A desespacialização da cidade
na literatura brasileira contemporânea

Regina Pentagna Petrillo (USS)

 

As literaturas européias dos séculos XIX e XX foram marcadas pelo desejo captar e registrar o cenário urbano. A compreensão da cidade moderna, que rapidamente se transformava, pressupunha o entendimento da geografia urbana como inscrição da subjetividade.

Na literatura brasileira do Modernismo, sobretudo na chamada fase heróica, tem-se o registro da cidade moderna, São Paulo, e o fascínio por ela despertado. Entretanto, será a nota local e regional que irá se consolidar e se prolongar em nossa literatura como representação mais significativa da nacionalidade. Nesta literatura, o espaço era apresentado da forma mais realista possível como importante meio de análise e de conhecimento.

Durante os anos da ditadura militar, a nossa manifestação literária apresentou características próprias relacionadas ao contexto específico vivido pelo país. O uso da metáfora e do texto cifrado foram determinantes nas primeiras décadas deste período. Da mesma forma, com a abertura e a redemocratização, os anos 80 geraram textos surgidos do hiato representado pela censura e pela suspensão das liberdades democráticas. A questão nacional que se afirma neste momento correspondeu, provavelmente, ao desejo de reescrever a história do país, e de expressar a consciência e a identidade nacional.

Nos anos 90, concluído o período de abertura política e com a restauração do sistema democrático, surge na literatura brasileira um perfil diferente. A nossa imaginação literária deixa de priorizar a questão local e nacional, passando a ser predominantemente urbana[1], mesmo em relatos de forte teor regional (como os de Raimundo Carrero), em histórias de migração e inadaptação social (como em Mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto) ou em histórias nas quais vestígios da experiência rural se justapõem a um cotidiano citadino (como em alguns contos de Angu de sangue, de Marcelino Freire).

Na prosa brasileira das últimas décadas, o espaço, agora priorizado, recebe um tratamento novo. Do traçado realista que buscava expressar ou traduzir através do regional a consciência da nacionalidade, tem-se, de um lado, a construção de um espaço citadino hiper-real que mais faz do romance texto de reportagem ou crônica[2] e, de outro, a estruturação de um espaço em que a geografia urbana, tornando-se torna cada vez mais ambígua e indefinida, sofre um processo de desespacialização ou desrealização.

Este processo pode ser exemplificado com o conto de 1992, “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, do escritor Rubem Fonseca (FONSECA, 1992: 11-50).

Em “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, o espaço de referência é a cidade real com locais e endereços reais. No entanto, a narrativa recebe um tratamento especial que termina por desrealizá-la. Espaço e tempo se misturam, o Rio de hoje é construído sobre o Rio de ontem, endereços atuais desembocam em espaços extintos, tornando a cidade impalpável e indistinta.

O conto tem início quando o protagonista ganha na loteria, o que lhe possibilita deslocamentos determinantes de novas situações. Epifânio passa a se chamar Augusto, pede demissão da companhia de águas e esgotos e se dedica a escrever um livro intitulado A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro cujo objetivo é.encontrar “uma arte e uma filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma melhor comunhão com a cidade” (FONSECA, 1992: . 19).

Este também era o objetivo de Joaquim Manuel de Macedo em seu livro Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (MACEDO, 1962) e sobre o qual o texto de Rubem Fonseca se superpõe. Ao protagonista do texto moderno é dado o mesmo nome da personagem do romance carioca dos anos 10, mas nega que o procedimento de ambos será o mesmo. Segundo ele, a obra de Macedo tornou-se um simples pretexto para inventariar descrições históricas sobre pessoas ou instituições, sendo, desta forma, incapaz de atingir o objetivo desejado.

A crítica parece então sugerir que o passeio voltado para o passado ou para a história, tal como vez Macedo, não será o caminho seguido por Epifânio. Entretanto, como Macedo, é através do andar pela cidade que o protagonista de Rubem Fonseca dá início a seu projeto.

Augusto caminha à pé, noite e dia, por entre os diversos mundos que compõem a cidade. O seu caminho não se dá ao acaso, como propôs o autor romântico (FONSECA, Op. cit., p. 21, 22)[3] ou como o fez o flaneur configurado na poética de Baudelaire. O personagem de Rubem Fonseca parte de um traçado pré-estabelecido, voltado para um objetivo, marcado rigorosamente pelo seu relógio Casio Melody (“seu Casio Melody toca a música de Haydn às três da madrugada, está na hora de escrever seu livro”) (FONSECA, 1992: 50), e supostamente legível que ganharia sentido orientado pela leitura e na escritura da cidade.

