A FENOMENOLOGIA DO TRÁGICO NO FOLHETIM
UMA LÁGRIMA DE MULHER, DE ALUÍSIO AZEVEDO

Patrícia Alves Carvalho

 

Amor, invencível Amor, tu que subjugas os mais poderosos; tu que repousas nas faces mimosas das virgens; tu que reinas, tanto na vastidão dos mares, como na humilde cabana do pastor; nem os deuses imortais, nem os homens de vida transitória podem fugir a teus golpes; e, quem for por ti ferido, perde o uso da razão!

(Antígona. 30 estásimo: Hino a Eros. v.781-800).

 

Sempre presente nas histórias literárias como um dos nossos mais importantes escritores realistas da virada do século XIX, Aluísio Azevedo (1857-1913) escrevia em várias direções, apresentando, ao contrário do que a princípio se poderia imaginar, uma produção literária bastante diversificada. Além das obras que permanecem como marcos do Naturalismo literário — O Mulato (1881), Casa de Pensão (1884), O Cortiço (1890) —, onde hipóteses sociológicas, biológicas ou políticas são desenvolvidas e ilustradas com enorme profusão de detalhes realistas-científicos, Aluísio Azevedo escreveu, dentre outras produções, o romance romântico Uma lágrima de mulher[1] (1879) e romances-folhetins.

Uma lágrima de mulher, seu primeiro romance, insere-se no rol dos romances do autor escritos “ao correr da pena,” satisfazendo a um público ávido por “obras de fingimento,” repletos de aventuras fantasiosas e sentimentais, que lhe asseguravam a sobrevivência econômica. Aluísio foi um dos raros escritores que conseguiram, ainda que precariamente, viver à custa de sua pena. Esta situação é denunciada em correspondências, bem como nas crônicas que escreveu: “escrever, tem sido aqui no Rio de Janeiro a minha grilheta, muito pesada e bem pouco lucrativa, do qual livro pulsos e tornozelo sempre que posso.” [2]

Segundo Olavo Bilac (MÉRIEN, 1988: 197), o romance Uma lágrima de mulher, de romanticismo exacerbado, totalmente contrário às teorias naturalistas que Aluísio defendia publicamente no mesmo período[3], foi escrito não em 1879, mas em 1874, antes da primeira viagem do autor ao Rio de Janeiro, e conseqüentemente antes de sua adesão às idéias naturalistas. O romance teria sido publicado apenas pelo fato de Aluísio passar por algumas dificuldades financeiras, num período em que seu trabalho de pintor e jornalista lhe rendia poucos recursos.

O objetivo era atender as necessidades de divertimento e a expectativa do público que ansiava pela confirmação de arquétipos e valores da sociedade vigente. Seu açucarado romance inaugural, de filosofia “rousseauista”, apresenta uma visão estereotipada da vida, tem estilo simples e acessível às leitoras ávidas de intrigas e sobressaltos. Inflacionado de clichês, o romance segue a tradição dos romances-folhetins franceses lançados por Eugène Sue, Ponson du Terrail e Montépin. Com aspecto melodramático e discurso sentimentalista, o romance funde suas tendências trágicas e sentimentais, evidenciando um fascínio pelas situações dramáticas e apaixonantes. Apela-se ao trágico a fim de acentuar o peso do suspense e da carga emotiva que se pretende passar ao leitor.

O romance, de intriga simples, é recheado de episódios inverossímeis cenas imprevistas e patéticas. Os personagens divididos a priori entre anjos e demônios, heróis e vilões são tipificados, de psicologia maniqueísta. As situações, na sua maioria, e os cenários descritos são teatrais. Há sempre um ambiente de noite tempestuoso cheio de relâmpagos e trovões, revelando certa atração pelo fantástico, pelo nebuloso. Reiterando velhas fórmulas repletas de vinganças, lutas, estados febris, acentuados por expressões exageradas, e por uma pontuação expressiva, Uma lágrima de mulher apresenta o que R. Mulinacci (apud Finazzi-Agrò e Vecchio: 2004) denomina “fagocitação romanesca da forma trágica”.

