A LUZ E A PERSPECTIVA

Katja Christina Heyer (UERJ e UNISUAM)

Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? (...) É janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo (...) Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do universo? (Leonardo da Vinci)

INTRODUÇÃO

A análise do romance de Sérgio Sant’Anna – Um Crime Delicado – à luz do texto Las Meninas de Michel Foucault suscita dúvidas quanto aos pressupostos teóricos considerados por Sérgio Sant’Anna no duplo papel assumido de romancista e crítico. São levantadas questões a cerca do que é a obra de arte, o que é a ficção, qual o papel da encenação e da representação que direcionam o texto por um caminho tortuoso entre dois paradigmas diversos, envolvendo a transposição entre um sistema de base sociológica e outro de base antropológica.

Esta análise visa, portanto, ao levantamento dos paradigmas em questão e a demonstração de como a transposição de um ao outro sistema serviu como suporte para a elaboração da representação do trabalho do crítico na encenação do romance.

A ESCRITA COMO UM JOGO

Michel Foucault, no texto ‘O que é um autor?’ (Foucault, 1992) nos diz que é preciso tratar da questão do autor e, mais que isso, realça o fato de a noção de autor constituir o momento mais importante da individuação na história das idéias, dos conhecimentos, da filosofia e das ciências. Ao ressaltar estas disciplinas ele, praticamente, define um paradigma como modelo de sistema cultural. Paradigma este que vem a constituir a Teoria da Arqueologia do Saber, fundada nessas disciplinas predominantes de seus estudos sobre os séculos XVII e XVIII.

Apoiado por sua teoria Michel Foucault inicia estudos sobre o papel do autor na obra literária, que apontam para o que ele chama o desaparecimento do sujeito da escrita como fator preponderante para o surgimento da crítica que, segundo ele, deveria ultrapassar a noção da relação autor/obra, para se concentrar na análise estrutural da obra: A função da crítica não é detectar as relações da obra com o autor (...) ela deve, sim analisar a obra na sua estrutura.(MF, 1999: 13). O apagamento do autor como sujeito leva, indiretamente, ao estabelecimento da função-autor caracterizadora de um determinado discurso: Em suma, o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso. (MF, 1999: 45)

Em verdade seu questionamento direciona os estudos da crítica literária para além de uma sociologia autor/obra, direcionando seu foco de atenção à exterioridade do discurso.

A escrita de hoje se libertou do tema da expressão: só se refere a si própria (...) identifica-se com sua própria exterioridade manifesta. (MF, 1999: 35)

Desta relação interioridade-exterioridade, Michel Foucault depreende a instauração de um jogo: a escrita desdobra-se como um jogo que vai infalivelmente para além das suas regras desse modo as extravasando. (MF, 1999: 35)

Contrapondo esse texto com o texto: A Leitura de Ficção de Ricardo Piglia, poderemos avançar um pouco mais em direção à questões como a crítica, a ficção e o leitor. Se com Michel Foucault e sua Arqueologia os estudos centravam-se na relação autor/escritor, obra/crítica, com Roland Barthes (Barthes, 1996) avançamos para a questão de uma estética da recepção, onde o foco se lança sobre o leitor e a maneira como percebe a leitura. Sobre isso nos diz Piglia: cada um pode ler o que quiser num texto. (Píglia, 1994: 67); essa colocação amplia as possibilidades de leitura de diversos discursos contidos no texto, além de valorizar a figura do leitor, enquanto crítico. Se, enquanto leitores, podemos ler o que quisermos num texto, ficamos livres para fazer nossa própria crítica.

Se Roland Barthes desenvolve um método de análise estrutural da narrativa, saindo do campo da interpretação, Ricardo Piglia com sua colocação opera a dessacralização do crítico. Para ele a literatura é: “ um espaço fraturado, onde circulam diferentes vozes” (Píglia, 1994: 69), mas é também um efeito (Píglia, 1994: 69) e como tal, a literatura é o espaço onde se cruzam ficção e realidade, verdade e falsidade.

