DOIS MANIFESTOS POÉTICOS DA IDADE MÉDIA
UMA
TENTATIVA DE ESTUDO
E DE ATUALIZAÇÃO
TEXTUAIS

Delia Cambeiro (UERJ)
Maria Franca Zuccarello (UERJ)

 

PROPOSIÇÃO DE TRABALHO

A concepção viciosa sobre Idade Média e o desconhecimento dos conteúdos mentais do imaginário cultural da época mostraram uma total incoerência e nenhum respaldo científico. A recuperação do valor histórico da Idade Média, no século XX, deu-se especialmente com os estudos pioneiros da Ecole des Annales, sustentados por nomes da importância de Jacques Le Goff, Georges Duby e muitos outros. A revisão medieval coloca esse período histórico-cultural como raízes do Ocidente e, sem dúvida, a poesia de amor é um dos frutos que confirmam a riqueza criativa medieval.

Com base em tal importância cultural e riqueza literária, procuro, no presente trabalho, apresentar um breve estudo a respeito do que se pode chamar dois manifestos poéticos medievais: “Al cor gentil rempaira sempre amor”, de Guido Guinizzelle (1220?-1276) e “Donna me prega”, de Guido Cavalcanti (1250?-1300).

Para tanto, faço inicialmente uma leitura crítica de conteúdo histórico-literária, detendo-me na canção programática “Donna me prega” de Cavalcanti.

na segunda parte, a Profa. Maria Franca Zuccarello apresenta, a partir da atualização lingüística do texto de Cavalcanti, suas observações pertinentes à evolução da língua italiana.

 

O MITO DO AMOR NA POESIA MEDIEVAL

A lírica da Baixa Idade Média (séculos XII-XV) tem em Guilherme IX (1071-1127), Duque da Aquitânia e Conde de Poitier, seu primeiro representante. Com esse nobre, desponta o sentido da alegria no amor, da concepção do amor cortêsou fin’ amors – da laudação à mulher. O lirismo dos “troubadours” floresce nas cortes meridionais da França, na Provença, representado, além de Guilherme IX, por Marcabru, Jaufre Rudel, Bernard de Ventadorn, Peire d’Alvernha, Arnaut Daniel, dentre tantos outros. Convém assinalar, ter sido o termoamor cortêscunhado no século XIX, em 1883, a partir de estudos de Gaston Paris. A poesia cortês de fin’amors, como afirma Maria do Amparo Maleval, “preconizava, dentre os seus aspectos fundamentais, o cultivo da mesura e da vassalagem amorosa, ligada à idéia do serviço pessoal característico do Feudalismo”. (MALEVAL, 1995: 38).

Para S. Spina, “o maior acontecimento do século é a descoberta do amor romântico, (do amor eternamente insatisfeito, fonte de toda a poesia européia posterior)” (SPINA, 1983: 67). A lírica cortês se propaga pela Europa, notadamente pela Alemanha, Itália, Galiza e Portugal.

Não se pode menosprezar o contexto social e cultural em que se desenvolveu o chamado segundo Renascimento do século XII - sendo o Carolíngeo considerado o primeirodenominação devida ao desenvolvimento econômico e urbano, incentivador da ressurreição das cidades e do progresso. Esse é o instante das Cruzadas, da criação de ordens religiosas e de famosas escolas episcopais, além de colocar em cena os primeiros intelectuais: os clérigos, “aqueles que têm por ofício pensar e ensinar o seu pensamento; (...) o descendente de uma estirpe original no Ocidente medieval”, como assinala Jacques Le Goff. Não nos mosteiros, mas, também nos castelos e cortes feudais, cresce o estudo da poesia e da narrativa em língua vulgar, fora do primado do latim.

Em semelhante atmosfera, os hábitos foram burilados. A prática da poesia provocou melhores formas de refinamento e de convivência sociais, dentro daquele mundo aristocrático.

Na tentativa de captar o sentido das mentalidades na Idade Média, o problema da condição da mulher sempre acende, entre medievalistas e outros pesquisadores empenhados na representação feminina, várias questões relativas ao comportamento da mulher e do homem, no que tange a relação amorosa. Salienta-se o fato de parecer antagônico o fato de a Provença, incrustada no Sul da França “individualista, pautado pelo direito romano justiniano propugnador da liberdade individual, e não pelo feudal, sustentáculo da rígida cadeia hierárquica que subordinou o vassalo ao seu senhor”, (MALEVAL, 1995: 38-39) ter sido o berço poético desse estado de submissão e de sujeição à mulher. A citada medievalista sustenta que, em oposição ao Norte da França “ocupado com louvar os valores bélicos do heróis nas gestas, em que o papel feminino era assumidamente acessório, (...) a mulher [na lírica occitânica] se torna nos cantares trovadorescos a suserana que, (...) gozando de certa independência, (...) orienta a vassalagem e a mesura do trovador/amador”. (Idem).

