

mui acesa.

(...)

Mas faço conta que perdi,

outro dia ganharei,

e ganharemos

1º DIABO Não digo eu, irmão, assi:

mas a esta tornarei,

e veremos.

Torná-la-ei a afagar

despois que ela sair fora

da Igreja

e começar de caminhar;

hei-de apalpar

se vencerão ainda agora

esta peleja.

Mas a Alma invoca a ajuda do Anjo, para que possa resistir às tentações, lembrando do sofrimento de Cristo pela redenção dos homens:

Entra a Alma, com o Anjo.

ALMA Vós não me desempareis,

Senhor meu Anjo Custódio!

Ó incréus

imigos, que me quereis,

que já sou fora do ódio

de meu Deus?

Leixai-me já, tentadores,

neste convite prezado

do Senhor

guisado aos pecadores

com as dores

de Cristo crucificado,

redentor.

A sinceridade do arrependimento, a convicção no pedido de proteção e a oração parecem sensibilizar Santo Agostinho, que vem aconselhar a Alma, reiterando os dizeres do Anjo. A pedido da Igreja, o santo deixa uma oração para a bênção, consolação e salvação da Alma, que remete para toda a saga de Maria mãe de Cristo. A prece parece insinuar à Alma (e aos expectadores) que se mire no exemplo de Nossa Senhora:

AGOSTINHO Vós, senhora convidada,

nesta ceia soberana

celestial,

haveis mister ser apartada

e transportada

de toda a cousa mundana,

terreal.

Cerrai os olhos corporais,

deitai ferros aos danados

apetitos,

caminheiros infernais;

pois buscais

os caminhos bem guiados

dos contritos.

IGREJA Benzei a mesa vós, senhor

e, pera consolação

da convidada,

seja a oração de dor

sobre o tenor

da gloriosa Paixão

consagrada.

E vós, Alma, rezareis,

contemplando as vivas dores

da Senhora;

Vós outros respondereis,

pois que fostes rogadores

até agora.

Oração pera Santo Agostinho.

Alto Deus Maravilhoso,

que o mundo visitaste

em carne humana,

neste vale temeroso

e lacrimoso.

(...)

per todas partes chagado,

e mui sangrado,

pela nossa infirmidade

e vil fraqueza!

(...)

E Tua Filha, Madre, Esposa,

horta nobre, frol dos céus,

Virgem Maria,

mansa pomba gloriosa;

oh quão chorosa

quando o seu Deus padecia!

Todos os fatos que se seguem à chegada da Alma à Igreja enaltecem e se referem a rituais cristãos, como a missa, a consagração, a confissão, a comunhão, a penitência, a oração, etc. Inclusive, todo este fragmento final, desde a chegada à Igreja até o fim da peça, parece fazer parte de um ritual de purificação da Alma e de preparação desta para ser digna do reino dos céus.

Quatro é o número dos santos católicos, que aparecem desde o início da peça, sentados em uma mesa, companheiros da Santa Madre Igreja. Quatro também é o número de tentações que o Diabo impõe à Alma, sendo que esta cede a apenas três, número também de manjares necessários para que a alma se purifique. Não é à toa que os números quatro e três aparecem ligados aos mistérios divinos, pois quatro é símbolo de perfeição, completude e três lembra a unidade, através da trindade cristã: Pai, Filho e Espírito Santo. Desta maneira, a santidade da Igreja é completa pelo número quatro de santos reunidos consigo, enquanto a perda da alma não é completa por esta não ter cedido à quarta tentação, enquanto a tríade redentora de manjares restitui a unidade perdida (três pecados) da alma, anulando seus três pecados:

Esta toalha, em que aqui se fala, é o Verónica, a qual Santo Agostinho tira d'antre os bacios, e amostra à Alma; e a Madre Igreja, com os Doutores, lhe fazem adoração de joelhos, cantando: «Salve, Sancta Facies».

