ASPECTOS DA ESTILÍSTICA PORTUGUESA

Gustavo Adolfo Pinheiro da Silva (UERJ e UGF)

Neste esforço de síntese, situar os dois posicionamentos clássicos da Estilística. A linha positivista de Bally, que situa a Estilística entre os fatos da língua, e a linha idealista de Vossler-Spitzer– Alonso, que situa Estilística entre os fatos da fala.

A ESTILÍSTICA: POSICIONAMENTOS CLÁSSICOS

Até o século XIX, a Estilística estava inteiramente contida na Retórica. A Estilística em nosso século é obra de dois grandes pensadores:

1. Charles Bally (suíço): "Tratado de Estilística Francesa"

2. Karl Vossler (alemão): "Positivismo e Idealismo na Linguagem" e "A linguagem como criação e evolução".

Bally encontrou em Saussure o seu mestre. A inspiração para sua Estilística. A língua para Saussure é de caráter social, coletiva, enquanto a fala de caráter individual. A língua, objeto da Lingüística, é um sistema de signos. O signo é um conjunto formado de duas partes, ambas psíquicas: uma perceptível, o significante e outra inteligível, o significado. Para Bally: o significado exprime não só o conceito, mas também a afetividade. Bally dividiu a ciência da linguagem em dois ramos:

1. LINGÜÍSTICA: estuda a língua enquanto sistema de signos intelectivos.

2. ESTILÍSTICA: estuda a língua enquanto sistema de signos afetivos".

O objetivo de Bally era constituir uma Estilística da língua e não da fala. Procura investigar os recursos da língua e não do escritor. Como positivista, compreende que o indivíduo ao falar não cria linguagem. Utiliza o código lingüístico que a comunidade lhe impôs. Daí falar-se numa Estilística fônica, sintática, mórfica e vocabular.

Já a Estilística de Karl Vossler – Spitzer – Alonso tem outro horizonte metodológico e ideológico. Ao positivismo de Bally opunha-se o idealismo de Karl Vossler. A Estilística de Vossler denominada genética por Guiraud, é de inspiração Croceana (Benedeto Croce: Estética como ciência da expressão e Lingüística geral, 1902) e não saussureana. Fundamenta-se na intuição. Spitzer vê a língua como enérgeia e não como érgon. Para Croce, "a arte é sempre a expressão de uma intuição", A Estilística da fala não prescinde da Estilística da língua e nela se apóia.

NOVAS CORRENTES PÓS– SAUSSUREANAS

A Estilística funcional vai encontrar em Jakobson sua figura dominante. O circuito lingüístico passa a ser interpretado à luz da teoria da comunicação. A predominância de cada um dos elementos da comunicação geraria seis atitudes estilísticas: emotiva, conativa, referencial, fática,metalingüística e poética. A poesia lírica está centrada no emissor, intimamente ligada à função emotiva. A poesia épica, centrada na terceira pessoa, privilegia a função referencial.

Jakobson não costuma usar a palavra Estilística. Ao invés de estilo, fala em função poética.

Ainda na Estilística funcional, vale citar Roland Barthes: que vê no estilo"uma linguagem autárquica que mergulha na mitologia pessoal e secreta do autor".

A estilística de Riffaterre, dentro de uma visão saussureana de langue, vê o estilo como desvio de uma norma.

No Brasil, temos a obra pioneira do Prof. Mattoso Câmara júnior "Contribuição a Estilística Portuguesa".Para Mattoso, a base sólida da Estilística foi lançada por Bally. Deve-se caracterizar o estilo não pelo contraste individual x coletivo. Mas sim pelo contraste emocional em face do que é intelecto. Para Mattoso, o estilo se caracteriza em regra como desvio da norma lingüística.

Passemos ao exame de alguns aspectos estilísticos da língua portuguesa:

Estilística fônica

Uma das características da linguagem poética, em sua função essencialmente conotativa, consiste numa espécie de esforço no sentido de ultrapassar a arbitrariedade do signo lingüístico, motivando-o esteticamente. A ambigüidade predomina na linguagem poética, respondendo pelo seu caráter conotativo e polivalente, ou seja, por seu caráter de plurissignificação.

