HAROLDO DE CAMPOS: A HÝBRIS DE UM VIAJANTE

Cristina Monteiro de Castro Pereira (UERJ)

 

A morte de Ulisses, herói dos épicos homéricos, foi vaticinada no canto XI da Odisséia pelo adivinho Tirésias. Mas a expressão grega utilizada para definir seu destino é ambígua: pode se referir tanto a uma morte longe do mar salino quanto a um fim por sua causa.

Dante Alighieri (1265-1321) escolhe a segunda opção e a tematiza no canto XXVI de seu Inferno. O poeta-personagem e seu mestre-companheiro de viagem, Vergílio, encontram Ulisses ardendo em chamas na oitava vala do Malebolge. Idealizador do cavalo que destruiu Tróia, o herói grego teria sido o grande responsável pela queda do povo que, segundo Vergílio conta em sua Eneida, deu origem aos italianos. Em uma vingança-homenagem, Dante condena Ulisses a habitar o círculo infernal destinado aos maus conselheiros.

O poeta italiano superpõe o imaginário grego ao latino-cristão, ao mesmo tempo em que recria o primeiro a partir deste último, em uma instigante apropriação metamórfica de textos e de personagens do passado literário. É dentro dessa perspectiva que se desenrola o relato da causa da morte de Ulisses.

Conta o herói que, não conformado em passar seus últimos dias pacificamente em Ítaca, convence alguns de seus companheiros a realizar uma perigosa viagem: ultrapassar as colunas de Hércules, marco do limite das terras conhecidas pelos homens na antiguidade.

Dante insere a hýbris[1] de Ulisses dentro da geografia e do horizonte de expectativas medieval-cristão. Para além das colunas, na parte meridional do globo terrestre, só haveria um imenso oceano, em cujo centro se ergueria a montanha do purgatório – acesso ao paraíso terrestre de Adão e Eva. A tentativa de chegar, por meios humanos, aonde só se vai através do designo de Deus foi a razão da morte do herói, que, já próximo da terra, é engolido pelo mar.

Peter Szondi (1929-1971), em seu Ensaio sobre o trágico, aponta para as mudanças da concepção do trágico a partir do século XVIII. Afastando-se de uma tradição normativa iniciada com a Poética de Aristóteles, que pensava o trágico dentro dos limites formais da tragédia, Szondi reapresenta o conceito sob uma perspectiva filosófica. Das diversas tentativas dos grandes filósofos alemães de estabelecer um conceito universal do trágico, Szondi destaca sua estrutura dialética entre o absoluto e o individual, entre o divino e as suas manifestações, entre o universal e o particular (SZONDI, 2004: 17). Liberto da fôrma da tragédia, o trágico pôde, então, ser encontrado e investigado em outras manifestações artísticas.

Detectamos o trágico neste episódio da epopéia cristã de Dante: o herói, acometido pela hýbris, desafia (os) Deus (es) ao tentar navegar para além dos limites do humano. É da tensão entre a vontade do homem de ultrapassar a sua condição e a força intransponível de seu destino humano que se configura o conflito trágico no canto acima mencionado.

Haroldo de Campos (1929-2003), assim como Dante, recria sobre a tradição literária. Numa vertiginosa transformação do tema, retoma o canto XXVI da Divina Comédia em seu Finismundo: a última viagem (1990).

Aceitando o jogo proposto pelo poeta italiano - que coloca o herói grego dentro de uma estrutura de mundo cristã-medieval - dá a sua primeira cartada: dirige o foco da leitura para a hýbris do herói, ressaltando sua condenação a partir de um julgamento que o re-aproxima de suas origens gregas. A última viagem de Ulisses (“Odisseu”, seu nome grego, utilizado na primeira fase do poema “Finismundo”), está fadada ao fracasso, porque o herói ousa ultrapassar suas medidas e tenta alcançar aquilo que não lhe é permitido:

Odisseu foi. Perdeu os companheiros.

À beira-vista

da ínsula ansiada  - vendo já

o alcançável Éden ao quase

toque da mão: os deuses conspiraram. (CAMPOS, 1997: 42)

Continuando o jogo de Dante, Haroldo mantém Odisseu no híbrido cenário do mundo dantesco: tendo ultrapassado as colunas de Hércules, limites de um “mundo” originalmente grego, o herói está prestes a alcançar a ilha em que se encontra o Éden cristão. Mas os deuses – saídos do politeísmo homérico – conspiram. Odisseu naufraga nas águas cristãs-medievais, e é resgatado pelas redes pós-utópicas haroldianas.

Só um sulco

cicatriza no peito de Poséidon.

Clasurou-se o ponto.      O redondo

oceano ressoa taciturno.

Serena agora o canto convulsivo

o doceamargo pranto das sereias

(ultrassom incaptado a ouvido humano). (Idem)

O redondo oceano dantesco é o ponto cicatrizado que acolhe e incorpora, na Comédia - a partir de uma visão de mundo cristã, o distante universo grego de Odisseu. O canto/pranto “doceamargo” das sereias serena não apenas porque Odisseu não atravessará mais seus mares, mas também porque o que se apresenta “pós-heróis gregos” – o ouvido e a voz do homem comum – não é capaz de perceber aquilo que “ultrapassa o som”.

