A LÍNGUA PORTUGUESA NA 'BELLE ÉPOQUE'
LIMA BARRETO E SUA CRÍTICA

Lúcia Maria de Assis (USP e UBM)

No dizer de Orlandi (2001), vinculam-se os estudos da linguagem a assuntos relevantes da história e da constituição de determinada sociedade na tentativa de compreender o imaginário social que se constitui ao longo dessa história, chegando à identificação lingüístico-cultural de um povo. Sendo assim, situando-se na área de História das Idéias Lingüísticas, neste trabalho pretende-se observar de que forma Lima Barreto inaugura um novo pensamento a respeito da utilização da língua portuguesa no Brasil da Primeira República.

Sabe-se que o escritor, um pré-modernista, não concordava com a maneira como a língua era empregada pelos literatos da época, pois, dizia ele, era dirigida à elite. Tratava-se, então, de mais uma manifestação de preconceito. Por isso, denunciou, em sua obra, a artificialidade da linguagem literária, afirmando que aquela não era a língua que representava o Brasil e o povo brasileiro.

Para melhor analisar as denúncias barretianas, compete-nos, primeiramente, observar o cenário em que elas ocorriam. Sendo assim, procede-se a uma descrição dessa fase histórica do Brasil, o início da República, momento em que a nação sai do regime monárquico e tenta enquadrar-se ao modelo republicano. É exatamente nessa época que efervesce, num Brasil carente de modernização, a belle époque, uma cópia dos modelos europeus que se reflete nos usos e costumes da elite brasileira e, por conseqüência, também na língua.

Durante a Primeira República muitas modificações ocorreram na cidade do Rio de Janeiro.

Transformações de natureza econômica, social, política e cultural, que gestavam há algum tempo, precipitaram-se com a mudança do regime político e lançaram a capital em febril agitação, que só começaria a ceder ao final da década. (Carvalho, 1997: 15).

Nessa época, pela primeira vez, grande parte dos fluminenses foi envolvida nos problemas do país, o que caracterizava a nova e ampliada consciência do povo em relação aos problemas da pátria.

Na política, os problemas também existiam; havia grandes expectativas de que aqueles que antes estavam alijados pudessem participar das decisões e do futuro do seu país. Parafraseando Carvalho (1997: 22), é correto afirmar que, por quase uma década,

O Rio seria a arena em que os destinos nacionais se decidiriam. Por isso, acontecimentos banais assumiam importância desmedida em função da ressonância produzida pela situação privilegiada em que se achava a cidade.

Também no mundo das idéias houve conseqüências advindas da Proclamação: os intelectuais de classe média e os artesãos qualificados, como os gráficos, viram sua possibilidade de intervir na política através de propostas de natureza socialista. Para isso, lançaram jornais de propaganda e tentaram formar organizações que pudessem traduzir em ação concreta seus princípios. Tudo porque acreditavam na possibilidade de democratizar a República. Já entre as elites, houve uma repentina vitória do espírito capitalista sem a ética protestante. Todos queriam se tornar mais ricos sem medir esforços e sem pensar nas conseqüências.

Além disso, a população pobre era marginalizada e excluída do sistema, pois, sem ela, de acordo com Needell (1993), seria possível fazer do Rio o cartão-postal da República, o qual seguiria o modelo e as fórmulas européias, em especial a parisiense, transformando-se num Rio reformado, que tentava mostrar um Brasil branco, europeizado, civilizado. Isso fez com que Lima Barreto assim se manifestasse em relação ao preconceito:

[...] o que é verdade na raça humana, não é extensivo ao preto; eu mulato, ou negro, como queiram, estou condenado a ser sempre tratado por contínuo. Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto e ele far-me-á grande. (Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha)

Esse preconceito fez com que o regime republicano não fosse bem acolhido por todos uma vez que não era para todos. Como se disse, reprimiam-se os pobres, os capoeiras, os negros, que, por isso, eram saudosistas do período monárquico. Assim, Lima Barreto, literato nascido nos últimos anos da monarquia e neto de escravos, alimentava uma ojeriza pela República.