Pensar o amor cortês é lembrar ainda a importância de tratados sobre o amor, que enriqueciam a tradição cultural da época. Dentre eles, citam-se apenas o de Ovídio; o de Platão, constante do Banquete; finalmente os de Ibn Hazm e de André, o Capelão, surgidos na Idade Média.

 

A TRANSFORMAÇÃO DA LÍRICA AMOROSA ITALIANA
DA “
ESCOLA SICILIANA” AO “DOLCE STIL NOVO

No parecer crítico de S.Spina, “Não fosse o culto da mulher, no século XII, entre os poetas meridionais da França – que codificaram na sua poesia o novo formalismo amoroso do Ocidentenão teríamos a delicada poesia dos estilnovistas dos fins do século XIII, por conseguinte La vita nova de Dante e o Cancioneiro de Petrarca, baluarte da lírica do século XIV”. (SPINA, 1998, 37-38).

Sem dúvida, a poesia do XIII, marca o primado italiano, na expressão do sentimento amoroso. Durante a primeira metade desse século, nascia uma literatura mãe de uma das mais famosas formas fixas, pois “a maioria dos estudiosos inclina-se a considerar Giacomo da Lentini (1180-1246) inventor do soneto (...)”. (MOISÉS, 1985: 480-481). Precisamente na Sicília, os poetas do amor, nas linhas do trobar clus, reuniam-se em torno ao último e, certamente, o maior imperador sueco, Frederico II, morto em 1250. O ambiente artístico e cultural atraía filósofos, juristas e todo tipo de estudiosos que contribuíram para que se formasse um grupo de intelectuais dotados de propensão à poesia.

Sem dúvida, a tradição provençal está presente nessas obras, com imagens dignificadas da mulher, em estrofes muitas vezes laboriosas e retóricas. Os poetas que a formavam eram homens cultos, dentre eles o próprio imperador Frederico II e seu filho, mas, a maior parte consistia em juristas da Magna Curia, Mesmo que, hoje, aos olhos da crítica, essa lírica de servidão, vassalagem e louvor cortês à figura feminina se mostre artificiosa, não se pode esquecer ter sido a primeira poética renovadora na Idade Média. É inegável que, no seio das cortes occitânicas, portuguesas, italianas etc., “nesse contexto de convivialidade e proteção [dos senhores medievais], nasce e desabrocha o trobar, hoje considerado, com justa causa, como berço das literaturas atuais”.(ZUCHETTO, G. & GRUBER,J. 1998: 5)[1].

Se a Escola Siciliana reproduzia, sem efetiva e comprovada adaptação cultural, os moldes provençais, em contrapartida, incorporou técnicas e artifícios, que, pouco a pouco, deram notáveis frutos históricos, como o Dolce Stil Novo, assim denominado por Dante Alighieri (1265-1321), na Commedia. A nova poesia encontrou sua continuação, entre os últimos anos do 200 e os primeiros do 300, em Firenze, a partir de criativos instrumentos eternizados em língua “volgare”. bem mais enriquecida e plena de harmonia estética, a língua vulgar propiciou, sem dúvida, maior facilidade de recepção junto aos leitores.

O amor expresso pelo eu lírico stilnovistico é, em sentido geral, de caráter místico. O objeto amoroso vem representado por figura anônima, ou ganha nomes simbólicos referentes às suas virtudes ou aos seus poderes, porém, nenhuma sinalização, nem dado concreto de determinação histórica a seu respeito. À parte, entretanto, a obra de Dante Alighieri Vita Nova, em que Beatriz, em vários capítulos, vem nomeada. Fato aliás de nenhuma relevância, no que diz respeito à arte. A mulher, ou objeto lírico, instiga pela forma como é sugerida: a de um anjo que vem à Terra, para confortar e completar o homem, tão rapidamente possível a fim de retornar ao céu de onde saiu. Por causa desse caráter irreal, talvez, o objeto lírico se mostre alegoricamente no Stil Novo, podendo-se pensar na figura da Filosofia, da Revelação, da Beleza Perfeita.