Na contemporaneidade, não sendo a tragédia clássica mais possível, o romance, de complexidade análoga, constitui-se como uma forma de apreensão do trágico fora da tragédia. Por meio de mudanças estruturais, o romance reoperacionaliza o trágico. O herói trágico passa a herói burguês, a forma aristocrática da tragédia é substituída pela forma burguesa do romance, onde tudo se encontra fragmentado, e há sempre a possibilidade de superação da crise. De acordo com R. Mulinacci (apud Finazzi-Agrò e Vecchio: 2004), o romance, sem abandonar os conflitos dramáticos, os neutraliza evitando à radicalização das antinomias da tragédia. A tragédia é, então, canibalizada, fagocitada e o romance se apresenta como uma forma de atualização do trágico.

Ainda segundo R. Mulinacci (apud Finazzi-Agrò e Vecchio: 2004), não há no drama romântico uma dimensão dita cultual, uma oportunidade de autoconhecimento. Conforme mencionamos, em Uma lágrima de mulher, os personagens e sua forma de ver a vida não apresentam nenhuma complexidade. A consciência trágica, em moldes romanescos, é degradada, e o que se apresenta ao longo da narrativa, em forma residual, são subprodutos do trágico[4]. O espaço do trágico se modifica e o que se observa no romance romântico é apenas um simulacro da tragédia. Em Uma lágrima de mulher, o trágico, enquanto substância e recurso suplementar na elaboração do híbrido discurso romanesco, é freqüentemente banalizado como simples sinônimo e epifenômeno do sofrimento.

Através do levantamento do sistema de seqüencialidade dos fatos (“systasis pragmáton”), do mapeamento das ações pode-se conhecer a regra narratológica do romance, sua lógica interna, apreendendo assim, o trágico. É a partir da análise estética do enredo poético (“mythos”), da ressonância de sua organização causal, que a densidade trágica do romance é revelada. Acentuado etapa por etapa do enredo, o trágico atinge seu ápice, no caso do romance em questão, com a morte do herói, na última cena. O trágico se encontra disseminado ao longo do discurso narrativo, por meio dos clichês que auxiliam na caracterização de Uma lágrima de mulher, a começar pelo título, como um romance romântico piegas e ultramelódico. É exatamente a partir de uma ressonância da seqüência narrativa e da descrição dos artifícios narratológicos presentes neste romance, de pura inspiração comercial, que pretendemos evidenciar o trágico como recurso suplementar na elaboração do discurso romanesco.

Por ser um romance pouco conhecido, parece-nos útil à apresentação de um breve resumo. Dividido em três episódios, o romance desenrola sua narrativa entre os anos de 1836-1844. Na ilha de Lipari, vive o austero pescador Maffei na companhia da filha Rosalina e da religiosa ama Ângela, em uma casinha branca entre os rochedos. Durante a viagem de Maffei à Nápoles, a fim de tentar fortuna, Miguel, um jovem e pobre músico, que tinha como única companheira uma rabeca, se apaixona por Rosalina. Em pouco tempo, a agradável presença de Miguel se torna costumeira na casa do velho pescador.

Dois anos depois de sua partida, o pescador retorna rico e mais ambicioso. Como o seu retorno, a felicidade do jovem casal se esvai. Saudosa da presença do amado, que desde a volta de Maffei permanecia ausente, Rosalina decide contar ao pai que tem um namorado. Diante da revelação, Maffei, completamente transtornado, e ares de fera, proíbe os encontros da filha com o músico e anuncia a partida da família para Nápoles, onde a bela jovem poderia fazer um bom casamento. Em seu encontro de despedida, o casal é surpreendido pela trágica aparição de Maffei, que obriga Miguel, com Rosalina nos braços, a segui-lo até a extremidade de um penhasco. Após uma luta violenta, o infeliz rapaz é jogado ao mar. O pescador, então, parte com a família para Nápoles.

Inicia-se a segunda parte do romance. Decorridos alguns anos do episódio do despenhadeiro, Maffei está mais rico. Sob a influência de um meio social nocivo, Rosalina, antes ingênua e meiga, é agora uma moça vaidosa, promíscua e dissimulada.

(...) Rosalina transformava-se de dia para dia. Já não dava mais a pálida idéia da antiga camponesa, formosa e louça, cheia de singela ternura, amante e amada, mulher na idade, criança na inocência. (Azevedo, 2001: 67)

Ainda na segunda parte do romance, há um corte na narrativa que retorna ao fatídico episódio da luta no penhasco para explicar como “surpreendentemente”, Miguel se salvou ao cair no mar. Esclarecido o salvamento, o romance prossegue apresentando o jovem músico como preceptor em uma família que muito o admira.