A PERSPECTIVA E O OLHAR

A literatura é uma forma discursiva de representação não mimética, no sentido Aristotélico (imitatio) da vida. O fictício é um desvio do real, uma perspectiva, levando-se em conta que realidade e verdade não são conceitos naturais, senão ‘construtos’ como nos diz Wolfgang Iser, em seu livro O Fictício e o Imaginário: uma espécie de impostura que se pretende real, um simulacro da realidade.(Iser, 1996: 25). Assim, sumariamente definidos, os dois conceitos escondem grandes conflitos como a definição de termos como real, realidade e verdade, o modo como eles evoluíram e se relacionam entre si.

A fim de simplificar a explanação, convém esclarecer que ficam de fora o conceito de mímeses e a teoria adotada por Michel Foucault que trata da separação entre o sujeito e o objeto. Numa mudança de ponto de vista lanço mão de um outro paradigma: uma visão antropológica do homem, abrangendo suas realizações e sua cultura, que é um paradigma que permite uma abrangência mais ampla, necessária à próxima etapa do trabalho, detalhada a seguir.

Adotarei como modos de representação os atos de fingir (Iser, 1996: 13) – o real, o fictício e o imaginário; tomando o sentido de real como uma construção da realidade; o fictício como um desvio do real e o imaginário como um efeito que se realiza na ficção. Essa mudança de paradigma torna-se necessária à análise do romance Um Crime Delicado de Sérgio Sant’Anna, que oscila entre os dois paradigmas citados, na tentativa de definir o que é a arte, qual o papel do crítico e como estas questões se resolvem no texto ficcional, ou seja, o crítico tematizando a ficcionalidade da ficção ou a representação da representação.

A repetição da realidade constitui uma representação, uma realização do imaginário onde o signo (que é o elemento do real), ganha contorno de simbólico por ser-lhe atribuído um significado passível de interpretação. Logo no início do romance, o personagem Antônio Martins descreve a primeira visão de Inês: na primeira vez em que a vi, ela estava sentada... para a seguir no segundo parágrafo dizer: eu me sentira atraído desde o princípio por aquilo (...) no primeiro olhar já está contido tudo.

Inês se divide entre ser ela-pessoa e aquilo-objeto, para em seguida complementar que no primeiro olhar já está contido tudo, como signo Inês é aproximada ao ícone, que é a forma que contém tudo; o próprio objeto de adoração, êxtase e provocador de prazer estético, ou seja, a própria obra de arte. Para ela é construído um cenário, um quadro num apartamento: o apartamento é um cenário para você se movimentar dentro dele. (SS, 1998: 101). Um quadro como o pintado por Vitório Brancatti, no qual Inês era a modelo e o cenário àquele no qual crítico e modelo se envolveriam.

Toda a situação desse ‘encontro amoroso’ é construída em dois níveis, um onde o personagem assume o papel de crítico de arte: Sou crítico, tal declaração, mesmo diante da gravidade de certos fatos (...) me faz rir por todas as conotações da palavra. (Sérgio Sant’Anna, 1998: 17), para na página 23 definir-se: Escrever (...) como se deveria escrever sobre um encontro...; define-se como escritor do texto narrado, ou seja, narrador-personagem. Esse acúmulo de papéis só não se completa por não assumir, também, o papel de diretor cenográfico, papel atribuído a Vitório Brancatti.

Inês define-se como modelo de um quadro, participe de uma instalação, a obra de arte violada pelo crítico, mas uma obra defeituosa, defeito materializado pela muleta – uma obra de arte de qualidade duvidosa. Num outro nível, o escritor usa a metáfora do teatro-representação-instalação como jogo para lançar dúvidas quanto ao papel do crítico na avaliação da qualidade da obra de arte. A construção desta narrativa mistura elementos de modos de representação diferentes como o postulado da visibilidade de Galileu Galilei e a metáfora dos espelhos.