Criticou, então, as instituições brasileiras, a discriminação do negro e do pobre, o apego ao tradicionalismo, a valorização do capitalismo e a linguagem dos literatos, pois via nela um instrumento de reforço dos preconceitos e do afastamento dos menos favorecidos, uma vez que era moldada pela elite e mascaradora da realidade. De acordo com Prado (1976: 18), ele questionava “em que nível situar a linguagem, como libertá-la das condições impostas pelos modelos consagrados, como transformá-la em instrumento capaz de aproximar-se historicamente da realidade em mudança”.

Encontrava-se, então, nesse literato, a preocupação em denunciar o falseamento da realidade provocado pela linguagem. É com esse pensamento que surge sua primeira reação aos acadêmicos que retratavam o real por ela desfigurado, conforme nos mostra Prado:

Uma das inquietações centrais nesse autor: o problema da linguagem. A partir das notas e registros do DIÁRIO, é possível constatar em que medida a preocupação com a linguagem levam não apenas à resistência antecipada contra a permanência do velho estilo, como também anunciam o mecanismo ideológico responsável pela conversão do academismo em expressão da nova realidade. (Prado, 1976: 12)

Dessa forma, a obra de Lima Barreto coincide, a meia distância, com uma tensão que se revelou bem mais aguda: a da permanência do velho estilo como expressão da nova realidade. Lembremos que essa persistência coincide também com a permanência das velhas estruturas nos principais setores da vida brasileira.

Como já se afirmou, as fórmulas impostas pelo espírito da Belle Époque, refletiam-se também no uso da língua. Com isso houve nela a inserção de diversos galicismos e, por conseqüência, estrangeirismos de uma forma geral.

Por outro lado, essa mesma apologia fez também surgir o preciosismo, a preocupação com a perfeição lingüística, gerando um forte movimento purista. De acordo com Leite (1999), na língua, esse movimento se define como a escolha de um modelo específico de falar e escrever, no qual se traduza o cuidado excessivo no trato da língua, configurando uma preocupação com a pureza da linguagem. Na prática, essa força de preservação pretendia valorizar o modelo lingüístico utilizado por pessoas que possuíam maior prestígio sócio- político-econômico.

Lima Barreto, tendo vivido os dois regimes políticos, era uma voz que clamava por uma identidade brasileira e por igualdade entre os cidadãos, independente de raça, crença e classe social, o que, para ele, começaria pelo uso lingüístico. Sendo assim, sua obra colaborou para a construção de um novo pensamento lingüístico e literário no Brasil, o que, mais tarde, classificou-o como um pré-modernista. Ele rompe de vez com o conservadorismo na literatura, nas artes e na utilização da língua, denunciando a artificialidade presente na literatura brasileira, que empregava a genuína norma portuguesa, característica da época imperial..

De acordo com Assis Barbosa (1975), a literatura, para Lima Barreto, deveria ser militante, com um objetivo definido, e não apenas contemplativa, falsa, sem finalidade. Por isso nela deveria ser empregada uma linguagem simples, que pudesse chegar de forma inteligível ao povo. Entretanto, isso não acontecia.

Como não se conformava com os mandarinatos literários e com o preconceito vernáculo, falava, em sua obra, contra o poder do dinheiro, da posição social, da palavra rebuscada, da sintaxe preciosa, da falta de simplicidade, das regras rígidas, diferentes da forma usada normalmente. Em síntese, defendia o emprego do português do Brasil na literatura, para que essa fosse dirigida a toda a população e não reservada aos salões freqüentados pela elite. Sendo assim, recusava-se a empregar o modelo de linguagem vigente, afirmando ser a “linguagem apurada um índice de poder constituído”. (SILVA, 1998).

Em Impressões de Leitura, o literato justifica sua opinião e sua opção quanto ao modo de escrever, o qual era duramente criticado:

Seria melhor que me dirigisse ao maior número possível, com auxílio de livros singelos, ao alcance das inteligências médias, com uma instrução geral, de que gastar tempo com obras só capazes de serem entendidas por sabichões enfatuados na sua inteligência, pelas tradições de escolas e academias e por preconceitos livrescos e de autoridade. (Lima Barreto, Impressões de Leitura)

No romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, também se pode observar a figurativização da crítica às normas artificiais do emprego da língua e sua ineficiência. Com essa intenção, Lima Barreto cria o “gramática” Lobo, homem que tratava a língua como uma entidade divina que deveria ser cultuada.. No trecho que segue, reproduz-se um diálogo entre Lobo e o doutor Loberant, dono do jornal O Globo. Loberant, nervoso com a constante concorrência com O Jornal do Brasil, atribui a culpa à linguagem empregada em seu jornal, muito rebuscada:

Não quero mais gramática, nem literatura aqui!... Nada! Nada! De lado essas porcarias todas... Coisa para o povo, é que eu quero!