Tinha por conseguinte o artista todos os elementos de uma felicidade relativa – teto, cuidados e estima, agora possuía por bem dizer família; entanto, tristeza contínua e carregada pesava-lhe deveras sobre o coração como a garra negra de um abutre. (AZEVEDO, 2001: 89)

Diante de tamanha angústia, o artista decide retornar a casinha branca a fim de descobrir o paradeiro de Rosalina. Nas redondezas da choupana, o músico encontra um antigo pescador da região conhecido como Sombra da Noite, uma figura de aparência estranha, a quem atribuíam todo tipo de feitiçarias e malefícios. Amigo de Maffei, Sombra da Noite oferece algumas informações sobre Rosalina, e Miguel decide partir ao encontro da amada.

A terceira e última parte do romance narra o reencontro das personagens. Ao chegar à Nápoles, Miguel escreve um bilhete à Rosalina, marcando um encontro. Ao rever a amada, o artista reitera suas juras de amor. Rosalina, todavia, não demonstra nenhum interesse em reviver o amor adolescente. Em um discurso dissimulado diz a Miguel que também o ama, não podendo, entretanto, contrariar as ordens do pai. Disposto a tudo para viver seu grande amor, o músico vinga-se de Maffei matando-o com as próprias mãos, configurando uma das cenas trágicas do romance.

Rapidamente recuperada da morte do pai, a jovem assume noivado com um visconde. Julgando ter eliminado o único obstáculo a sua felicidade, Miguel vai novamente ao encontro da amada. A jovem por sua vez, com a única intenção de livrar-se do pobre músico, mente dizendo-lhe que bebeu veneno. Depois de algum tempo, ela chama por Miguel, que não responde. Miguel, por amor morre em função da pseudomorte da amada. A moça, então, chora, arrependida. O herói perdidamente apaixonado por uma mulher pérfida e ingrata, tem um fim trágico, motivado pelo incomensurável amor a ela dedicado.

A análise estética da systasis pragmáton permite a identificação de ao menos seis cenas de maior densidade dramática, nas quais o trágico se destaca. São elas, como a denominamos: a cena da revelação (cap. IX, I parte), o flagra (cap. XIV e XV, I parte), o calvário (cap. XV, I parte), a luta (cap. XVII, I parte), a morte de Maffei (cap. XI, III parte) e morte do herói (cap. XIV, III parte). Conforme nitidamente se observam, as cenas foram citadas respeitando a seqüência narrativa do romance, uma vez que, conforme já salientamos, o trágico segue um percurso contínuo e progressivo ao longo desta narrativa. Ele se encontra igualmente disseminado por todo o discurso romanesco, uma vez que é exatamente neste contar que a situação trágica se apresenta mimeticamente.

A descrição estereotipada das personagens, feita logo no início do romance, é um dos principais elementos que contribuem para o fenômeno trágico[5] neste romance. A cena do calvário, por exemplo, tem seu teor trágico acentuado, dentre outros elementos, pela descrição de Miguel como um homem de sensibilidade extrema, voltado para o ideal e a perfeição. O destino trágico que sobre ele se abate, ressalta a excepcional grandeza de seu sofrimento, tornando-o superior a todos os outros personagens.

Ao iniciar a leitura da cena da revelação, tal como a denominamos, na qual Rosalina revela ao pai que tem o pobre músico como namorado, o leitor sabe que Maffei por ser um homem perverso e ambicioso, jamais permitirá o namoro da única filha com um Lazzarone[6]. Maffei se recusa a aceitar a idéia de casar a filha com um órfão, filho de um pai bêbado, acusado de assassino[7].

Teodoro Rizio, (...) viveu para vergonha sua e da família. Era devasso e encontrado constantemente bêbado pelos alpendres; foi acusado de assassino e morreu preso numa prisão (...). Sua desgraçada mulher não o sobreviveu por muito tempo, morrendo pouco a pouco depois, de tísica, dizem uns, de miséria, dizem outros; de vergonha, digo eu.Ficou desses desgraçados um filho; não sei se herdou do pai todos os vícios (...) (AZEVEDO, 2001: 54).