Em línguas de acento quantitativo, o ritmo musical se estabelece em função de sílabas longas e sílabas breves, combinadas entre si, formando pés, como em latim. Em Português, língua de ritmo intensivo, não se limita apenas o estudo do ritmo musical ao retomo das sílabas tônicas, após intervalos regulares. Podemos dizer que além da estrutura rítmica assegurada pelo retomo da sílaba tônica, há também o ritmo silábico, determinado pela regularidade do número de sílabas em cada verso. Deve-se analisar o ritmo em função das imagens e através da própria motivação da linguagem poética. A propósito, costuma-se dizer que o verso livre substitui os esquemas rítmicos tradicionais pelo ritmo subjetivo e psicológico, o que não é, ao nosso ver, inteiramente exato, pois vários esquemas tradicionais foram aproveitados pelos modernistas.

Além do ritmo e das rimas, podemos apresentar alguns dos principais casos de motivação sonora: a aliteração, a coliteração, a assonância e a onomatopéia.

Exemplo conhecido de aliteração da consoante linguodental sonora /v/, encontramos em Cruz e Souza. Recurso muito explorado pelos simbolistas:

Vozes veladas, veludosas vozes,

Volúpias de violões, vozes veladas,

Vagam nos velhos vórtices velozes

Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Ou ainda: no romântico Castro Alves:

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança...

Ou ainda nestoutro exemplo do folclore nortista

O pintor que pintou Maria

Também pintou Isabel.

Mas quando foi pintar Josefa

Ai , meu Deus, cadê pincel?

A coliteração é uma seqüência de palavras em que predominam consoantes homorgânicas visando' a obtenção de maior expressividade da frase.

Ocorre-nos um verso de Antero de Quental:

Com grandes golpes bato à porta e brado

A coliteração aqui envolve as homorgânicas /k/-/g/, /p/-/b/, /t/-/d/.

A distribuição das vogais na frase, às vezes, dá origem ao fenômeno de fonética fraseológica denominado assonância, que nada mais é do que uma sucessão das mesmas vogais numa proposição. Veja este exemplo de Drummond:

Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer,

amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Em geral, a onomatopéia é um monorrema, porque se resume numa palavra apenas, através da qual se procura reproduzir determinado ruído. Manuel Bandeira explorou ao máximo esse processo em "Os Sinos". Aqui: paixão, mãe, irmão passam a evocar um dobre de finados. Bonfim e mim passam a símbolos de um som agudo de desespero. Vejamos um fragmento do poema:

Sino de Belém, Sino da Paixão...

Sino da Paixão, pelo meu irmão!

Sino da Paixão,

Sino do Bonfim...

Sino do Bonfim, ai de mim, por mim..

Sino de Belém, que graça ele tem!

Vale lembrar que Joaquim Ribeiro, em sua Estética da língua portuguesa, associa o som nasal à manifestação de tristeza, lamento, lamúria:

Se eu morresse amanhã

Viria ao menos fechar meus olhos

minha triste irmã

Minha mãe de saudades morreria se eu morresse

amanhã.

Estilística mórfica

O campo mais limitado da Estilística em língua portuguesa é, sem dúvida, o morfológico. Podemos, no entanto, compulsar alguns fatos interessantes. Pode-se usar o substantivo singular com idéia de plural:

Dessas rosas muita rosa

terá morrido em botão...

Expressões da língua do cotidiano como "ruim como cobra", "pobre como Jó", que são formas superlativas tiradas de comparações.

Vejamos alguns casos envolvendo o adjetivo: Interessante é o emprego do adjetivo dando idéia superlativa:

1 "Teus olhos negros, negros / como as noites de luar (Castro Alves). A idéia superlativa nos é dada pela repetição do adjetivo: negros, negros

2. Em "A lua está clarinha", clarinha adquire valor superlativo.

3. Em "A branca neve", pela redundância obtém-se um efeito estilístico.

4. Adjetivação impressionista: Assim, em "Longínguo e triste sino", triste adjetiva sino em relação ao ouvinte. O ouvinte é que está triste. A impressão é de tristeza no momento em que o sino tocou.

5. Adjetivação sinestésica: São aquelas provocadas através dos sentidos: "Brancas sonoridades de cascatas", "Sons melosos e soturnos" e ainda “O sabor aromal do teu beijo".

