O ESPAÇO REVISITADO

Edina Regina P. Panichi (UEL)

Um grande montante de textos descritivos do memorialista Pedro Nava era baseado em desenhos elaborados pelo autor. O desenho recupera a imagem e a escritura registra a soma de imagem e grafia, numa condensação de várias linguagens na construção do esboço textual. É um recurso espacial com vistas à descrição pormenorizada dos lugares da memória, da recomposição de um passado que se desenha no presente. Trata-se de uma atitude de recuperação: trazer de volta um conjunto de imagens significa produzir uma conjugação entre linguagem e pensamento. Um desenho tem, assim, valor de similaridade, servindo de apoio ao registro de detalhes que tenderiam a dissipar-se.

Uma vez que o pensamento só ocorre por meio de signos, o conceito de tradução intersemiótica exerce, aqui, um papel fundamental ao lado da idéia de tradução como (re)criação. Dentre seus vários sentidos, tradução intersemiótica significa transmutação de formas. O que se está chamando de formas são os registros de idéias ou percepções que se deseja expressar. O que ocorre é que deve transcorrer um certo tempo entre obter uma idéia, registrá-la e, desse registro, produzir um texto escrito. O intervalo entre essas etapas deve necessariamente ser preenchido pela construção de formas. A passagem de uma para outra é uma transmutação. A um desenho simples, representando um local que se quer descrever num outro momento, podem-se adicionar palavras escritas, formando um todo de sentido e uma imagem mais precisa.

Formas aparecem de modo contínuo. A diferença está na habilidade de registrá-las exatamente no momento em que aparecem em movimento, em fluxo contínuo, muitas vezes em ritmo veloz e involuntário e, de outras, numa busca pelo mapeamento que se aproxime o mais possível da realidade. Materiais de natureza diversa podem realizar o papel de servir de suporte para a transmutação de formas que vão sendo sucessivamente transformadas e oferecendo traduções de pensamento até o ponto em que se passa a dispor de frases escritas. Assim, segundo Souza (2004: 93), o desenho para Pedro Nava, "após a sua serventia, se desdobra em imagem virtual e simbólica, ao receber sua versão verbal". Em sua intenção de reconstituir o Café e Confeitaria Estrela, de Belo Horizonte , local onde se reuniam os amigos nos anos 1920 – o Grupo do Estrela - o autor sentiu a necessidade de mapear o local para descrevê-lo, pois já se haviam passado mais de 50 anos, uma vez que o volume Beira-Mar, onde está inserida a passagem, foi escrito entre os anos de 1976 e 1978. Se por um lado, algo permanecia vivo na memória, por outro, havia elementos que demandavam recuperação e resgate. A planta é esboçada em minúcias e, por sua característica icônica, supre essa carência.

A concretização do projeto poético de Pedro Nava está diretamente ligada ao domínio do autor no terreno das artes plásticas. É bastante conhecida a sua capacidade para o desenho, o que lhe permite transpor essa experiência para sua escrita, num processo de reelaboração da realidade. Percebe-se, no autor, uma relação visual com o mundo. Ostrower (1999: 39) observa: "(...) para poder ser criativa, a imaginação necessita identificar-se com uma materialidade. Criará em afinidade e empatia com ela, na linguagem específica de cada fazer." Trata-se de entender conteúdos mentais e de como se processa o olhar para o mundo.

O exercício da memória guarda, simultaneamente, imagem e letra e, como observa Souza (2004: 93): "(...) separá-los para melhor compreendê-los seria trair o processo de Nava em direção à obra."

A planta do Café e Confeitaria Estrela foi desenhada e utilizada pelo autor como recurso de memória, ou seja, como recurso auxiliar na reprodução do ambiente. A descrição coincide plenamente com o esboço, complementado pela legenda, como se pode perceber na passagem contida nas páginas 99 e 101 do volume Beira-Mar/Memórias 4:

O salão do Estrela era um prodígio de decoração belle-époque. Mal comparando, pelo luxo das madeiras entalhadas e pelos espelhos - aquilo era a Confeitaria Colombo de Belo Horizonte. Havia cinco portas de frente. Serviam só as três do meio porque as dos extremos tinham sido viradas em vitrines onde se exibiam bebidas caras, queijos estrangeiros, latarias.