O Postulado da Visibilidade de Galileu Galilei é um fundamento metafísico baseado na invenção do telescópio que estabelece relações entre o olhar, o objeto e a distância entre eles. (Iser, 1996: 122) O telescópio é um aparelho que permite a visão em perspectiva, de um determinado ângulo. A Teoria do Conhecimento lança especulações filosóficas em torno do olhar, relacionado-o ao conhecimento (Chauí, 1985: 31), de tal maneira que os olhos são as janelas da alma, ligados ao campo semântico da luz, claridade, donde por associação: clarear a vista é ensiná-la a ver os signos da escrita e da leitura ou ver é pensar pela mediação da linguagem. Por essa linha de raciocínio, o crítico é aquele que pode ver em perspectiva, de uma certa distância, de um determinado ângulo, mas é também aquele que pode tornar visível o invisível.

No texto Las Meninas Michel Foucault nos diz:

... como se o pintor não pudesse ser ao mesmo tempo visto no quadro em que está representado e ver aquele em que se aplica a representar alguma coisa. O que traça um paralelo entre o escritor do texto que é ao mesmo tempo o crítico, aquele que desnuda, desvela as estruturas do texto, ou segundo Michel Foucault: ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatíveis. (Michel Foucault, 1999: 20)

Para Michel Foucault ‘O olhar do pintor, dirigido para fora do quadro..., nesse lugar preciso mas indiferente, o que olha e o que é olhado permutam-se incessantemente”. (grifo meu). Para Sérgio Sant’Anna

– Antônio Martins: E, em dois ou três momentos, levantando os olhos mais abruptamente de meu cálice, pude jurar que estava sendo eu o observado, com a mesma obliqüidade... (Sérgio Sant’Anna, 1998: 10).

Tanto Michel Foucault, quanto Sérgio Sant’Anna realizam a visibilidade do espectador, literalmente colocando-o dentro da cena através do olhar e é através dele que a experiência estética pode ser então experimentada, o sujeito torna-se objeto, penetra no quadro.

Segundo a estética da recepção, o foco narrativo é puxado para o leitor como um artifício capaz de trazer seu olhar para a leitura e conduzi-lo na sua busca de vencer a invisibilidade do texto, ou seja, os pontos de sombra:

Dos olhos do pintor até aquilo que ele olha, está traçada uma linha imperiosa que nós, os que olhamos, não poderíamos evitar: ela atravessa o quadro real e alcança, à frente da sua superfície, o lugar de onde vemos o pintor que nos observa; esse pontilhado nos atinge infalivelmente e nos liga à representação do quadro. (MF, 1999: 20)

O que se depreende do texto de Michel Foucault é um elo entre espectador, o quadro e o pintor, bem como entre Sérgio Sant’Anna-Antônio Martins e a obra de Vitório Brancatti.

O espelho reflete o real tal e qual, repete-o, representa-o e como sua repetição é encenação, donde seu caráter falso, ilusório. No teatro a metáfora do espelho corresponde ao falso. (Eco, 1989) No texto há um jogo criado entre o olhar, visão e verdade, e, entre espelho, encenação, falso. O elo entre esses dois cruzamentos se dá pelo teatro, encenação onde o que se vê nem sempre é verdadeiro, o que está oculto nem sempre é falso; isto aparece bem nas palavras iniciais do texto:

É preciso esclarecer que, na primeira vez que a vi, ela estava sentada à mesa no café e eu não podia observá-la de corpo inteiro,(...), assim à primeira vista

O olhar conduz a mente, o que se vê é verdadeiro.

Mas as paredes e colunas do café são espelhadas. E foi através desses espelhos, que refletem uns aos outros, que minha observação se deu, bastante discreta e oblíqua. (SS,1998: 10)

Os espelhos refletem o olhar e provocam uma perspectiva, uma dissimulação que cria uma zona de dúvida.

Outra relação que perpassa o texto é: o que se vê é real ou imaginário, e o que se encena é falso ou verdadeiro?