E, acabando, diz a Madre Igreja:

IGREJA Venha a primeira iguaria.

JERÓNIMO Esta iguaria primeira

foi, Senhora,

guisada sem alegria

em triste dia,

a crueldade cozinheira

e matadora.

Gostá-la-eis com salsa e sal

de choros de muita dor;

porque os costados

do Messias divinal,

santo sem mal,

foram, polo vosso amor

açoutados.

Esta iguaria em que aqui se fala são os Açoutes; e em este passo os tiram dos bacios, e os presentam à Alma, e todos de joelhos adoram, cantando: «Ave, flagellum»; e despois diz:

(...)

IGREJA Venha ess'outra iguaria.

JERÓNIMO A quarta iguaria é tal,

tão esmerada,

de tão infinda valia

e contia,

que na mente divinal

foi guisada,

por mistério preparada

no sacrário virginal.

mui coberta,

da divindade cercada

e consagrada,

despois ao Padre Eternal

dada em oferta.

Apresenta S. Jerónimo à Alma um Crucifixo, que tira d'antre os pratos; e os Doutores o adoram, cantando «Domine Jesu Christe». E, acabando, diz:

ALMA Com que forças, com que spírito,

te darei, triste, louvores,

que sou nada,

vendo-Te, Deus Infinito,

tão aflito,

padecendo Tu as dores,

e eu culpada?

Como estás tão quebrantado,

Filho de Deos imortal!

Quem Te matou?

Senhor, per cujo mandado

és justiçado,

sendo Deus universal,

que nos criou?

AGOSTINHO A fruita deste jantar

que neste altar vos foi dado

com amor

iremos todos buscar

ao pomar

adonde está sepultado

o Redentor.

E todos com a Alma, cantando «Te Deum laudamus»; foram adorar o moimento.

LAUS DEO

Assim termina o Auto da Alma, funcionando como um alerta às almas para que vivam na fé e sigam os conselhos e as doutrinas católicas, únicos responsáveis pela salvação da “dividida e negligente Alma”. Conseqüentemente, o auto funciona como uma preparação da força de trabalho que operará na expansão marítima portuguesa, já que enumera uma série de comportamentos desaconselháveis, como os comportamentos dos Diabos, tentando tirar as Almas do caminho do Bem; e o comportamento da Alma, enquanto se deixa influenciar pelos maus conselhos do Diabo.

Conclusão

É muito interessante observar não apenas a versatilidade e a extrema criatividade de Gil Vicente – que possibilitaram uma variedade estupenda tanto na quantidade de autos produzidos, como em recursos e inovações teatrais e literárias –, mas também a freqüência com que Gil Vicente inclui a figura popular em suas obras, contrastando com a produção poética medieval palaciana, que normalmente reflete a vida dos nobres, dentro dos castelos.

O dramaturgo valoriza a presença popular em todos os momentos portugueses. E, apesar de difundir uma ideologia favorável aos interesses de uma pequena elite e de desenvolver um trabalho doutrinário junto às massas, deixa transparecer aspectos críticos relacionados à realidade injusta da exploração e do jogo de interesses, que caminharam ao lado da empreitada marítima. Isso sem falar no já tão comentado painel de tipos, que tão diversificadamente permite conhecer muito a respeito da sociedade de então, dos seus costumes, da sua cultura e das suas escalas hierárquicas.

Assim, Gil Vicente traça e “dita” os perfis portugueses exemplares e os execráveis, os comportamentos imitáveis e os comportamentos condenáveis, preparando o povo para servir de mão-de-obra à bem sucedida Expansão portuguesa, que colocará Portugal no patamar de maior potência mundial durante um pequeno período de tempo e nostálgico para o resto dos tempos. Desta forma, o dramaturgo influenciará toda a literatura vindoura de um povo, do seu povo, que ainda carrega muitos de seus traços (formais, temáticos e ideológicos) até a contemporaneidade, meio milênio depois.

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