É no segundo bloco do poema “Finismundo: a ultima viagem” que Haroldo traz Odisseu para seu próprio horizonte de expectativas, e trata de um urbano Ulisses sobrevivido ao mito (Idem, p. 43). O poeta mostra a impossibilidade da aventura e a falta de coragem – ou de motivação - para empreendê-la dentro do universo do homem urbano e “moderno”. Desta vez não há périplo e não há hýbris. O homem não quer e/ou não pode ultrapassar as suas medidas. Os deuses não chegam a ser desafiados.

Teu fogo prometéico se resume

à cabeça de um fósforo - Lúcifer

portátil e/ou

ninharia flamífera.

Capitula

(cabeça fria)

tua húbris. (Idem: 43-44)

São três os tempos que se conjugam no espaço do poema de Haroldo de Campos: o da antigüidade, o medieval e o contemporâneo. A hýbris prometéica[2] desdobra-se na hýbris luciferina[3] para capitular na “modernidade”. O frágil fogo de um simples fósforo já não acende mais a vontade do homem de ultrapassar suas medidas. O cotidiano corta o mal pela raiz, e nosso anti-herói se contenta com um postal do Éden (CAMPOS, 1997: 44). Odisseu homérico, desafiador dos mares e dos deuses, é transformado em uma outra versão do Ulisses joyci (cotidi)ano. Odisseu, dessacralizado, sobrevive como um Ulisses urbano, imediatamente relacionado ao leitor e ao próprio poeta:

Urbano Ulisses

sobrevivido ao mito

(eu e Você meu hipo-

côndrico crítico

leitor) - civil. (CAMPOS, 1997: 43)

Não há hýbris, mas podemos destacar ainda a existência do trágico no Ulisses cotidiano de Haroldo de Campos. Ao contrário do herói tradicional das tragédias, o anti-herói de Finismundo não age. Não pratica a ação pela qual é “castigado” pelo destino. Permanece robotizado, apático em meio a sua rotina, como uma máquina. Sua impossibilidade de hýbris, a anulação de sua vontade de ultrapassar seus limites é a configuração do trágico em sua vida.

O poema termina com os seguintes versos:

Açuladas sirenes

cortam teu coração cotidiano. (Idem: 52)

Extremamente feliz na composição dos últimos versos, Haroldo consegue concentrar (o dichten poundiano, “condensare”), neste pequeno espaço, o passado e o presente. Açuladas[4] sirenes – sons irritantes, estridentes relacionados a problemas metropolitanos (ambulâncias, carros de bombeiro ou de polícia) – cortam, navalham o apático e cotidiano Ulisses. Ao mesmo tempo, excitantes sirenes – as sereias (sirena[5], em português, siren em inglês; sirène, em francês; sirena em italiano e em espanhol; sirene em alemão) que tentaram seduzir Odisseu no poema homérico, cortam o coração cotidiano do Ulisses urbano, incapaz de navegar a seu encontro. Nesta última leitura, percebemos que o canto das sereias, apesar do material isolante de que é feito o cotidiano, ainda produz o efeito de despertar (cf. a quarta entrada da nota 4) o eco de uma hýbris impraticável nos corações dos homens “robotizados”: um efeito de resignação, que remete ao capítulo do livro de Szondi sobre as idéias de Schopenhauer a respeito do trágico:

A apresentação da autodestruição da vontade fornece ao espectador o conhecimento de que a vida, como objeto e objetidade dessa vontade, “não é digna de sua afeição”, levando-o à resignação. (SZONDI, 2004: 54)

Apresentamos, no desenrolar de nosso estudo, a possibilidade do trágico associado ou não à hýbris. A questão que colocamos agora é se, na existência da hýbris, o trágico estaria necessariamente presente.

Haroldo, assim como Dante, retoma textos do passado e, rompendo os limites da obra, os transforma em um novo poema. Trata-se da hýbris do poeta que, partido de algo que existe, ultrapassa-o para produzir um “outro”.

Segundo Luiz Costa Lima, este é o processo da mímesis. Negando a tradicional idéia de mímesis como cópia ou representação e, ao mesmo tempo, colocando-se contra a idéia da inexistência da mímesis na arte abstrata, ou em casos de transformação radical do objeto primeiro, o teórico cria o termo representação-efeito para tratar do assunto. Em poucas palavras, a idéia seria a seguinte: o homem (inserido em seu contexto sócio-político-cultural) se lança a um objeto e, a partir do efeito que este objeto nele provoca (considerando o seu próprio horizonte de expectativas, e, por isso, numa perspectiva crítica), transforma o “real” ou um texto primeiro em sua criação. A mímesis como representação-efeito, como um jogo entre semelhanças e diferenças, pode ser comparada com a noção de hýbris: o poeta ou o artista ultrapassa os limites do já existente e cria um novo objeto.