 

Esboço como suporte para a descrição do Café e Confeitaria Estrela

Todas as descrições desta parte estão localizadas nas ilustrações de 1 a 5. A construção da passagem evoca o requinte que tomava conta do ambiente construído nos moldes europeus: decoração belle-époque; comparação com a Confeitaria Colombo, o mais refinado exemplo carioca de estabelecimentos congêneres construídos no Brasil. A seqüência posterior é ilustrada pelo número 6:

Quem entrava dava logo a vista num par de estantes, uma de cada lado do café, com prateleiras circulares que diminuíam de tamanho na medida que se sobrepunham. Pareciam fruteiras antigas, altas de metro e meio. Eram torneadas na mesma madeira preciosa dos outros ornatos. Também serviam para a exposição das salsicharias, queijos e vitualhas.

O conteúdo, a seguir, refere-se às ilustrações 9, 12, 13, 13 bis 1 e 2 e 14:

Na parede do fundo abriam-se duas portas de entrada dos detrás do café: copa, cozinha, depósitos.

Com referência à ilustração 10:

Entre estas, de passagem, as dos armários em cujas prateleiras ficavam os espíritos. Via-se através dos vidros renques das garrafas empalhadas do Chianti e do Nebiolo Gran Espumante, da vinhaça portuguesa, dos vinhos franceses e deitados, os botelhaços da Veuve Clicquot com seu rótulo branco e o estanho dourado das coberturas das rolhas e gargalos.

A referência a espíritos em lugar de bebidas destiladas confere às garrafas um tom solene, uma vez que eram produtos importados e pouco acessíveis aos bolsos comuns.

Agora o conteúdo refere-se à ilustração 11:

Em cima destas estantes via-se um largo painel de madeira preciosamente entalhado. No centro, relógio redondo do tamanho duma lua. Aos lados deste, frente a frente, um par de grifos ou dragões, cada um com duas patas de galinha cheias de garras dilacerantes, rabos e línguas armados de ponta como as das setas. Corpo de penas e escamas. Bico, olhos ferozes, crista, asas membranosas, unguladas no extremo de cada dobra. Dos grifos ou dragões ao teto e às paredes laterais - florões heráldicos envolviam o par de monstros nos seus anéis cheios de graça e nobreza ou de curvas como as que se estilizam nas plumas dos paquifes dos brasões. Esse painel de madeira era reluzente da limpeza e do verniz avermelhado que o lustrava.

A descrição continua, embasada na ilustração 8:

Do mesmo material e sempre ao fundo era o balcão com a máquina registradora e embaixo mais armários cheios das delicadezas de confeitaria, das empadinhas, dos pastéis, das coxinhas de galinha, dos sonhos, das brevidades, dos camarões recheados, das famosas bombas de creme ou de chocolate que eram a tradução vernácula dos éclairs que são a honra dos doceiros de França.

Também aqui a influência francesa se faz presente nas iguarias servidas pelo Estrela, corroborando a qualidade de seus serviços.

A ilustração 18 é assim desenvolvida:

As paredes eram cobertas de espelhos onde se escrevia com tinta branca, ou rósea, ou azul - as especialidades do dia. Sorvete de tamarindo. De abacate. De manga. De pequi, umbu, pitomba, gabiroba, bacuparipanã pequi tucum sapoti pinha buriti araçá araticum catulé licuri maracujá jatobá araçá goiaba bacaxi amora caju marmelo pêssego. Que sei mais? E refrescos de quase todas essas frutas e cocos tão bons e tão finos como os sucos de hoje feitos nos liquidificadores. Naquele tempo eram afinados a mão.

As frutas de que eram feitos os sorvetes são enumeradas numa seqüência sem pontuação, como se o autor quisesse se aproximar da linguagem oral. A fluência e a graça do excerto chamam a atenção, pois ela toma parte em um contexto de ternas evocações. As frutas, comuns naquela época, já não mais o eram quando da elaboração da passagem.