6. A hipálage é uma adjetivação impressionista. O adjetivo determinante modifica o termo que não é o seu determinado lógico:"Diante do lânguido quarto de uma mulher loura". A visão impressionista levou o autor a sentir a languidez impregnada em todo o ambiente.

7. Nome com função adjetiva e adverbial: Em" O vento soprava violento sobre a cidade". Observamos que violento, ao mesmo tempo que se refere a vento, atribuindo­-lhe uma qualidade, refere-se também à ação verbal soprava, introduzindo uma circunstância, sendo nome com função adverbial.

Passemos a alguns casos de emprego estilístico do verbo:

1. O imperfeito propicia à afetividade: É o tempo da linguagem impressionista: "O caminho desprendia um cheiro de lama e estrume".

2. O presente histórico: Consiste em usar o presente para narrar fatos do passado. É um dos recursos estilísticos mais representativos: Então lázaro, ouvindo a voz do Senhor, levanta-se e anda".

3. As formas do gerúndio dando continuidade à ação verbal:

“A vida vai acabando, acabando... o gerúndio prolonga a agonia”.

Onde se verifica com maior freqüência o fato estilístico é no uso do aumentativo e diminutivo:

As idéias de grandeza e pequenez facilmente podem evocar as de anormalidades; outras vezes de simpatia, ternura. Daí que os sufixos aumentativos ou diminutivos sejam freqüentemente pejorativos ou depreciativos: pobretão, sabichão, paspalhão. Mulherzinha conhecida, empregadinha do comércio. Conotação positiva: Garotinha do coração, amigão do peito.

Estilística sintática

No campo da sintaxe, os estudos estilísticos possibilitam inúmeras inovações. Muitas exceções registradas na gramática normativa representam opções que podem revestir-se de real valor estilístico. As palavras se agrupam numa frase numa interdependência natural que determina ralações necessárias e livres. É lícito ao escritor recorrer a certas construções sintáticas para obter maior efeito estilístico.

Dessa forma se explica a posposição do possessivo ao substantivo:

“Filho meu, onde estás? (G. Dias) ”.

"Prazeres, sócios meus, e meus tiranos” (Bocage)

Na coordenação, os termos e orações sucedem-se ligados por conjunção ou simplesmente justapostos. Em ambos os casos há inúmeros recursos de utilização estilística. Graciliano Ramos, em Vidas Secas, por exemplo, emprega a justaposição de orações coordenadas para indicar lentidão, desânimo e desalento. Outros utilizam a coordenação sindética, tendo em vista o valor da frase:

"E zumbia, e voava, e voava, e zumbia" (A mosca azul. M. Assis)

Na narrativa, os processos definem a estrutura da frase portuguesa: a) discurso direto, b) indireto e c) indireto livre.

No discurso direto, o narrador, recorrendo em geral a um verbo dicendi (dizer, afirmar, declarar) reproduz a fala do personagem, o que permite hierarquizá-lo no plano social. No indireto, não se transcreve a fala do personagem. Ao contrário, transmite com suas próprias palavras, em oração subordinada substantiva, a informação do locutor.

Variante do discurso direto e indireto, o indireto livre, também chamado por Mattoso vivido ou representado, é louvável inovação estilística. Nele o escritor aproxima o narrador e o personagem, dispensa o verbo discendi e o conectivo subordinativo e constrói períodos independentes. Mattoso considera o discurso indireto livre um recurso para preservar através da informação a manifestação psíquica e o apelo.

A quebra da ordem canônica da frase também é uma forma de realce. O termo deslocado adquire valor enfático. Veja este exemplo clássico de Herculano: "Arquiteto do Mosteiro Santa Maria já não o sou".

Os adjetivos usam-se pospostos ou antepostos aos substantivos. A posição do adjetivo altera o sentido da frase: velho amigo / amigo velho; E até mesmo a função: marinheiro brasileiro / brasileiro marinheiro.

Dois problemas fundamentais se colocam no estudo estilístico dos pronomes pessoais. De um lado, a questão apaixonada da colocação dos pronomes oblíquos átonos. De outro, a mudança de tratamento na dialogação.