A expressão do amor também é algo esquivo e indefinido, nada o liga ao arrebatamento físico ou emocional a que se submete o eu lírico em outras épocas da história literária.

 

DOIS MANIFESTOS POÉTICOS

Dos poetas do Stil Novo, que, sem dúvida, deixaram maiores sinais de criatividade na escola são: Dante, junto com seu amigo de juventude, Guido Cavalcanti, morto antes do poeta de Beatriz, além de Guido Guinizzelli.

Embora o nome de Dante atraia em maior medida, a atenção do estudioso ou do simples leitor, por causa de sua obra, Guinizzelli e Cavalcanti terão prioridade neste trabalho, visto que transmitiram como legado dois textos considerados manifestos poéticos de escola., priorizando-se o de Cavalcanti.

É interessante recordar o fato de Dante, no canto XXVI, do Purgatório, alçar, com grande reverência, o nome do poeta Guido Guinizzelli à categoria de “pai”, de precursor da poesia amorosa do novo estilo. Apesar de sua importância, em certas composições desse bolonhês encontram-se ainda idéias, galanterias, lamentos, à maneira dos travadores provençais ou sicilianos, trazidos da poética de seu mestre Guittone d’Arezzo (1230-1294), recursos bastante resistentes ainda ao tempo de Guinizzelli. O medievalista E. R. Curtius diz que Guinizzelli “tornara a elevação da amada a anjo do paraíso em topos da lírica italiana”. (CURTIUS, 1996, p.457). Além disso, na conhecida canção “Al cor gentil rempaira sempre Amore”, o renovamento dado ao tema estabelece o famoso vínculo de equivalência do amor com a nobreza de alma e não com a hereditária. Na canção, considerada doutrinal e programática, estão enleados o feminino e o divino.

Indicada em unanimidade crítica, como a enunciação teórica e poética da nova idéia do amor, “Al cor gentil..” representa o vigor e a força de um poeta que tivesse encontrado uma verdade. Sugere-se que tal encontro da verdade e do vigor criativos levou Guinizzelli a afastar a poesia de conhecidas convenções, a desenvolver a metáfora da luz, ou da luminosidade, na nova corte amorosa, direcionando-a sutilmente para dentro de corações gentis, ou seja, para os nobres de espírito. Nessa canção, a vida amorosa vem trabalhada com tratamento psicológico, porém, a estratégia poética utiliza mais a força do intelecto, do que a do sentimento. Não faltam ainda subjetivas considerações sobre a relação da vida amorosa e espiritual.

Sem dúvida, está sublinhada nesse verdadeiro manifesto poético uma nova dimensão, mais íntima e total do sentimento amoroso, diferente de jogo, idealização cortês, ou conturbada paixão dos sentidos. O plano racional das estrofes de toda a canção fica demonstrado nas comparações, nas semelhanças, nas justaposições dos conceitos; está sustentado também pela força das imagens de intenso vigor poético.

Delineiam esses versos uma experiência superior, exprimem toda a vida do espírito, acessível apenas aos corações gentis, aos sensíveis à gentileza, à nobreza estética e ética. Sem dúvida, “na literatura medieval o topos é muito freqüente, (...) renovado pelo ensinamento de Guido Guinizzelli de que o amor habita em corações nobres” (CURTIUS, 1996, p. 238). Explicado, certamente, “quando o ideal da classe cavaleiresca foi adotado pela burguesia das cidades, sobretudo na Florença do século XII” (idem).

A experiência stilnovística, entretanto, como é possível observar-se, mostra-se veladamente aristocrática e voltada para recriar uma “nova corte” de eleitos, uma espécie de cenáculo de iniciados nas alegrias e sofrimentos dados pelo culto ao Amor e à Arte. Em certas estrofes, estão aventadas idéias de teor teológico, “a ciência do conhecimento dos deuses sustentam as vozes no canto da natureza do Amor e de sua relação com buscas metafísicas. Forma-se entre o mundo divino e o da criação, um perfeito encontro investigativo sobre a natureza humana, os seus sentimentos e Deus. Tal questionamento é movido pelo desejo de o teológico e o poético afirmarem a capacidade de o Amor elevar o espírito de quem ama a uma instância superior, a uma iluminada esfera de superior nobreza. Em “Al cor gentil...” há também um evidente chamamento de inteligências angélicas iluminadas pela luz divina, endereçando a temática, definitivamente, para os confins da Teologia.

