ANTONIO VIEIRA, CRATILIANO?

Ana Lúcia M. de Oliveira (UERJ)

 

Pretende-se abordar, nesta comunicação, um recurso retórico-poético presente na sermonística vieiriana, notadamente no “Sermão da Nossa Senhora do Ó” e no “Sermão do Santíssimo Nome de Maria”, que consiste no desdobramento alegórico das particularidades de uma letra. Tal procedimento, usual no século XVII, diz respeito a uma concepção semântica da letra ou do fonema, ou seja, de uma linguagem cujas sonoridades exprimissem a idéia das ações e das coisas. Propomos investigar se essa relação de motivação e necessariedade entre o signo lingüístico e seu referente poderia ser denominada, com Gérard Genette (1972), de cratilismo, em referência ao célebre diálogo platônico no qual se opõem a tese da arbitrariedade da linguagem, defendida por Hermógenes, e a de sua adequação às coisas, enunciada por Crátilo.

Inicialmente, examinemos de passagem a concepção acerca da linguagem, e especialmente do nome, que Platão apresenta no Crátilo. Esse diálogo, tão fundamental para a história do pensamento lingüístico do Ocidente, é construído em torno da seguinte questão: o conteúdo e a forma da linguagem ligam-se “por natureza” (physei), como sugere o personagem cujo nome fornece o título da obra, oupor convenção” (thesei), consoante os argumentos contrários de Hermógenes?

A “justeza dos nomes”, subtítulo do diálogo, constitui o tema da controvérsia entre Hermógenes e Crátilo, que decidem consultar Sócrates acerca desse ponto. De início, será abordada a afirmativa do primeiro interlocutor, baseada na tese de Protágoras, segundo a qual a origem e a natureza das denominações é puramente convencional. Nas palavras de Hermógenes: “Para mim, seja qual for o nome que se a uma determinada coisa, esse é o seu nome certo...” (384d). O comentário irônico de Sócrates, que vincula essa idéia ao relativismo absoluto, termina por abranger, na mesma rede dialética da argumentação, a interdependência da linguagem e do conhecimento. Assim, ou os nomes constituem formas convencionais – e nesse caso serão convencionais os seus significadosouentre os nomes e as coisas um nexo de co-naturalidade para garantir o seu conhecimento.

A discussão subseqüente se desenrolará em duas etapas distintas: na primeira, concluindo que o nome é a imitação vocal da coisa imitada (423 b), Sócrates mostrará a Hermógenes a co-naturalidade referida, produto de uma poiesis originária que, passando tanto pelos substantivos, adjetivos e verbos, quanto pela qualidade sonora de determinadas sílabas ou letras, estabelece entre os nomes e seus significados uma fina trama de correspondências, de associações e de analogias que liga mimeticamente palavras e coisas. Na segunda parte (a partir de 427e), Sócrates, ressaltando o que há de verdadeiro na tese de Hermógenes, exporá as dificuldades impostas pela conclusão antes adotada, uma vez que, sendo os nomes comparáveis a uma pintura dos objetos, teríamos que aceitar o fato de as palavras constituírem ou uma imagem inadequada ou a duplicação irrelevante das próprias coisas.

Na parte central do diálogo, Sócrates, aplicando o método etimológico defendido por Crátilo a aproximadamente 140 nomes, demonstra que tal método, cujo fundamento é a imitação da essência das coisas por meio de sons e sílabas, é apenas uma engenhosidade humana, de caráter por vezes derrisório. Em síntese, a operação socrática quanto a esse ponto consiste em uma paródia do referido procedimento etimológico, evidenciando a sua incongruência.

Para Platão, o discurso é de “natureza híbrida, verdadeira e falsa ao mesmo tempo” (Crátilo 408c) assim como Pan, não por acaso filho de Hermes. Em suas palavras: “O que há nele de verdadeiro é macio e divino e reside no alto com os deuses, por outro lado, o que há de falso mora embaixo, com a multidão dos homens” (idem). Na concepção platônica da palavra em sua função de representação do inteligível, embora um pouco degradada, as duas teses contrárias convergem e são superadas, tendo ambas algo do verdadeiro eidos do onoma (nome). Assim, segundo Benedito Nunes, verifica-se no Crátilo, em relação às palavras, a aporia da diferença (cf. DELEUZE, 1968: 194), na medida em que se conclui que não é possível nem identificar o nome com a coisa nem separá-los completamente” (NUNES, 1973: 28).