Percorrendo traçados pré-estabelecidos, o escritor-andarilho também não é o homem indiferente e automatizado da multidão, a sucessão das cenas urbanas não lhe provoca indiferença. Augusto é um solitário a percorrer incessantemente as ruas do Rio de Janeiro, para após registrar tudo o que vê.

O personagem entende que o Rio de Janeiro, como toda grande cidade, não pode ser abarcada em sua totalidade: o Rio é uma cidade muito grande, guardada por morros, de cima dos quais pode-se abarcá-la, por partes, com o olhar (FONSECA, 1992: 16). Daí fazer um recorte para as suas perambulações iniciais que compreende apenas o centro da cidade:

Ele se mudou para o sobrado da chapelaria para melhor escrever o primeiro capítulo, que compreende, apenas, a arte de andar pelo centro da cidade (grifo meu). O resto da cidade, o imenso resto que somente o satanás da Igreja de Jesus Salvador da Almas conhece inteiramente, será percorrido no momento oportuno (FONSECA, 1992: 16).

Será ainda uma pequena parcela do centro, o lado obscuro e marginal, que o olhar do personagem irá investigar. O espaço então apresentado é o palco em que, a partir dos anos 40, os sobrados foram deixando de ser moradias para darem lugar a ruínas e depósitos de mercadorias, onde circulam mendigos, prostitutas, grafiteiros, pivetes, camelôs, assaltantes – os segregados pela cidade. Um lugar impenetrável em que o cenário é um labirinto, marcado pela instabilidade e pela mutabilidade.

Nesta paisagem estranha e em constante mudança o personagem de Rubem Fonseca transita, procurando compreender a cidade na dispersão de seus fragmentos heterogêneos, a fim de construir um núcleo de significados:

Em suas andanças pelo centro da cidade, desde que começou a escrever o seu livro, Augusto olha com atenção tudo o que possa ser visto, fachadas, telhados, portas, janelas, cartazes pregados nas paredes, letreiros comerciais luminosos ou não, buracos nas calçadas, latas de lixo, bueiros, o chão que pisa, passarinhos bebendo água nas poças, veículos e principalmente pessoas. (FONSECA, 1992: 12).

Entretanto, o texto vai apontando para a impossibilidade de apreensão ou para a perda de qualquer sentido original.

O centro configurando é um espaço complexo (“diversificado, obscuro, antigo”) e descentralizado (sem um traçado topográfico que permita um pólo irradiador, como ocorre com o centro das coisas em geral), o que impossibilita a visão do todo ou mesmo de uma pequena parcela:

O Rio é uma cidade muito grande, guardada por morros, de cima dos quais pode-se abarcá-la, por partes, com o olhar, mas o centro é mais diversificado e obscuro e antigo, o centro não tem um morro verdadeiro; como ocorre com o centro das coisas em geral, que é plano ou raso, o centro da cidade tem apenas uma pequena colina, indevidamente chamada de morro da Saúde e para ver o centro de cima, e assim mesmo mal e parcialmente, é preciso ir ao morro de Santa Teresa, mas esse morro não fica em cima da cidade, fica meio de lado, e dele não dá para se ter a menor idéia de como é o centro... (FONSECA, 1992: 16, 17)

A complexidade do espaço é acentuada pela constante mudança no perfil urbanístico e onde os lugares estão sempre assumindo novas funções:

Ao chegarem em frente ao Timpanas, o Velho contempla os prédios antigos enfileirados até a esquina da rua Rodrigues Silva. “Vai ser tudo demolido”, ele diz (FONSECA, 1992: 37)

Durante muito tempo, depois que Rui morreu, e até que o cinema virasse uma sapataria, (...). (FONSECA, 1992: 41)

Desde os anos 40, quase ninguém mora mais nos sobrados das principais ruas do centro, no miolo comercial da cidade, (...). Os sobrados, nessa área, passaram a servir de depósitos de mercadoria. Como os negócios da chapelaria foram diminuindo gradativamente a cada ano, (...), e não havia mais necessidade de um depósito, pois o pequeno estoque de mercadorias podia ficar todo na loja, o sobrado passou a não interessar a ninguém, ficou vazio. (...) O velho disse que ali havia sido a casa do conde de Estrela, no tempo em que a rua se chamava rua do Cano porque nela passava o encanamento de água para o chafariz do largo do Paço, largo que depois se chamou praça D. Pedro II e depois praça Quinze. (FONSECA, 1992: 16, 17)