O poema “Donna me prega”, de Guido Cavalcanti, também de sutil confissão programática, fundamenta um manifesto poético medieval. Perscrutando-se seus versos, algumas vezes encontra-se intensa alegria, acompanhada, porém, de vaga melancolia. Em outros poemas, Cavalcanti foge à rígida classificação da escola, não apenas por seu dualismo, mas porque afasta criação o mito da mulher-anjo, pintada na tela stilnovística.

Nesse poema-manifesto, entretanto, ele elabora, com grande saber doutrinal, a poética do amor dos sentidos, do qual brotam, ao mesmo tempo, alegria e prazer, dor e tormento, pranto e medo. De tal proposição, nasce o que se pode chamar sua mais conturbada poesia, gravada sob o domínio de dolorosos traços de Amor e Morte, apontando sua intensa veia criativa. De um lado, encontra-se nos versos de Cavalcanti um aprofundamento no sentido doutrinário e poético do que é postulado por Guido Guinizzelli; de outro, seus poemas são testemunho de uma nova feição da tradição cortês.

Todo dualismo de sentimento desaparece quando se pensa reinserir a experiência de Cavalcanti e a de todo o Stil Novo, no âmbito da tradição lírica européia, que vai do provençal até Petrarca, evoluindo em diversas formas poéticas. Aquilo que mais impressiona em suas composições é o sentimento de intimidade, de colóquio, a rarefação da matéria lírica, que serão aperfeiçoados pela primeira voz de solidão existencial a ser expressa com Petrarca. Não se encontram mais, em Cavalcanti, as analogias, as imagens de pureza e luz, próprias à mulher-anjo, tão caras a Guinizzelli.

Afirma-se que sua riqueza se revela ao cantar o eu lírico louvores a sua “donna”, em leves tonalidades, que, às vezes, podem lembrar Guinizzelli, mas que exprimem, sobretudo, dores do mal de amor em conturbados colóquios do espírito, da alma dolente. Talvez em um primeiro movimento de antigos e modernos, Cavalcanti modela motivos da tradição, com graça e tonalidade que lhe são próprios, conseguindo inovar o antigo e torná-lo aceito para a nova sensibilidade dos leitores.

Ao finalizar este artigo, sem esgotar, porém, a importância da unidade estilística de Cavalcanti, cabe afirmar que a poesia, indo da Sicília para o continente, nos últimos anos do XIII, adquiriu roupagem e espírito novos, fez desabrochar o dolce Stil Novo. Verificou-se, ainda, a concepção da donna angelicata, reflexo da beleza de Deus, da mulher-visão ou aparição, como Beatriz, desprovida de valores sensoriais. Acrescente-se, neste breve estudo, que, se em Guinizzelli e Dante transita mística tendência na concepção do objeto amado, em Cavalcanti, entretanto, tem-se agora a idealização laica da mulher.

Sem dúvida, a obra de Guido Cavalcanti é a mais alta expressão lírica antes do primado de Dante.

Em prosseguimento a esse breve estudo, a Profa. Maria Franca Zuccarello apresenta seu trabalho de atualização, em que o italiano do tempo de Cavalcanti é aproximado ao seu estágio atual.

Veja, depois da Bibliografia abaixo, a atualização lingüística do poema-manifesto “DONNA ME PREGA”.

 

BIBLIOGRAFIA

CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e Idade Média latina. Trad. Teodoro Cabral e Paulo Rónai. São Paulo: HUCITEC / EDUSP, 1996.

LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Trad. Margarida Sérvulo Correia. Lisboa: Gradiva, [s/d.].

––––––. La civilisation de l’occident médiéval. Paris: Les Editions Arthaud, 1995.

MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Rastros de Eva no imaginário ibérico. Santiago de Compostela: Laiovento, 1995.

MASSAUD, Moisés. Dicionário de termos literários. 4ª ed. São Paulo: Cultrix, 1985.

SPINA, Segismundo. A cultura literária medieval. 2ª ed. São Paulo: Ateliê, 1997.

ZUCHETTO, Gérard & GRUBER, Jörn. Le livre d’or des troubadours. Anthologie XII-XIV siècle. Paris: Les Éditons de Paris, 1998.

 


 

[1] « Dans ce contexte de convivialité et parage, convivencia e paratge, naît et s’épanouit le trobar aujourd’hui considéré, à juste titre, comme le berceau des littératures actuelles ». 

 

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