Passemos agora à análise dos sermões vieirianos selecionados, tentando estabelecer uma comparação com a concepção cratiliana da linguagem.

No “Sermão do Santíssimo Nome de Maria”[1], Vieira concentra sua argumentação na análise do sagrado nome, destacando desde o início a grande dificuldade dessa empresa “porque o conceito do que significa este soberano nome foi parto do entendimento divino, que é infinito; e o significado pela voz do mesmo nome é o que nós só podemos perceber com o entendimento humano, que é tão fraco e limitado” (p. 67).

Elaborado com o engenho peculiar da oratória vieiriana, tal sermão recicla um procedimento retórico-poético usual nos séculos XVI e XVII, que se baseia na artificiosa manipulação de particularidades do desenho de uma letra do alfabeto. Esta é operada como forma exterior participando em uma forma interior, que constituiria o seu sentido mais “verdadeiro” ou próprio. A esse respeito, Didi-Huberman (1990: 619) nos esclarece que a exegese tradicional possui vários termos técnicos, dentre os quais o de litteratio, para designar esse trabalho de floração figural em torno do nome, tão comum na época. Como desenho ou ícone, a letra pode remeter a uma realidade que, por sua vez, remete a um sentido moral. A letra é, assim, “operada cumulativamente, como inicial e como desenho” (idem). Tomemos como exemplo o M com suas três pernas, que pode significar, além da inicial de Maria, a Trindade e até o tridente, segundo se lê no texto em foco:

O M, entre todas as letras, é também tridente, e competindo o tridente do nome de Maria com o tridente infernal do demônio, bem viu e experimentou ele, nesta primeira letra do mesmo nome, com quanta razão se temia do todo. (p. 93).

Na parte central do sermão, Vieira emprega o método etimológico, tão caro a Crátilo, para examinar a significação ou significações do nome de Maria, fundamentando-se em diferentes línguas:

A língua hebréia, a caldaica, a Síria, a arábica, a grega, a latina, todas conspiraram em o derivar de diversas raízes e origens, por onde não é uma só, senão muitas as etimologias deste profundíssimo e fecundíssimo nome, e o mesmo nome, segundo a propriedade de suas significações, não um só nome, senão muitos nomes (p. 74).

A partir dessas múltiplas significações – dentre as quais se destacam “Stella maris, estrela do mar” (p. 76); “Domina, Senhora por antonomásia, porque do seu domínio e império nenhuma coisa se exclui” (p. 76); Illuminatrix, a que alumia a todos os homens (p. 77) e “Amarum mare, mar amargoso” (p. 77) –, o jesuíta conclui que o nome da Virgem é imenso porque, “sendo Deus imenso e infinito, uma parte de que se compõe o nome de Maria, é todo Deus” (p. 79).

Após estudar o copioso significado do sacro nome, Vieira inicia a “especulação deste grande todo, parte por parte, ou a anatomia deste grande corpo, membro por membro” (p. 82). Em minuciosa operação de anatomista, examina o significado e os mistérios do nome, letra por letra, vendo em cada uma por si o que significam as cinco letras de Maria. Apoiando-se no testemunho de diferentes fontes eclesiásticas, levanta vários sentidos para cada letra, dentre os quais selecionamos alguns. Para o M: “mãe”, “mão direita de Cristo”, “manjar dos céus”, “mestra dos mestres”, “mar Vermelho”, “medicamento universal”, “mesa espiritual”, “mediadora”, “morte dos pecados”, “mina de riquezas”, “mulher singular” (p. 82-83); para o A: “árvore da vida”, “adjutório do Altíssimo”, “abismo”, “altar animado”, “arca do testamento”, “aurora do céu na Terra”, “aqueduto da fonte da graça”, “alabastro do ungüento de nossa santificação”, “abelha virgem”, (p. 84-85); para o R: “rainha”, “razão única”, “raiz da glória e dos bens”, “recreação e alívio de todos os aflitos”, “reclinatório de ouro”, “refrigério”, “refúgio”, “rosa do paraíso do céu” (p. 85); para o I: “idéia digna da divindade”, “imagem do divino arquétipo", “íris”, “intercessora imperial”, “ímã” (p. 86). Encerrando tal procedimento anatômico, sintetiza, citando São Bernardo, o significado central da última letra: “A, antídoto da vida contra o veneno de Eva” (p. 87; grifo nosso).