Tomando por empréstimo duas colocações de Luiz Costa Lima, a primeira, um postulado psicológico que diz:

A vulnerabilidade das relações humanas resulta, como Laing escreveu, de, na relação face a face, o eu ser invisível ao tu e o tu, invisível ao eu. Essa vulnerabilidade acresce porque o eu, poderíamos ainda dizer, é invisível a si próprio... (Costa Lima. 1981: 155)

A segunda colocação: Estar vivo é falar, falar é exercer o simbólico, pelo simbólico me digo enquanto me finjo. (Costa Lima, 1981: 155) Por essas duas colocações podemos relacionar o Postulado da Visibilidade à Metáfora do Espelho, pelo seu caráter de encenação.

Assim estruturada a narrativa prossegue rumo a seu objetivo, traçar um paralelo entre o crítico e o objeto artístico, visando estabelecer um nexo entre o estético e a emoção, como no trecho em que Antônio Martins diz: ser crítico é um exercício da razão diante de uma emotividade aliciadora (...) o que não significa que estejamos imunizados contra a sedução das emoções. (SS, 1998: 18-19). Dessa ambigüidade fundamental caminha a narrativa, até seu final, quando num manifesto é emitido o conceito do crítico como estuprador da obra de arte, ao que Antônio Martins responde:

À medida que o tempo passa, sei cada vez menos se Inês estava ou não desmaiada quando a possui, se fui ou não um violador, sendo que nenhuma das duas hipóteses deixa de me seduzir encantar, porque, de todo modo, um sedutor ou violador muito especial e delicado, como bem apontou, no tribunal, a acusação.(SS,1998: 131)

O final, porém, fica aberto ao leitor: E para escrever,..., sobre tal obra, (...) que por ela tentem avaliar-me (...)os leitores e também os críticos, meus pares.(SS, 1998: 132)

A LUZ E O OLHAR

Gilles Deleuze no livro Conversações, no capítulo sobre cinema, usa a expressão imagem mental ou em espelho, opondo este conceito ao de imagem atual, segundo ele as duas formam um circuito no qual torna-se indistinto o ponto entre o real e o imaginário (Deleuze,1992: 69). O que parece corroborar a idéia desenvolvida por Sérgio Sant’Anna no romance Um Crime Delicado.

Segundo Deleuze, no capítulo citado, existe uma pedagogia da imagem: Enfim a imagem torna-se um pensamento, capaz de apreender os mecanismos do pensamento (Deleuze, 1992: 70), o que parece apontar para o Postulado da Visibilidade, diz ainda: O olho já está nas coisas, ele faz parte da imagem... o olho não é a câmera, é a tela. (Deleuze, 1992: 72)

Portanto podemos deduzir que o olho é o enquadramento da tela mental onde se tecem as relações entre o simbólico, o imaginário e o real que vem a constituir a marca do texto de Sérgio Sant’Anna ora em análise.

 

CONCLUSÃO

O paradigma Sociológico representado pelo pensamento de Michel Foucault, envolvendo as Teorias do Conhecimento, colocou o homem no foco das atenções, com a mudança para um paradigma Antropológico e o uso das Teorias da Linguagem, o homem pôde pensar acerca de suas obras – a arte, a ficção, a crítica – e teorizar sobre elas dentro do próprio texto literário; com o auxílio da Teoria dos atos de fingir de Wolfgang Iser podemos questionar as formas de representação e as conseqüentes implicações destas nos discursos que formam os textos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Barthes, Roland. “A morte do autor”. In: –––. Rumor da Língua. Lisboa, Edições 70, 1984.

Chauí, Marilena. “Janela da alma, espelho do mundo”. In: Neves, Adauto (org.). O Olhar. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 1995.

Costa Lima, Luiz. Dispersa Demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.

Deleuze, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

Eco, Umberto. Sobre os Espelhos e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1989.

Foucault, Michel. O que é um autor? Rio de Janeiro: Passagens, 1992.

––––––. “Las Meninas”. In: –––. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

Iser, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.

Piglia, Ricardo. “A leitura de ficção”. In: O Laboratório do Escritor. São Paulo: Iluminuras, 1994.

Sant’Anna, Sérgio. Um Crime Delicado. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

 

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