Em A imagem da cidade (LYNCH, 1997: 7- 9), Kevin Lynch sustenta que a legibilidade da paisagem urbana é um componente vital de toda cidade. Esta legibilidade, segundo ele, é construída pela percepção de seus habitantes e constitui um processo que procede através de recortes e envolve uma série de referências ligadas não só ao meio ambiente, mas também à cadeia precedente de acontecimentos e à recordação de experiências passadas. As imagens, como afirma, são o resultado de um processo bilateral entre o observador e o meio em que o meio ambiente sugere distinções e relações, e o observador – com grande capacidade de adaptação e à luz de seus próprios objetivos – seleciona, organiza e confere significado àquilo que vê.

Lynch acrescenta que, à medida que a cidade se torna um labirinto, ela se dimensiona como o símbolo poderoso de uma sociedade complexa, cuja leitura é a resistência ao caos (LYNCH, 1997: 6).

Atravessar esse labirinto à busca de sentido seria ordenar através da legibilidade o caos da cidade. A leitura consistiria, então, no meio pelo qual os habitantes, levados pelas exigências de significação, reencontrariam a imagem da cidade através de pontos de referências que serviriam para articular seus discursos (LYNCH, 1997: 6).

Através do centro da cidade, Augusto caminha em busca de imagens, de sentido e de significados a fim de concretizar seu objetivo. Mas, neste espaço em que tudo é ambíguo e converge para formas em trânsito, os próprios locais e os significados deixam de ter identidades únicas e estáveis. Traduzem um caráter múltiplo e simultâneo, sempre aberto a novas combinações e significações. É o caso de um determinado cinema do centro, que tanto é sala de projeções para filmes pornográficos, quanto Igreja de Jesus Salvador das Almas.

Exemplo similar é marcado pelo encontro de Augusto com a família de catadores de papel, que reside sob a marquise do Banco Mercantil do Brasil. Assim como o cinema, que possui a dupla função cinema-templo, o Banco é ao mesmo tempo Banco e residência. Do mesmo modo, Augusto é andarilho-escritor e professor de prostitutas.

O centro da cidade é também o espaço onde se metamorfoseiam e se embaralham os signos da lucidez e da loucura. Ilustra esse cruzamento o encontro de Augusto com um desconhecido e seu cachorro, no Campo de Santana (FONSECA, 1992: 25, 26). A sanidade do homem no banco da praça, segundo o narrador, pode ser atestada, pois, além do relógio, usa também caneta tinteiro, e “os malucos”, afirma, “detestam caneta-tinteiro”. Mas Augusto mistura signos e, no final, já não é mais possível saber se louco é o desconhecido ou o próprio Augusto.

Augusto busca ler a cidade a partir das imagens do presente, dos resíduos do passado e das lembranças individuais. No entanto, as imagens e resíduos estilhaçam-se nos prédios demolidos.

Pára na rua do Teatro e olha para o sobrado onde sua avó morava, em cima do que agora é uma loja que vende incenso, velas, colares, charutos e outros materiais, mas que ainda outro dia era uma loja que

vendia retalhos de tecidos baratos. (...) Tenta se lembrar da morte do avô e não consegue, o que o deixa muito nervoso. (FONSECA, 1992: 23);

A imagem do centro sinaliza a incorporação do vazio, do tempo fluido no qual nada é permitido durar, restando apenas fragmentos que se mostram insuficientes para reterem o passado que perde a importância em relação ao presente:

Antigamente havia botequins espalhados pela cidade, onde você sentava e pedia: seu garçom faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada, um pão bem quente com manteiga à beça – você não conhece a música do Noel?

Noel? Não é do meu tempo. Desculpe, diz Kelly.

[....]

Vou te mostrar os três prédios que não foram demolidos. Eu te mostrarei a foto da avenida antigamente.