O desfecho da cena é totalmente previsível, e o trágico se manifesta por meio de circunstâncias contrastantes. A descrição da felicidade compartilhada pelo jovem casal na ausência do pescador se opõe à tristeza disseminada pelo seu retorno (“À monotonia bondosa da casinha branca sucedeu a tristeza, espécie de pavor, que cerca o homem de má catadura.” (AZEVEDO, 2003: 38), assim como o discurso apaixonado do jovem casal contrasta com a tenebrosa imagem de Maffei e seu aterrorizante tom de voz ao proibir o namoro da filha. É a partir da fusão de dados oferecidos ao leitor, antes ou no decorrer da cena, que o trágico se revela.

O capítulo XIV, da parte I do romance narra, permeado por juras de amor, o mais encontro romântico entre Miguel e Rosalina. Estão presentes o discurso apaixonado ultramelódico (“Tu és a estrela que me guia ao futuro, o cajado que me ampara na vida, a luz que me dá crenças e a crença que me dá forças.” (AZEVEDO, 2003: 48)) e a mais clássica cena de reencontro de um casal apaixonado.

Assim que o divisou, deitou a correr francamente para ele com os braços abertos. Mais parecia descer voando que correndo (...).Era aquilo um descer vertiginoso e quase fantástico (...). Miguel correu ao encontro de Rosalina, recebendo-a em cheio nos braços. (AZEVEDO, 2003: 48)

É o choque abrupto entre a atmosfera docemente romântica do início da cena, plena de clichês, com o seu desfecho, o principal responsável pelo desencadear do fenômeno trágico. O foco vermelho da lanterna que interrompe subitamente o beijo dos amantes, caracteriza a mudança da narrativa (“Súbito, um jato de luz vermelha inundou rápido o grupo abraçado dos dois amantes.” (AZEVEDO, 2003: 49)). Momentaneamente, todo discurso romântico é posto de lado, cedendo lugar ao suspense que se instala a partir da dúvida do leitor, a quem ainda não foi revelada a identidade do portador da misteriosa lanterna. Entram em cena o senso de mistério e o fantástico, corroborados pela alusão feita à imagem de satanás, portando auréola igualmente avermelhada (“Se satanás existe, deve ser dessa cor a sua auréola.” (AZEVEDO, 2003: 49).

Rosalina, perante assombroso flagrante, grita horrorizada e desmaia nos braços amorosos de Miguel, que a seu turno permanecia imóvel, “tendo nos braços uma mulher bela e pálida, de uma beleza e de uma palidez de mármore”(AZEVEDO, 2003: 49). Assim o capítulo se encerra, mantendo o suspense como gancho para a cena seguinte. No encadeamento da narrativa, que passa da cena de amor à de suspense e mistério, o trágico se instala.

Na cena subseqüente, o leitor mais ingênuo tem, então, uma “grande surpresa”. O portador da lanterna a flagrar o couple amoureux era “surpreendentemente” Maffei, o pai da donzela apaixonada. “A cinco passos de distância, de pé (...) sustentando uma machadinha (...), estava do alto Maffei, pálido de raiva, com a boca cerrada a salivar bile. (...) Estava medonho” (AZEVEDO, 2003: 49).

O mistério paira sobre a narrativa que tem como cenário um ambiente tenebroso (“a atmosfera começava a se fazer carregada e pouco a pouco escondera a lua” (AZEVEDO, 2003: 49)). A imponente e maquiavélica figura de Maffei contribui para o tom frio e áspero da cena. Ele ordena ao jovem músico, que o acompanhe até o alto da colina. Inicia-se, a partir de então, o calvário do artista. Com a amada em seus braços, Miguel segue o velho pescador que marchava adiante, iluminando o caminho. Gradualmente, o foco da lanterna amortecia, e o negrume da noite se intensificou. Miguel sentia-se exausto, a íngreme ladeira parecia exaurir suas forças. A criatura amada era naquela subida sua cruz, e por ela o herói resistia bravamente. Seu corpo respondia àquele esforço incomensurável com dores, suores, vertigens. Contudo, o bom samaritano mantinha-se de pé, fidedigno ao seu amor por Rosalina.