Em Depoimentos de Oficina (2002), Haroldo de Campos discorre sobre seu poema e sobre a teoria nele envolvida:

Sátira do mundo onde as ideologias entraram em crise e, ao mesmo tempo, celebração da aventura incessante, sempre renovada, do conhecimento e da criação, imaginei Finismundo como um poema “pós-utópico”, expressão que prefiro ao conceito já gasto e equívoco de “pós-moderno”. Nele, a operação criadora é também uma operação tradutora. Contudo, ao contrário do ecletismo e da aceitação conformista do passado, como ornamento nostalgicamente inócuo, é o espírito crítico (resíduo inalienável da utopia em crise) o fator que preside à escolha dos topoi e dos estilemas da tradição. Leva-se em conta, a cada vez, o lema poundiano: make it new (fazê-lo novo). Lema que, sob esse ângulo, coincide com a razão antropofágica de Oswald de Andrade: devorar: remastigar a herança cultural universal, para “nutrir o impulso”: renovar. Reimaginar os dados do passado (a tradição no que ela tem de virtualmente ativo) e reoperá-los sob a espécie da diferença brasileira na instância vital e problemática do presente. (CAMPOS, 2002: 57)

Em “Finismundo”, notamos também que a espacialização das palavras, os neologismos, a potencialização dos significantes configuram uma vontade do poeta de ultrapassar a condição de veículo da escrita e de torná-la parte da própria narrativa, carregando-a de significação. De acordo com Roman Jakobson (1896–1982), a forma é parte importante no processo de significação da obra literária, em que impera a “função poética”.

Os textos literários, em especial a poesia, não têm como preocupação principal – ao contrário de textos pragmáticos – a comunicação. Ou seja, a linguagem de uma obra estética não é um simples veículo de significados, mas – alargando o conceito dos concretistas a respeito de seus poemas – apresenta-se como um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas (CAMPOS, PIGNATARI, CAMPOS, 1987: 156). Por isso, seus elementos configuradores são de extrema importância para sua existência como objeto artístico. Desse modo, podemos entender o motivo pelo qual os significantes, no poema, muitas vezes ultrapassam sua função de veículo ou meio para a comunicação e se transformam em parte do próprio significado:

Último

Odisseu multi-

ardiloso          - no extremo

Avernotenso limite       - re-

propõe a viajem. (CAMPOS, 1997: 39)

A palavra “último” permanece sozinha, “ultimando” a si mesma. O epíteto de Odisseu, a saber, multi-ardiloso, se separa na configuração do poema. Assim, temos, no mesmo verso, “Odisseu multi”, apontando para as várias e diversas peripécias do herói e de suas possíveis transformações através da literatura. A expressão “-no extremo”, separado por um travessão se encontra abismalmente no extremo do verso. O neologismo “avernotenso” condensa a palavra “averno”, referente ao lago que seria, segundo a mitologia grega, uma das entradas para o inferno, com a tensão de sua própria ontologia e com a idéia de limite, palavra que aparece em seguida. A viagem é “re-” “proposta”. A separação em dois versos do prefixo e do lexema explicita que se trata de uma nova Odisséia – metamorfoseada.

A hýbris se apresenta materialmente no texto, na tentativa de ir além do que já existe, na ânsia do poeta de tornar-se, apesar de homem, Criador. Mas o artista é aquele que cria. A tensão trágica levantada por Szondi em relação ao “divino e às suas manifestações” deixa de existir quando o homem é também um artista, ou seja, quando cria, como os deuses, um novo universo. A hýbris do artista não é trágica. Neste caso, o próprio conceito de hýbris é relativizado, uma vez que a criatura é também o Criador.

 

BIBLIOGRAFIA

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. 3 vol. Ed. Bilíngüe. Trad. Ítalo Eugênio Mauro. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001.

CAMPOS, Haroldo. Depoimentos de Oficina. São Paulo: Unimarco, 2002.

––––––. Sobre Finismundo: a última viagem. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.

COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.


 


 

[1] A noção de hýbris (excesso, excedência, incontinência) integra a antropologia do homem grego. O homem acometido pela hýbris, que tentava ir além de suas medidas (possibilidades) humanas, era submetido ao castigo dos deuses.

[2] O Titã Prometeu desafiou Zeus ao roubar-lhe uma fagulha do fogo divino para dar aos homens.

[3] Lúcifer desafiou a onipotência de Deus, reclamando para si mais poder. O excesso é condenável também no imaginário cristão (Lúcifer, Adão, o episódio de Babel...). A hýbris antiga continua valendo, ainda que configurada dentro de outros padrões.

[4] O Houaiss eletrônico apresenta quatro entradas para o adjetivo açulado: 1 provocado para o ataque, para morder (diz-se especialmente de cão); instigado. 2 que se enfureceu; irritado. 3 cuja vontade ou energia (para realizar algo) foi estimulada; excitado. 4 que surgiu ou se intensificou (diz-se geralmente de sentimentos); despertado.

[5] O Houaiss eletrônico apresenta duas entradas para o substantivo sirena: 1 Rubrica: literatura. m.q. sereia ('ser mitológico'). 2 m.q. sirene.

 

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