A ilustração 7 dá conta do seguinte texto:

Espalhadas na loja, suas vinte, vinte poucas mesas de "cândido mármore". Ali entrávamos sempre, depois do Alves - uns para o cafezinho, outros para a cerveja acompanhada de salgados; esses para os refrescos, os sorvetes, ou as médias de café com leite com torradas, brioches, sonhos, pão-de-queijo, bomba de creme, bomba de chocolate, brevidade (...) As mesas brancas me tentavam. Eu sacava do lápis e ia enchendo o mármore de meus esboços (...) Figuras de bailarinas escalpeladas e mostrando musculatura a nu. A cara de feijão de Verlaine, parecida com a do Dr. Modesto Guimarães.

As mesas brancas, "de cândido mármore", onde eram servidas as tradicionais famílias mineiras, funcionam como um gatilho para a reconstrução de acontecimentos da época, acontecimentos estes que ficaram marcados para sempre na memória do autor.

Acompanhando a descrição, observemos as legendas com as codificações 14, 15, 16 e 17:

A entrada do prédio era do lado, portãozinho de ferro que dava numa passagem. Era nessa que se abriam duas portas. A mais ao fundo, para as escadas que levavam os moradores ao primeiro e segundo andar. A mais da frente dava para uma sala discretíssima, com quatro mesas, um espelho e a oleografia representando Otelo e Desdêmona ao instante em que ele vai sacrificá-la. O cômodo comunicava para o serviço por portinha de cortina dando na copa. Era nele que vinham tomar sua cervejinha e sua cachacinha os homens de respeito de Belo Horizonte. Até Secretários, até Desembargadores traçavam ali o seu porrinho, atendidos na bebida pelo Simeão em pessoa.

O texto resultante teve início na planta construída como suporte. É o processo de configuração e definição que precede o contato com o código no qual se irá operar. O procedimento de armazenar informações por meio de desenhos e anotações comprova a eficácia do registro de imagens como recurso de memória e sobretudo como mapeamento prévio a um movimento de escrita. Quando se acompanha a descrição, constata-se que o risco de engano fora eliminado com o desenho; nenhum detalhe se perdeu, o que se comprova pela legenda incluída como recurso auxiliar. Descrever em 1978 um espaço existente na década de vinte, estabelece a necessidade da criação de recursos de suporte para o encontro de elementos distintos.

A tradução tem como princípio retirar de uma fonte antecedente (não necessariamente elementos de uma outra língua) significados implícitos que podem funcionar em complementação descobrindo, assim, novas realidades. A tradução vai além da dimensão puramente lingüística, ou seja, de uma fonte para outra. "Traduzir é, nessa medida, repensar a configuração de escolhas do original, transmutando-o numa escolha seletiva e sintética". (Plaza, 2001: 40)

Na recodificação, à fonte antecedente associam-se formas e não idéias, uma vez que uma idéia somente será apreendida a partir do momento em que for representada por um determinado código, ou seja, a partir de sua materialização. Pedro Nava foi um homem fascinado pelos lugares onde viveu ou que freqüentou. As representações do espaço são para ele decisivas, como atesta Aguiar (1998: 44) ao tratar da relevância dos espaços da memória na obra do autor: "É como se os ambientes fossem extensão do narrador, de modo que em grande parte não podem ser vistos sem as marcas do homem que os experimentou". Nos arquivos de Pedro Nava, ao lado do grande número de fichas, documentos, recortes e rascunhos de sua obra, também encontramos inúmeros mapas, plantas de casas e os mais variados croquis. Esse recurso espacial e geográfico configura o universo memorialístico de forma sistematizada, com vistas à descrição pormenorizada dos ambientes escolhidos. Nesse sentido, o Café e Confeitaria Estrela, detalhado na planta analisada, desvincula-se de um registro frio para transformar-se num relato minucioso, motivado pelo sentimento de prazer que a reconstituição desperta. As mãos do narrador vão, assim, resgatando minúcias e completando as antigas impressões depositadas na memória, através do espaço revisitado posto a serviço das recordações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Joaquim Alves de. Espaços da memória: um estudo sobre Pedro Nava. São Paulo: Fapesp, 1998.

NAVA, Pedro. Beira-Mar: memórias 4. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva; Brasília: CNPq, 2001.

SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava: o risco da memória. Juiz de Fora (MG): FUNALFA, 2004.

 

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