Reafirmando, com Crátilo, a relação de motivação e necessariedade entre o signo lingüístico e seu referente, Vieira, após observar o número de caracteres que formam o nome de Maria, conclui:

Assim pedia a razão, que os nomes fossem cortados pela mesma medida até ao número das letras; e assim como o nome de Jesus se compõe de cinco letras, assim o nome de Maria se formasse de outras cinco.  (p. 91).

Além disso, renovando a teoria cratiliana ao afirmar que as letras e sílabas do alfabeto por si mesmas imitam e pintam os objetos, o inaciano sentencia:

O melhor hieroglífico da mesma Trindade é o M, uno e trino. O cetro com que ostenta seu poder, e se arma o demônio quando aparece visível é o seu tridente de fogo: o M, entre todas as letras, também é tridente.  (p. 93).

Cabe agora examinar o “Sermão de Nossa Senhora do Ó”[2], cujo tema central é esclarecido no exórdio: “O mistério do Evangelho é a Conceição do Verbo no ventre virginal de Maria Santíssima: o título da Festa é a Expectação do parto, e os desejos da mesma Senhora debaixo do nome do O” (p. 190). O foco da sua argumentação incide, portanto, na expectação do parto de Maria, cujo útero continha o próprio Deus e cuja reiterada invocação (o Ó!) expressava o desejo da manifestação desse sagrado conteúdo. Em torno desse núcleo, o pregador tece importantes considerações acerca da articulação entre o plano finito e temporal e o plano infinito e eterno, tópica sempre presente nas diversas encenações do theatrum sacrum jesuítico.

Destaque-se que esse sermão desdobra a relação da littera com o significado, a partir da junção – tão cara à forma mentis seiscentista ibérica – de uma concepção retórica com o essencialismo cristão, que postula a glosa perene da letra. Nele, a letra o remete iconicamente a uma realidade – o útero –, a qual remete a um sentido alegórico: não tendo princípio nem fim a figura circular, o e útero se identificam como representações da eternidade. Assim, a argumentação vieiriana desenvolve-se agudamente em torno da questão paradoxal: como o corpo finito da Virgem pode conter em si o espaço inteiro do mistério e do infinito.

Para tentar explicar logicamente tal paradoxo – em suas palavras, a “maravilha que excede as medidas de toda a capacidade criada” (p. 191) –, Vieira enuncia, de saída, a surpreendente questão: “que esse mesmo Deus, sendo imenso, se houvesse ou pudesse encerrar em um círculo tão breve, como o ventre de uma Virgem” (p. 191). Partindo da constatação da imensidade de Deus, o sermonista, beirando a heresia, chega a postular a superioridade da dimensão do útero em relação à própria divindade:

Quando um imenso cerca outro imenso, ambos são imensos; mas o que cerca, maior imenso que o cercado; e por isso, se Deus foi cercado, é imenso, o ventre que o cercou, não só há de ser imenso, senão imensíssimo.  (p. 194).

Em seu objetivo de animar o finito (Maria) com o infinito (Deus), ou de destacar a forma material como participação[3] em uma essência divina, Vieira emprega a alegoria da infinitude do ventre que acolheu o Cristo, usando uma linguagem ornada e engenhosa, de grande efeito persuasivo, mas que quase ultrapassa o limite do decoro, que, no caso específico, é dado pela adequação aos princípios teológicos.

Outro ponto importante desse sermão é o traçado do círculo formado pelo desejo. Baseado na invocação de Maria, que expressava o desejo da manifestação do sagrado contido em seu próprio útero, o jesuíta, relacionando tempo e eternidade, postula que o desejo temporal e carnal do homem pode conter em si mesmo o eterno:

Nove meses teve dentro deste círculo a Deus; e quem pudera imaginar, que estando cheio de todo Deus, ainda ali achasse o desejo capacidade e lugar para formar outro círculo? (...) Assim como o círculo do ventre virginal na Conceição do Verbo foi um O que compreendeu o imenso, assim o O dos desejos da Senhora na expectação do parto foi outro círculo que compreendeu o Eterno (p. 190).