O suor jorrava em bagas da fronte do moço; as pernas tremiam-lhe; a vista perturbava-se; a língua seca; o coração doído; a cabeça perdida; a respiração cada vez mais demorada e mais forte. O corpo de Rosalina parecia de chumbo; o cansaço fizera dele um corpo de gigante. Ora desanimava, ora reagia; as forças iam e vinham. Era um vaivém de agonias. (AZEVEDO, 2003: 51)

Ao faltar-lhe o ânimo para prosseguir, o herói se dirige aos céus. O discurso ganha traços religiosos, que confirmam a caracterização desta difícil escalada como um calvário. A peregrinação, compreendida como reflexo da idéia cristã de que é preciso sofrer para atingir a glória, estando diretamente associada à purgação da culpa e à possibilidade de redenção, legitima a natureza pródiga do herói. A descrição minuciosa de tamanho sofrimento e dor atua essencialmente na composição trágica da cena. Atinge-se a catarse na compaixão do leitor pelo herói. Miguel, assim como o herói trágico, é um personagem combatido. Todavia, este combate está presente não só ao nível do confronto entre os elementos constituintes da trama, mas também no plano físico, como se observa na sua luta corporal com Maffei.

O confronto físico entre os dois inimigos ocupa todo o capítulo XVII, encerrando a primeira parte do romance. Nesta cena, a natureza se torna, especialmente, um elemento importante para a manifestação do trágico de uma forma contínua e mais intensa que nas seqüências anteriores. Ponteando toda a narrativa, a natureza atua na elaboração do aspecto sombrio da cena. Ela inicia e conclui o capítulo, antecipando o teor das ações dramáticas. Como em todo folhetim que se preze, a natureza personifica sentimentos e a tempestade comparece pontualmente nos momentos de violência e desastre.

A descrição do cenário que abre a narrativa (“Entretanto as nuvens negras cresciam no céu (...)” (AZEVEDO, 2003: 57).), nos oferece pista segura de que a luta entre Maffei e Miguel será violenta. Ao final da luta, que culmina com a queda de Miguel do alto do penhasco, a natureza mais uma vez entra em ação, fechando a cena trágica: “A tempestade, que se prepara ameaçadora, desabou encerrando o espetáculo; e o mar, contente de sua presa gargalhou com seu rir de espumas” (AZEVEDO, 2003: 59).

O conjunto lexical empregado durante todo o capítulo se insere no campo semântico do terror (“vulto”, “fera”, “cólera”, “monstro”, “boca espumosa”, “nuvem negra”, “tigre”, “grito agudo”, “velho mau”...) e a própria imagem dos dois inimigos abalroando-se é comparada a um “monstro marinho fora d’água” (AZEVEDO, 2003: 57). É pertinente ressaltar que alguns capítulos antes, todo penhasco havia sido minuciosamente descrito como um cenário aterrorizante e ameaçador (“A rocha ficava a pique sobre o mar, um precipício medonho!” (AZEVEDO, 2003: 42). A natureza ao atuar na elaboração do cenário sombrio, contribui conseqüentemente para a manifestação do trágico ao longo de toda seqüência narrativa. Da mesma forma, o capítulo anterior, ao confirmar a integridade moral do herói, acentua o tom trágico da cena. Miguel, o honrado herói, que não aceita dinheiro de Maffei para se afastar de seu grande amor, mais uma vez nos desperta compaixão ao tombar no mar e supostamente morrer, depois de atroz e violento combate.

O elemento fantástico, místico, constitui-se como um dos fundamentais caracteres do romance. Em diversos momentos, torna-se expressiva a atração da narrativa pelo nebuloso, pelo gótico. O jovem casal, acompanhado por Ângela, por exemplo, tinha como hábito, ao longo da noite, ler contos fantásticos. Da mesma forma, a figura de Sombra da Noite, personagem de imagem aterrorizante, expressão simbólica do terror, corrobora o gosto pelo horror. Há ainda o falso envenenamento de Rosalina, a vingança de Miguel e a maldição da mansão do pescador em Nápoles, erguida sobre as ruínas de um antigo convento de frades. A tradição maldita do lugar antecipa a tragédia que ali iria se passar.

Neste chão (...) há sangue mau de frades (...). (...) à meia-noite, os diabos dos frades levantavam-se das sepulturas e iam, rezando, rezando... agarrar-se à cruz, e cada um a puxa para o seu lado por penitenciar os seus pecados. Há uma força que a prende a este chão amaldiçoado. (AZEVEDO, 2003: 122)

Os pesadelos de Maffei sendo torturado por Miguel, além de se constituírem como mais um traço fantástico, refletem toda culpabilidade do pescador “(...) durante o sono temia-o covardemente, e deixava-se bater por ele (...). (...) confessando as próprias culpas e reconhecendo a razão da parte do adversário” (AZEVEDO, 2003: 67)). O sonho é aqui também uma espécie de antecipação, predição dos acontecimentos da narrativa.