– Mas doutor, a língua é uma coisa sagrada. O culto da língua é um pouco o culto da pátria. Então o senhor quer que o seu jornal contribua para a corrupção deste lindo idioma de Barros e Vieira...

– Qual Barros, qual Vieira! Isto é brasileiro - coisa muito diversa!

– Brasileiro, doutor! Falou mansamente o gramática. Isto que se fala aqui não é língua, não é nada: é um vazadouro de imundície. Se Frei Luís de Sousa ressuscitasse, não reconheceria a sua bela língua nessa amálgama, nessa mistura diabólica de galicismos, africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, cacotenias, hiatos, colisões... Um inferno! Ah, doutor! Não se esqueça disto: os romanos desapareceram, mas a sua língua ainda é estudada... (Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha)

Como se pode observar, Lobo, purista por convicção, defende o emprego da língua vernacular, mesmo que este contraste com a linguagem que o povo fala, que o povo entende, que o povo compra. Tal passagem revela a preocupação de Lima Barreto com uma linguagem que estivesse mais próxima da vida cotidiana, que fosse mais comunicativa.

CONCLUSÃO

Em resumo, pode-se afirmar que o momento de transição entre os séculos XIX e XX foi também de transição nos valores cultuados pela sociedade brasileira, conseqüência da mudança do regime monárquico para o republicano. Naquele momento, muitos preconceitos foram cristalizados, pois fazia parte do ideal da república que o país mostrasse somente as belezas, a população culta e nobre, aspectos dignos de serem apresentados aos estrangeiros. Para isso, muitas modificações ocorreram no Rio de Janeiro.

Lima Barreto, negro e pobre, representava a voz dos que não aceitavam se calar e, assim, escrevia contra a renovação dos preconceitos e a elitização da linguagem, principalmente na literatura. Como era um dissidente, não foi reconhecido, não era lido, não lhe foi atribuído valor. Dizia-se, inclusive, que era desleixado com a linguagem, que sua obra parecia ter sido escrita às pressas. Essa característica, entretanto, era sua forma de se aproximar do povo, de mostrar que aquele que se via era um falso Brasil, como ele mesmo justifica em Diário Intimo:

Veio-me a reflexão de que não era mau que andasse eu a escrever aquelas tolices. Seriam como que exercícios para bem escrever com fluidez, claro, simples, atraente, de modo a dirigir-me à maioria comum dos leitores quando tentasse a grande obra, sem nenhum aparelho rebarbativo e pedante de fraseologia especial, ou um falar abstrato que faria afastar de mim o grosso dos elegantes.

Finalmente, afirma-se que, por meio da crítica ao sistema, Lima Barreto procurou seu lugar na sociedade e acreditou que só o poderia alcançar quando a língua fosse a real representação do povo brasileiro, pois teriam sido extintos os preconceitos que fragmentam a nação. Com esse intento, nosso escritor entregou sua vida, pois, em suas palavras:

A glória das letras só as tem quem a elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega com fé cega.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.

BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: PubliFolha, 1997.

––––––. Diário Íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956.

––––––. Impressões de Leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

LEITE, Marli Quadros. Metalinguagem e discurso: a configuração do purismo brasileiro. São Paulo: Humanitas, 1999.

NEEDELL, Jeffrey. A Belle Époque Tropical. São Paulo: Brasiliense 1993.

ORLANDI, Eni Puncinelli. (org.). História das idéias Lingüísticas: Construção do Saber Metalingüístico e Constituição da Língua Nacional. Campinas: Pontes/Unemat, 2001.

PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. Rio de Janeiro: Cátedra, 1976.

SILVA, Maurício. Confrontos Lingüísticos no Pré-Modernismo Brasileiro: Lima Barreto versus Coelho Neto. Anais do III CNLF: www.filologia.org.br/cong_iiicnlf.html, 1998. Consultado em 20 de abril de 2004.

 

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