Desdobrando sua artificiosa argumentação, o jesuíta investiga a imagem do círculo: por que os desejos de Maria constituíram “um círculo que compreendeu o eterno”? Em primeiro lugar, destaca a semelhança entre desejo e eternidade. O desejo contém em si o eterno como o objeto último de sua satisfação plena e, por sua própria natureza, portanto, tende à eternidade, segundo se constata na seguinte passagem:

A eternidade e o desejo são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam com a mesma figura. Os Egípcios nos seus hieroglíficos e antes deles os caldeus para representar a eternidade pintaram um O: porque a figura circular não tem princípio, nem fim; e isto é ser eterno. O desejo ainda teve melhor pintor que é a natureza. Todos os que desejam, se o afeto rompeu o silêncio e do coração passou à boca, o que pronunciam naturalmente é O (...) E como a natureza em um O deu ao desejo a figura da eternidade, e a arte em outro O deu à eternidade a figura do desejo; não há desejo, se é grande, que na tardança e na duração não tenha muito de eterno (p. 198-199).

Em seguida, ao tematizar o conteúdo dos desejos de Maria, Vieira analisa o gesto da Encarnação de Deus na história humana. Na avaliação de Didi-Huberman (1990: 611), o evento, ou a invenção, absolutamente central do cristianismo é a encarnação do Verbo divino na pessoa “visível” de Jesus Cristo. Como se trata de um evento incrível que, paradoxalmente, constitui a pedra fundamental de toda uma crença, a aceitação de tal premissa possibilita a tessitura de uma rede de paradoxos, que está na base da argumentação de Vieira. E mais: por celebrar a entrada do Deus como tal, e não como aparência, no mundo visível, a Encarnação deveria assim constituir logicamente a questão absoluta – e também o paradoxo absoluto – de toda figuração. Paradoxo, de fato: afinal, qual pode ser o aspecto congruente de um verbo, de uma pura palavra que se encarna? Nas palavras do referido crítico:

Nossa hipótese é a de que o núcleo mesmo da crença religiosa em que se funda o cristianismo teria antecipadamente fornecido a matriz de um tal “espectro” figurativo, de uma tal extensão – extensão acerca da qual a norma só funciona com a possibilidade de todos os seus excessos, e a ortodoxia, com a possibilidade de todas as suas heresias. (idem: 609)

Em síntese, o que o Cristianismo buscava nessa questão paradoxal da figuração era ultrapassar a oposição secular entre os deuses por demais visíveis do paganismo greco-latino e o deus por demais invisível da religião hebraica.

Já possuímos as ferramentas necessárias para retomar nossa análise. Como vimos, essa presença revelada e escondida dentro da realidade não aplaca o desejo, tornando-o, antes, mais ardente. Se os desejos de Maria resumem-se num “Ó quando?” – “Ó quando chegará aquele dia? Ó quando chegará aquela ditosa hora, em que veja com meus olhos e em meus braços ao Filho de Deus e meu?” (p. 218) – e aparentemente começaram na concepção e acabaram no parto, por outro lado, “nesta oficina miraculosa” do corpo virginal, é possível que assim como “o eterno se pode fazer temporal”, também o tempo se faça eterno. Retomando outra figura circular – a imagem da roda utilizada por Ezequiel no Antigo Testamento –, Vieira afirma:

A roda do tempo é pequena e breve, a roda da eternidade é grandíssima e amplíssima; e, contudo, a roda do tempo encerra e revolve dentro em si a roda da eternidade; porque qual for a vida temporal de cada um, tal será a eterna. (p. 200).

Evidentemente, essa alegoria reduplica, em abismo, a mesma questão que constitui o paradoxo central desenvolvido no texto: como pode o útero, humano e finito, conter em si o sobre-humano e infinito?