Nos capítulos finais do romance, o que até então se limitava ao universo onírico, se torna real. Miguel mata Maffei como uma fera que captura uma desejada presa. Também nesta seqüência, de forte carga dramática, o trágico exala do encadeamento narrativo. Ao contrário do que ocorre no primeiro confronto entre os inimigos, Maffei é agora a vítima e treme de medo, ao passo que o músico é o grande vencedor, o predador saciado. Sua fria vingança é gloriosa, uma vez que a morte do inimigo provém de suas mãos, neste episódio, transmutadas em afiadas garras. Certo do fim do inimigo, num gesto essencialmente vingativo, Miguel o humilha, escarrando-lhe o rosto e empurrando-lhe o corpo moribundo com o pé.

O fato de o jovem artista cometer horrendo crime por acreditar que está se livrando do único empecilho a sua felicidade “(...) És o único obstáculo de minha ventura! És a minha asa negra o meu pesadelo! A minha desgraça!, o meu ódio! O meu crime!” (AZEVEDO, 2003: 137), sem nem sequer imaginar que é levianamente ludibriado por seu grande amor, contribui imensamente para a tragicidade da cena.

(...) o sorrir cadavérico de Miguel derramava-se como um filtro de ironias pelos membros lassos do velho e o fazia estremecer; era um sorrir trágico de caveira a fitá-lo com os dentes ameaçadores e ferozes. (...). Miguel (...) rápido abarcara-lhe o pescoço, encravando-lhe pelas carnes as unhas doidas e assanhadas.(...). o cadáver do antigo pescador caiu-lhe pesado e retorcido aos pés (...). (AZEVEDO, 2003: 137. Grifo nosso).

É na cena final do romance que o trágico revela toda sua intensidade. Toda narrativa contribui para a fenomenologia do trágico nesta cena que sela o último encontro entre Rosalina e Miguel. Guiado por um estúpido e indelével amor, o artista vai ao encontro da amada que o engana dizendo estar pobre e doente. Buscando livrar-se daquela inconveniente presença, a jovem declara que ingeriu veneno e simula um desmaio. Totalmente envolvido pelo discurso inescrupuloso e pela atuação teatral de Rosalina, o herói morre de tristeza por acreditar que a amada está morta.

Então uma lágrima cristalina e santa, desprendendo-se do coração, rolou pura pelas faces da mulher. Chorou pela primeira vez!

Aquela lágrima valia o poema inteiro da sua existência! Era o transunto do seu arrependimento! Era o perdão dos seus crimes! Chorou! Chorou uma lágrima de mulher, e por isso que vinha de deus!

Rosalina amou pela primeira vez – aquele cadáver. (AZEVEDO, 2003: 148)

É tragicamente a mulher a quem tanto amou a única responsável pela sua morte. Miguel morre por amor e dialeticamente, só é amado por estar morto. Por pura ironia, só a morte foi capaz de sensibilizar o coração de Rosalina e despertar o amor por Miguel. Como podemos constatar na última frase do romance, a morte, ao contrário, não caracteriza aqui o fim do amor, mas o seu nascimento.

Motivado pela obrigação de agradar o público leitor, composto na sua maioria por mulheres, Aluísio Azevedo redime Rosalina nas últimas linhas do romance. Ao atribuir a lágrima que escorre dos olhos da jovem os adjetivos cristalina e santa, o autor busca enfatizar toda sinceridade de seu arrependimento. Caracteriza-se a teoria do bom selvagem de Rousseau: os homens nascem puros; a sociedade corrompe-os, mas é possível a redenção, exatamente como ocorre com Rosalina. Ao ver Miguel morto, ela chora, arrependida, em reconhecimento a sua culpabilidade. Segundo o velho e sábio Tirésias em fala dirigida a Creonte, em Antígona: “o erro é comum entre os homens, mas quando aquele que é sensato comete uma falta, é feliz quando pode reparar o mal que praticou, e não permanece renitente” (SÓFOCLES. Antígona. 5° episódio (v. 988-1114).