Não me interessa velharia. Pára com isso. (FONSECA, 1992: 31)

Neste espaço, degradado e sem memória, é difícil pensar os significados em termos de unicidade ou de estabilidade. Os sentidos adquirem fluidez ou deixam de ter qualquer sentido. Os limites fluidificam-se na fragmentação e na simultaneidade da metrópole, não sendo possíveis significações singulares ou totalizadoras. Tudo se torna ambíguo e instável. Os papéis e identidades misturam-se:

Próximo ao Cinema Odeon uma mulher sorri para ele. Augusto se aproxima dela. “Você é um travesti?”, pergunta. “Que tal você mesmo descobrir?”, diz a mulher (FONSECA, 1992: 21);

a lógica individual cria outras linguagens (FONSECA, 1992: 19) ou outras significações para as coisas:

Vai até a Cinelândia, urinar no McDonald’s. Os McDonald’s são lugares limpos para urinar, (...) os banheiros do McDonald’s são inodoros, ainda que também não tenham janelas, e estão bem localizados para quem anda no centro (FONSECA, 1992: 20);

ou não se ajusta à lógica da coletividade, que cria suas próprias significações:

Augusto olha para o último andar do prédio onde morou seu avô, e um monte de basbaques se junta em torno dele e olha também para o alto, macumbeiros, compradores de retalhos de tecidos, vadios, estafetas, mendigos, camelôs, transeuntes em geral, alguns perguntando “o que foi”, “ele já pulou?”, ultimamente muita gente no centro da cidade pula das janelas dos altos escritórios e se esborracha na calçada (FONSECA, 1992: 24).

Na maioria das vezes, a mutabilidade e a simultaneidade de convivências desestabilizam as relações humanas, desencadeando incompreensões e confrontos. É o que se pode ser verificado na reserva de Augusto quanto a uma proximidade afetiva com Kelly e na reação da prostituta que não entende o comportamento de Augusto, já que espera dele atitudes de um cliente:

Você pensa que eu estou engalicada, ou com AIDS, é isso? Não quer ir ao médico comigo pra ele me examinar? Você vai ver que eu não tenho doença nenhuma. (...) Você não quer deitar comigo, não quer ouvir a história da minha vida, eu faço tudo por você,(...). (FONSECA, 1992: 47);

ou, ainda, na agressividade de Zumbi do Jogo da Bola (FONSECA, 1992: 45, 46) e na desconfiança de Benevides:

Às vezes desconfio até do senhor... (...) No princípio pensei que o senhor era da polícia. Depois, da Leão XIII, depois, alguém do banco, mas o gerente é gente fina e sabe que somos trabalhadores e não ia mandar nenhum espião dedurar a gente. (FONSECA, 1992: 34)

A cidade é o espaço da mudança constante, da alteridade, dos desafetos, e também da total indiferença para com o outro, da extrema individualidade em resposta à extrema objetividade (SIMMEL, 1987: 11-25). O espaço de “eus” à deriva limitados por outros “eus” à deriva.

Desconfiança, incerteza, revolta, medo e violência marcam os relacionamentos. A proximidade não significa familiaridade, amor ou amizade. Os contatos entre as personagens espelham a fragmentação da sociabilidade e da afetividade. Tanto que a tentativa de Kelly de se aproximar de Augusto tem como resposta a desorientação e o afastamento (FONSECA, 1992: 48, 50). A mobilidade de Augusto por entre a cidade e por entre os personagens que compõem este universo não é caracterizada pelo envolvimento emocional. Está apenas relacionada a um objetivo que tem o seu tempo - a construção do livro.

A incapacidade ou o não desejo de uma proximidade afetiva de Augusto, seja com Kelly ou com qualquer outro componente da cidade aponta para uma contradição. Pois, se o desejo de Augusto é a construção de uma geografia para a estabelecer uma melhor comunhão com a cidade, falta o diálogo que é, ao mesmo tempo, escavar o outro e ação recíproca (PAZ, 1976: 102).Sendo assim, o seu tipo de relacionamento só lhe permite atingir a superficialidade da imagem.

É ainda Lynch quem sustenta que a fim de que uma imagem se torne viável, comunicativa ou legível, o objeto deve ter uma significação afetiva para o observador, o que exige uma interação entre o observador e a coisa observada (LYNCH, 1997: 9 -14).