Se, paradoxalmente, a roda do tempo contém a roda da eternidade, o desejo que a move faz parecer eternos os instantes e os dias porque, unindo-se à roda do tempo, multiplica-o infinitamente. Para exemplificar o conceito de multiplicação do desejo pela dilação, Vieira utiliza-se de uma imagem natural dos círculos concêntricos:

Se acaso, ou de indústria, lançastes uma pedra ao mar sereno e quieto, ao primeiro toque da água vistes alguma perturbação nela; mas tanto que esta perturbação se sossegou e a pedra ficou dentro do mar, no mesmo ponto se formou nele um círculo perfeito, e logo outro círculo maior, e após este outro, e outros, todos com a mesma proporção sucessiva, e todos mais estendidos sempre, e de mais dilatada esfera (p. 203).

As observações anteriores indicam que o círculo traçado pelo útero de Maria constitui a potência seminal do encadeamento de todos esses mistérios, perfazendo a imagem especular do círculo dentro do círculo. Focalizando o O, portanto, Vieira desdobra[4] diferentes configurações da circularidade. Associa-o ao símbolo egípcio do eterno – representado em um círculo, por não ter princípio nem fim –, ao som pronunciado quando o homem é tocado pelo desejo, aos infinitos desejos maternos, à roda do tempo. Tal desdobramento culmina no fragmento citado acima. A imagem dos círculos concêntricos, utilizada pelos antigos filósofos para explicar a propagação da luz e do som, é transportada para a definição do movimento que o desejo humano produz na história da salvação, postulando que a comparação ilustra o modo pelo qual os Ós dos desejos da Senhora se multiplicavam. Interpretando alegoricamente as imagens anteriormente apresentadas, Vieira afirma que a própria Virgem Maria:

(...) era o mar, que isso quer dizer Maria, a pedra era o Verbo encarnado, Cristo (...). O primeiro toque da pedra no mar foi quando o Anjo na embaixada à Virgem lhe tocou em que havia de ser Mãe (...) e a pedra desceu a seu centro, logo os círculos que eram os OO dos desejos da senhora, se começaram a formar e crescer no seu coração de tal sorte que sempre os que se iam sucedendo e multiplicando, à medida do amor, que também crescia, eram mais crescidos também, e de maior e mais estendida esfera (p. 203).

De modo que “cresceu o desejo à proporção do amor, e o tempo à proporção do desejo” (p. 204). No caso de Maria, seus desejos mediam-se pelo objeto desejado; assim, considerando-se que “o desejado era imenso, infinito, eterno, [...] seriam também eternos os seus desejos” (p. 205). Por outro lado, para Vieira, “o desejo, para ser fecundo, teria de fundar-se sobre o conhecimento efetivo de seu objeto” (PÉCORA, 1995: 402). Por que ela, então, já estando prenhe e contendo em si mesma o Objeto eterno e infinito do desejo, continuaria a desejar? A resposta para tal indagação se inicia com uma referência à situação paradoxal vivida por Narciso: “o que desejo, tenho-o em mim; e porque o tenho em mim, careço do que tenho” (p. 208). Em seguida, se apóia nos testemunhos de São João, São Basílio e São Tomás, para chegar à “verdadeira filosofia”, capaz de explicar “porque o bem presente pode causar desejos, e porque a presença, para se lograr, há de ter alguma coisa de ausência” (p.211). Eis a sua sinuosa argumentação:

A presença para ser presença, há de ter alguma cousa de ausência. O objeto da vista, para se poder ver, há de ser presente; mas se está pegado e unido à mesma potência, é como se estivera ausente: há de ser apartado dos olhos, para se poder ver. Assim a presença, para ser presença, não há de passar a ser íntima, nem há de estar totalmente unida, senão de algum modo distante (p. 208).

Em síntese, considerando-se que a presença ausente é o que move o desejo e a invocação de Maria, a experiência central da sua expectação do parto seria “desejar que o que amo se ausente, e se parte de mim” (p. 208). Para esclarecimento dessa questão, destaque-se, com Alcir Pécora, que essa presença ausente, crucial na configuração retórico-teológica do sermonário vieiriano, condensa a própria “via claro-escura do mistério” (1977: 158) cristão, em que o divino apresenta “uma demarcação sensível, mas, simultaneamente, fecha-se aos olhos” (idem: 156).

Na última parte do sermão, Vieira, em um procedimento caro às práticas textuais barrocas, faz o recolho[5] definitivo das imagens circulares disseminadas no texto, destacando sua função anagógica, ao relacioná-las com outro círculo presente no Sacramento da comunhão: a hóstia sagrada, presença visível de um invisível corpo de Cristo. Tentando implicar a multiplicidade antes referida na unidade da doutrina católica, o jesuíta sintetiza, lapidarmente:

No primeiro discurso sobre as palavras: Ecce concipies in utero: não provei eu que o ventre virginal da Senhora pela conceição do Verbo encarnado fora a circunferência da imensidade, e um círculo que compreendeu o imenso? Por isso mesmo é que a Onipotência Divina tornou a obrar por nosso amor no mistério altíssimo do Sacramento, encerrando naquele círculo breve de pão toda a imensidade de seu ser divino e humano. (p. 212)

Façamos também nosso recolho final, retomando a tese cratiliana de uma identidade entre o significante e o significado. No sermão em foco, os os dos desejos de Maria espelham a circularidade presente em seu próprio útero, que remete, em sua motivação ideográfica, à própria hóstia, o corpo consagrado de Cristo para a comunhão, simultaneamente corpo e não-corpo. Nesse sentido, o útero pode ser denominado de “custódia” – termo que, na religião católica, designa o receptáculo que contém a hóstia. Assim, o o, círculo traçado pelo desejo, se faz escritura e se integra à ciranda de imagens que comungam na circularidade. Por sua vez, o círculo como representação pictográfica encerra o símbolo do universo e também o útero, o ideograma feminino, custódia do corpo do homem e, por extensão, do universo.

Em síntese, observamos que Vieira cratiliza, ao defender, nos sermões abordados, a capacidade mimética dos grafemas, a concepção de que os nomes têm uma propriedade natural que une a forma ao significado.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Le Pli. Leibniz et le Baroque. Paris: Minuit, 1988.

––––––. Différence et répétition. Paris: PUF, 1968.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Puissances de la figure. Exégèse et visualité dans l´art chrétien. In: Encyclopoedia Universalis. Vol. Symposium. Les Enjeux. Paris: Encyclopoedia Universalis France S. A, 1990.

GENETTE, Gerard. Avatars du Cratylisme. In: Poétique 11, 1972.

HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Atual, 1986.

HATHERLY, Ana. O ladrão cristalino: aspectos do imaginário barroco. Lisboa: Cosmos, 1997.

NUNES, Benedito. Introdução. In: PLATÃO. Teeteto e Crátilo. 3ª ed. Belém: EDUFPA, 2001.

OLIVEIRA, Ana Lúcia de. Por quem os signos dobram: uma abordagem das letras jesuíticas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.

PÉCORA, Alcir. Lugar retórico do mistério em Vieira. In: MENDES, M. V. et alii. Vieira escritor. Lisboa: Cosmos, 1977.

––––––. O desejado. In: Novaes, A. (org.). O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 399-414.

––––––. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio Vieira. São Paulo: EDUSP; Campinas: Unicamp, 1994.

PLATÃO. Teeteto e Crátilo. Trad. de Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém: EDUFPA, 2001.

VIEIRA, Antonio. Sermões. 15 vol. Porto: Lello e Irmão, 1907-1909.


 


 

[1] Antonio Vieira, Sermões, tomo X. Porto: Lello e Irmão, 1908, p. 63-108. Todas as referências de página serão relativas a essa edição.

[2] Vieira, Sermões, t. X. 1908, p. 189-215. Todas as referências de página serão relativas a essa edição.

[3] Para uma percuciente análise do conceito de participação na analogia cristã, de inspiração originalmente platônica, cf. PÉCORA, 1994, p. 143.

[4] Leia-se aí, em linha d’água, uma referência à teoria deleuzeana (DELEUZE, 1988) da dobra como traço operatório central do Barroco.

[5] Para maiores desdobramentos acerca da importante função dessa técnica, no âmbito das letras jesuíticas, como forma de combater a indeterminação semântica, cf. OLIVEIRA, 2003: 159-168.

 

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