O levantamento da systasis pragmáton e a análise individual das seis cenas de maior conteúdo dramático, por nós destacadas, nos permite constatar que em Uma lágrima de mulher, o trágico nem de longe apresenta a mesma complexidade e profundidade que identificamos na tragédia Ática. A narrativa simplória, dotada de exagerados caracteres românticos, adequada ao público leitor, não comporta preocupações, questionamentos filosóficos sobre a vida e veleidades do pensamento crítico. Os personagens, por exemplo, de traços maniqueístas estão distantes da busca pelo gnôthi sauton (conhece-te a ti mesmo), comuns nas tragédias de Ésquilo. Não há, dessa forma, a possibilidade de cotejar a matéria trágica destas produções literárias tão díspares. Em Uma lágrima de mulher não tratamos do trágico enquanto categoria estética ou princípio filosófico, mas sim de uma simples rasura (LOURENÇO, 2001: 197), que neste caso se confunde ao melodrama (com desgraças, acidentes, expressões exageradas...), resumindo-se tão somente ao sofrimento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Aluísio. Uma lágrima de mulher. São Paulo: Martin Claret, 2003.

BRANDÃO, Juanito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 2001.

COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Distribuidora de Livros Escolares, 1972.

LESKY, Albin. A Tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1970.

LOURENÇO, Eduardo. Da literatura brasileira como rasura do trágico. In: –––. A Nau de Ícaro. São Paulo: Cia. das letras, 2001, p. 197-206.

MENEZES, Raimundo de. Aluísio Azevedo, uma vida de romance. São Paulo: Martins, 1958.

MÉRIAN, Jean Yves. Aluísio Azevedo, vida e obra (1857-1913); o verdadeiro Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.

MEYER, Marlyse. O romance-folhetim atravessa os mares. In: –––. Folhetim uma história. São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p. 281- 318.

MULINACCI, Roberto. No encalço do trágico. A tragédia, o romance e os paradoxos da modernidade. In: FINAZZI-AGRÒ, Ettore e VECCHI, Roberto (orgs.). Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil. São Paulo: Unimarco, 2004, p. 161-174.

SÓFOCLES. Antígona. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

STERZI, Eduardo. Formas residuais do trágico. Alguns apontamentos. In: FINAZZI-AGRÒ, Ettore e VECCHI, Roberto (orgs.). Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil. São Paulo: Unimarco, 2004, p. 103-111.

SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.


 


 

[1] Parece-nos pertinente esclarecer que apesar de nos referirmos a Uma lágrima de mulher como folhetim, o romance foi publicado pela primeira vez já na íntegra, em meados de abril de 1879, vendido na sede do “Diário do Maranhão”, tendo tiragem de apenas 1000 exemplares. O termo folhetim, por nós adotado, deve-se ao fato do romance apresentar características muito semelhantes aos romances-folhetins produzidos no século XIX.

[2] Carta escrita a Eduardo Ribeiro, de 1 de janeiro de 1896. In: COUTINHO, 1972: 45.

[3] “A arte abraçou-se finalmente à ciência. (...) hoje ela tem um fim mais nobre e um interesse mais real: fez-se um órgão, propõem-se teses, critica, delibera; e julga-se com todo o direito, um instrumento de progresso (...).” Trecho de um artigo publicado por Aluísio um mês antes da publicação de seu primeiro romance. In: MÉRIEN, 1988: 195.

[4] No caso da literatura brasileira é preciso ainda destacar, segundo Eduardo Lourenço seu caráter antitrágico. De acordo com o crítico, o déficit da cultura trágica no Brasil, explicaria o domínio do romance em nossa literatura. In: LOURENÇO, 1999: 193-201.

[5] Referimo-nos aqui, conforme já dissemos, ao trágico, sobretudo, como epifenômeno do sofrimento.

[6] Nome pelo qual Maffei se refere a Miguel ao longo do romance. Lazzarone: Mendigo de Nápoles, ocioso, vadio.

[7] Vê-se que a harmatía no guénos está aqui caracterizada. Como membro de um guénos (grupo familiar), o indivíduo é sempre co-responsável pelo agir do outro, ou seja, o erro de um recai sobre todos indistintamente. Ainda que por motivos distintos, Maffei repudia Miguel como Creonte em Antígona, rejeita a jovem descendente do ramo dos Labdácias como noiva de seu filho Hémon.

 

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