O desejo de ordenação, espacialização ou de apreensão do espaço percorrem o texto, podendo ser visto na disciplina do protagonista que minuciosamente organiza o seu percurso, cronometrando e selecionando cuidadosamente o seu objetivo ou na tentativa de Augusto de ensinar as prostitutas a ler. Caso pensemos na prostituta como signo da cidade, ensiná-la a ler, provavelmente, reflita o desejo de reordenar as contradições que a contemporaneidade desordenou, como possibilidade única de mapear as imagens que se dissolvem a cada instante. Pode ser encontrado ainda no seu afeto, quase religioso, pelas árvores centenárias do Campo de Santana:

O campo tem uma velha história, Dom Pedro foi aclamado imperador no Campo de Santana, tropas amotinadas ali acamparam enquanto aguardavam ordens para atacar, mas Augusto pensa apenas nas árvores, as mesmas daquele tempo longínquo, e passeia por entre os baobás, as figueiras, as jaqueiras ostentando enormes frutos; como sempre tem vontade de se ajoelhar ante as mais antigas(...) (FONSECA, 1992: 25).

Com este universo, isolado do tumulto do centro, Augusto comunga afetivamente:

Na escuridão as árvores são ainda mais perturbadoras que na claridade e deixam que Augusto, ao caminhar lentamente sob suas sombras noturnas, comungue com elas como se fosse um morcego. Abraça e beija as árvores (...) (FONSECA, 1992: 27).

É entre as espécies profundamente enraizadas que o personagem encontra a paz e a comunhão que diz querer encontrar na sua errância pela cidade:

Entre as árvores Augusto não sente irritação, nem fome, nem dor de cabeça. Imóveis, enfiadas na terra, vivendo em silêncio, indulgentes com o vento e os passarinhos, indiferentes aos próprios inimigos, ali estão elas, as árvores, em volta de Augusto, e enchem sua cabeça de um gás perfumado e invisível que ele sente, e que transmite tal leveza ao seu corpo que se ele tivesse pretensão, e a vontade arrogante, poderia até mesmo voar (FONSECA, 1992: 27, 28).

É interessante recordar aqui a simbologia da árvore. Embora sejam muitas, de forma geral, todas estão articuladas em torno da mesma idéia do Cosmo vivo, da regeneração, da reordenação. Pelo fato de suas raízes mergulharem no solo e de seus galhos se elevarem para o céu, a árvore é universalmente considerada como o símbolo das relações entre o céu e a terra. Por isso, tem o sentido de centro, e tanto é assim que é o sinônimo do Eixo do Mundo (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1996: 84).

Conseqüentemente, o amor de Augusto pelas árvores reflete a nostalgia pela ordem do paraíso perdido que a cidade deixou de ser.

Entretanto, na cidade desfigurada e ambígua onde tudo flui na instabilidade de cada momento, só é permitido ao personagem deslizar à deriva na busca de sentidos ou na fuga da imprevisibilidade:

Agora Augusto está na rua do Ouvidor, indo em direção à rua do Mercado, onde não há mais mercado algum, antes havia um, uma estrutura monumental pintada de verde, mas foi demolido e deixaram apenas uma torre.(...) Augusto caminha pelo lado ímpar da rua e dois sujeitos vêm vindo em sentido contrário, do mesmo lado da rua, a uns duzentos metros de distância. Augusto apressa o passo. De noite não basta andar depressa nas ruas, é preciso também evitar que o caminho seja obstruído, e assim ele passa para o lado par. Os dois sujeitos passam para o lado par e Augusto volta para o lado ímpar. Alguma lojas têm vigias, mas os vigias não são bestas de se meterem no assalto dos outros. Agora os sujeitos se separam e um vem pelo lado par e o outro pelo lado ímpar. Augusto continua andando, mais apressado, em direção ao sujeito do lado par, que não aumentou a velocidade dos seus passos, parece até que diminuiu um pouco o ritmo da sua passada (...). Quando Augusto está a cerca de cinco metros do homem do lado par, o sujeito do lado ímpar atravessa a rua e junta-se ao seu comparsa. Os dois param. Augusto aproxima-se mais e, quando está a pouco mais de um metro dos homens, atravessa a rua para o lado ímpar e segue em frente sempre na mesma velocidade. “Hei!”, diz um dos sujeitos. Mas Augusto continua a sua marcha sem virar a cabeça, a orelha boa atenta ao barulho de passos às suas costas, pelo som será capaz de saber se os perseguidores andam ou correm atrás dele. Quando chega no cais Pharoux, olha para trás e não vê ninguém. (FONSECA, 1992: 49, 50)

A crise dos relacionamentos espelha o divórcio do “eu” com a cidade. No espetáculo sempre cambiante da vida urbana, a única imagem possível é da mudança, da deriva, da indiferença e da falta de afetividade: movimentos flutuantes e instáveis num ambiente eternamente mutável.