Com relação à colocação dos pronomes, há casos imperiosos: não usar nem próclise nem ênclise com os particípios passados, bem como não se usar a ênclise com os futuros do presente e pretérito. No mais, como salienta Said Ali "a regularidade é correta em Portugal. A liberdade de colocação é correta no Brasil, como já está sancionada pelos autores brasileiros. Ou, como salienta Chaves de MeIo, a colocação é ditada pelo sentimento da língua, o ritmo da frase e a harmonia do período. Na linguagem cotidiana brasileira é normal dar início à frase com o pronome oblíquo, uso esse que passou à literatura com o movimento modernista de 22. O Modernismo procurou diminuir a distância entre a língua coloquial brasileira e a língua literária. Ouçamos Oswald de Andrade, em Pronominais:

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da raça brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro.

Outra questão é a mudança de tratamento resultante da influência de fatores psicológicos. Exemplo significativo é o poema de Bandeira:

IRENE NO CÉU

Irene preta

Irene boa

Irene sempre de bom humor.

Imagine Irene entrando no céu:

Licença, meu branco?

E São Pedro bonachão:

– Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

A mudança de tratamento revela a situação de aproximação ou de afastamento entre falante e ouvinte. A Ia. estrofe é descritiva. A 2a. caracteriza-se pelo tom familiar. A afetividade e a intimidade se acentuam com a mudança de tratamento.

Estilística lexical

Abrange os estrangeirismos; regionalismos, arcaísmos, neologismos, palavras eruditas ou populares. Não prescinde igualmente da sonoridade e do teor semântico dos vocábulos. Grande é a preocupação do escritor com a seleção vocabular, até porque a seleção esta condicionada à natureza do gênero literário. A linguagem lírica de modo algum é igual à linguagem épica ou dramática. Difícil é a escolha entre sinônimos e antônimos. Quanto aos sinônimos, a situação se toma mais precária, sobretudo porque existem sinônimos imperfeitos, de significação apenas aproximada. Cão e cachorro podem assumir acepção diferente. Além disso, há o aspecto do volume e sonoridade da palavra. Os vocábulos polissilábicos em geral indicam idéia de grandeza, têm mais sonoridade em contraste com os monossílabos. Interessante observar a distinção de Bally entre palavras transmitidas e adquiridas. As transmitidas, por serem recebidas do ambiente doméstico, são afetivas. As adquiridas vêm depois, resultam da experiência da vida, da integração no grupo social. São mais conceituais.

Com relação às palavras eruditas, estas se desenvolveram com o Renascimento, quando se processou verdadeira latinização da língua portuguesa. Teve continuidade com o Parnasianismo e constituindo-se até mesmo em preferências pessoais. Rui Barbosa, Coelho Neto, Euclides da Cunha são exemplos de eruditismos. Com o Modernismo, procurou-se valorizar e estilizar a língua popular. Emprego de ter no lugar de haver. Colocação livre dos pronomes átonos. Uso de palavras populares, de neologismos. Famoso é o poema de Bandeira:

Beijo pouco, falo menos ainda

Mas invento palavras

que traduzem a ternura funda

E mais cotidiana

Invento, por exemplo, o verbo Teadorar

intransitivo;

Teadoro,Teodora.”

Já os arcaísmos são palavras que existiram e desapareceram da língua. Os arcaísmos são usados com valor estilístico. Lembro-me de Alphonsus de Guimarães seduzido pela palavra giolhos. Como nos românticos a palavra asinha = depressa.

Em relação aos estrangeirismos, tão condenados por alguns gramáticos, sob o aspecto estilístico, os estrangeirismos podem ser determinados por exigência da afetividade, ora por seu caráter de universalidade, ora por imposição de expressividade. Veja Drummond em Cota Zero:

Stop

a vida parou

ou foi o automóvel?

Ou no"Poema de Sete Faces":

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: vai, Carlos, ser gauche na vida.

Onde o estrangeirismo gauche é usado pela expressividade.

Muito bem, desta forma, procurei desenvolver os conteúdos que ministro sobre Estilística na graduação. É uma maneira de contribuir com o departamento na discussão sobre a metodologia do ensino das disciplinas no Curso de Letras.

BIBLIOGRAFIA

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MELO, Gladstone Chaves de. Ensaio de estilística portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1976.

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MURRY, J. Middleton. O problema do estilo. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1968.

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