No labirinto das ruas, o “eu” à deriva já não é capaz de reconhece a sua cidade, que muda mais rápido do que pode acompanhar e compreender. Busca referências e sentidos tentando ler nas ruínas, mas o que se tem é o vazio, apenas um homem a deambular solitário pelas ruas do Rio de Janeiro.

Escrever a cidade é lê-la. Mas para ler a cidade seria necessário que o personagem construísse uma nova sintaxe erigida a partir da perda, do descompasso, da diferença. Dessa forma, ser capaz de decifrá-la pelo intrincado e instável jogo do seu discurso, dando-lhe um traçado e uma geografia. Contudo, dificultado pela perda das conexões temporais e espaciais, pela quebra da significação e pelo esfacelamento, o discurso que é a cidade, nesta perspectiva, perde a legibilidade, e, a configuração de uma geografia que permitisse ao personagem estabelecer uma melhor comunhão com a cidade é destruída, transformada em ilusão. O espaço por onde Augusto transita é apenas « um conjunto de signos que procura o seu significado e que não significa outra coisa além de ser procura » (PAZ, 1976: 104). A arte e a filosofia peripatéticas que Augusto quer encontrar para uma melhor comunhão com a cidade significam apenas errância do « eu » à deriva pela « cidade dos ratos » – « Solvitur ambulando ». E aquilo que, a princípio, parecia uma narrativa realista acaba configurada como simulacro.

No conto de Rubem Fonseca, a cidade real tornou-se incapturável pelo intrincado jogo em que espaço e tempo, ontem e hoje embaralham-se, atestando o processo de desespacialização.

Em As conseqüências da modernidade, Anthony Giddens (GIDDENS, 1991) explica por que nas sociedades modernas o lugar tornou-se fantasmagórico. O primado do lugar nos cenários pré-modernos, segundo o crítico, foi destruído em grande parte pelo distanciamento tempo-espaço e pelo desencaixe[4], característicos das sociedades contemporâneas. Nestas, as estruturas através das quais ele se constitui não são mais organizadas localmente. Em outras palavras, o local e o global tornaram-se inextricavelmente entrelaçados (GIDDENS, 1991: 110).

A desfiguração ou desespacialização encontrada no conto de Rubem Fonseca vem ocorrendo com freqüência na literatura brasileira contemporânea. Nesse processo tem-se desde a cidade delineada de modo fragmentário, o que já impossibilita o mapeamento do espaço urbano, até o total descompromisso com o espaço geográfico e cultural: o desaparecimento mesmo da cidade. Desespacializada, indefinida, “a cidade pode se qualquer cidade ou nenhuma cidade” e onde, em sua maioria, as identidades e afetos encontram-se problematizados.


 

Bibliografia

BENJAMIN, Walter. “Parque Central”. In: Obras escolhidas III: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 10ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.

FONSECA, Rubem. “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”. In: Romance negro e outras histórias. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.

GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MACEDO, Joaquim Manuel de. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1962.

PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1976.

PEIXOTO, Nelson Brissac. “Cidades desmedidas”. In: A crise da razão. Org. Adauto Novaes. São Paulo: Cia. das Letras/FUNARTE, 1996, p. 519– 534.

––––––. Cenário em ruínas. São Paulo: Brasiliense, 1987.

SIMMEL, Georg. “A metrópole e a vida mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.


 


 


[1] Na literatura brasileira contemporânea, de modo geral, as localidades rurais e as cidades interioranas são deixadas de lado, privilegiando-se o espaço urbano, isto é, a grande cidade.

[2] Como exemplo deste tipo de texto, podemos citar Estação Carandiru, de Drauzio Varella e Cidade de Deus, de Paulo Lins.

[3] “Excluamos de nosso passeio toda a idéia de ordem ou sistema: regular os nossos passos, impor-nos uma direção e um caminho seria um erro lamentável (...).”

[4] De acordo com Giddens, desencaixe é o deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço. (GIDDEN, 1991: 29).

 

...........................................................................................................................................................

Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos