O Fictício e o Imaginário de Wolfgang Iser
na obra “Chinela Turca” de Machado de Assis

Geisa Jordão (UFF)

 

INTRODUÇÃO

Ao pesquisar o fictício e o imaginário de Wolfgang Iser na obra “Chinela Turca” de Machado de Assis, partimos de um princípio direcionado por Iser de que estes elementos que existem na vida real também existem na literatura, porém na literatura esta articulação é organizada. Mesmo não podendo ser totalmente fundamento, observa-se que um serve de contexto para o outro.

Selecionamos passagens da obra onde o fictício abre o espaço para o imaginário do próprio personagem que abre ao leitor um novo imaginário a partir do imaginário do personagem, que não deixa de ser uma ficção.

O trabalho foi realizado levando em conta o capítulo “Atos de Fingir”, de Iser e conta com o apoio de alguns escritores trabalhados no curso.

A Literatura funciona como modificadora das ações e reações do homem. As obras aí se encontram para serem vividas, revividas, talvez porque os homens se identifiquem com seus heróis ou bandidos, talvez com as dissimulações e verdades expostas nos fatos do real ficcional, ou talvez por necessitarem de experiências outras que sejam só suas.

Iser aponta para a função formadora da Literatura, a pessoa muda ao contato com ela. A Literatura representa para o homem, não apenas o espaço para viver e experienciar novas aventuras, mas também a realidade cultural, social e antropológica do ser. Segundo Umberto Eco (ECO, 2003), “A Literatura mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio coletivo”. Na análise da obra literária “A Chinela Turca”, a leitura de um texto do séc. XIX aproxima o leitor de uma época marcada por suas características próprias, o autor expõe não apenas fatos e personagens, mas uma língua rica, trabalhada com humor, com uma estética fina, apurada, revelando esta língua tão rica em linguagem envolvente e desafiadora, levando o leitor a prender-se nas suas malhas. De acordo com Umberto Eco “A língua vai para onde quer, mas é sensível às sugestões da literatura.” [...] Mas a prática literária mantém em exercício também a nossa língua individual.” A nossa construção individual de língua sofre os estímulos daquilo que lemos e ouvimos, numa soma constante. Iser ressalta a função formadora da Literatura, a pessoa muda ao contato com a obra literária.

 

RESUMO DA OBRA “A CHINELA TURCA”
MACHADO DE ASSIS

A história se passa na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1850. O bacharel Duarte prepara-se para ir a um baile, onde encontrará uma jovem com quem está a namorar há pouco tempo, quando lhe anunciam a visita do major Lopo Alves, velho amigo da família. Causa-lhe horror a visita àquela hora. O major vem lhe dar a notícia de que acabara de escrever um drama. O bacharel custa a crer que isso realmente estava acontecendo com ele, naquela hora da noite, só pensava em Cecília. Empalideceu quando viu o major abrir o rolo que trazia, seria breve na leitura, afinal não passava o drama de cento e oitenta folhas manuscritas. O major começou a leitura, o bacharel mergulhou o corpo e o desespero numa vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais depressa ao termo.

O drama dividia-se em sete quadros.Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos.

Cabe aqui uma observação, pois neste momento o escritor está preparando o leitor para viver o imaginário que a partir deste ponto da obra vai ser criado pelo bacharel.

Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros... De repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se, cravava nele uns olhos odiendos e maus, e saía arrebatadamente do gabinete... autor e drama tinham desaparecido. Por que não fez ele isso há mais tempo?

Mal tem tempo de suspirar com alegria, quando o empregado vem anunciar-lhe outra visita. Era a polícia!

Era acusado de furtar uma chinela turca, preciosa. Duarte suspeitou que o homem fosse doido ou um ladrão. Não teve tempo de examinar a suspeita, viu entrar cinco homens armados, que lhe levaram. Meteram-no à força em um carro e partiram.

No carro, os homens confirmam as suspeitas de Duarte, eles não eram da polícia. Chegaram a uma bela casa. Duarte já achava que a chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília, que ele roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival. Na casa um homem misterioso apresenta-lhe uma linda moça, muito parecida com Cecília. O homem diz-lhe que três coisas Duarte vai fazer: casar, escrever o seu testamento; e engolir certa droga do Levante...

Possuía uma pequena fortuna, deixaria tudo para a moça e depois morreria. Não, não se casaria.

Ao ser chamado, entra um padre, que olha para ele de modo esquisito. Num momento de distração, o padre revela-lhe que era tenente do exército e que ele deveria pular a janela e fugir.

Duarte não hesitou, pulou a Deus misericórdia por ali abaixo. Deu com um segurança, fechou os punhos e bateu com eles violentamente nos peitos do homem e deitou a correr. O homem não caiu. Começou então uma carreira vertiginosa.

Cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de pedra de uma casa. Um homem que ali estava, lendo um número de Jornal do Comércio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte fitou os olhos no homem. Era o major Lopo Alves.

O major exclamou repentinamente: Fim do último quadro.

Duarte olhou para ele, esfregou os olhos, respirou à larga. O major pergunta-lhe “Que tal lhe parece?” “Ah! Excelente!” Respondeu o bacharel, levantando-se. “Paixões fortes, não?” Pergunta-lhe o Major. “Fortíssimas”, responde Duarte.

O Major despediu-se, eram duas horas. Duarte respirou fundo, foi até a janela e disse para si mesmo: - “Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um negócio e uma grave lição: provaste-me que muitas vezes o melhor drama está no espectador e não no palco.”

 

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Segundo Iser o fictício e o imaginário existem como experiência de evidência, seja porque superamos o que somos através de mentiras e dissimulações, seja porque vivemos nossas fantasias durante nossos sonhos diurnos, nos sonhos, nas alucinações.

O texto em estudo trabalha com a ficção. Dentro do real ficcional há o imaginário ficcional de Duarte, que vive sua fantasia, fugindo do real ficcional. Esta situação leva o leitor a embarcar no imaginário do personagem principal, sendo que este imaginário está dentro da ficção criada pelo autor e ainda leva o leitor a viajar no seu próprio imaginário. As fantasias vividas, sejam elas nos sonhos diurnos ou nos sonhos, são fortalecidas pela realidade que se apresenta na mecânica com que o texto se apresenta. Daí uma conclusão: o fictício e o imaginário existem também na vida real e não se restringem à literatura. Mas a literatura articula organizadamente o fictício e o imaginário, já que o autor lida conscientemente com esta articulação.

 

ANÁLISE DA OBRA

O texto é de natureza ficcional, pode-se analisá-lo sob três aspectos:

1. uma realidade ficcional

2. um imaginário do personagem principal

3. um imaginário do leitor.

 

Uma realidade ficcional

Vede o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas.

Característica marcante de Machado de Assis é estabelecer certa intimidade com seu leitor, usa o verbo flexionado no imperativo, de modo que o leitor de fato entre nesta realidade ficcional que ele está apresentando. Fornece data precisa, situa o horário, antecipando a importância deste fato para o desenrolar da trama. O autor cria uma realidade textual, que o saber tácito percebe a distinção desta realidade ficcional da realidade real. De acordo com Iser a relação dupla da ficção e realidade deveria ser substituída por uma relação tríplice: o texto ficcional contém elementos do real sem que se esgote na descrição do real. Esse componente fictício é uma preparação para o imaginário. Esse saber tácito, que opõe ficção e realidade, caracteriza a ficção justamente pela eliminação dos atributos que definem a realidade.

Há, no texto ficcional, muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. Observa-se exemplo desta afirmação:

Eram quase onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro. Duarte mal podia conter a cólera; era já impossível ir ao Rio Comprido. Não é fora de propósito conjecturar que, se o major expirasse naquele momento, Duarte agradeceria a morte como benefício da Providência. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos.

Há evidentemente uma realidade social (bem real): o jovem toma-se de cólera porque percebe que vai perder o encontro tão esperado durante a semana. Está enamorado e chega a desejar a morte do major, que é aparentado de Cecília. Seus sentimentos neste momento são fortes e o autor faz uma inferência, dando uma dica sobre o imaginário de Duarte que começa a funcionar: “... mas a leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos”. Interessante que o autor faz referência ao poder da imaginação, esta válvula segura de escape. Iser afirma que é no ato de fingir que emerge um imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. O ato de fingir é uma transgressão de limites.

 

UM IMAGINÁRIO DO PERSONAGEM PRINCIPAL

Como ato de fingir, a combinação cria relacionamentos intratextuais. Como o relacionamento é um produto do fingir, ele se revela como a intencionalidade do texto.

Havia, porém, muitos anos que Lopo Alves deixara em paz os generais platinos e os defuntos; nada fazia supor que a moléstia volvesse, sobretudo caracterizada por um drama. Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves, algumas semanas antes, assistira à representação de uma peça do gênero ultra-romântico, obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a idéia de afrontar as luzes do tablado.

Verifica-se que o bacharel não sabe o porquê do rompante dramático do militar, mas o leitor ficou sabendo do motivo, fruto da seleção de informações que o autor acha necessária, para que se estabeleça uma cumplicidade com o leitor atento, principalmente, ao fato de haver uma crítica sutilíssima ao ultra-romantismo, movimento que já ficava para traz, já que o autor introduzia o realismo em nossa literatura.

Conforme Iser, a combinação é um ato de fingir porque também ela possui a caracterização básica: ser transgressão de limites. Observa-se que Duarte transgride as fronteiras, em princípio insuperáveis, existentes no campo textual, como ouvir um texto enfadonho, suportar a presença do major, perder o encontro com Cecília. Cria-se, então, o imaginário do personagem, que passa a viver uma outra história, uma nova ficção intratextual. Pode-se dizer que este imaginário estabelece também uma mudança no imaginário do leitor, que compartilha as emoções do bacharel, ainda sem se dar conta da mudança estrutural e semântica da nova realidade ficcional.

De repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se, cravava nele uns olhos odientos e maus, e saía arrebatadamente do gabinete.[...] Foi à janela; nada viu nem ouviu; autor e drama tinham desaparecido.

Se o fictício traça limites no texto ficcional para em seguida rompê-los, a fim de assegurar a necessária concretude ao imaginário, com a qual ele se torna eficaz, é assim que se produz nos receptores a necessidade de controlar a experiência de acontecimento do imaginário.

 

UM IMAGINÁRIO DO LEITOR

O fictício é a vertente intencional do autor, a obra que ele apresenta para o leitor. Esta vertente se torna contexto para a vertente do imaginário, vertente espontânea. Estabelece-se o jogo, um espaço de troca, de expectativas, de suspense, de interação. É no fingir que emerge um imaginário que se relaciona com a realidade do texto. O autor seleciona fatos, personagens, lugares e combina todos estes elementos constituindo ações, transgressões intratextuais, rompe com os limites do próprio texto, permitindo que o leitor crie a partir destas situações, outras tantas que caracterizam o imaginário do leitor.

– Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um negócio e uma grave lição: provaste-me que muitas vezes o melhor drama está no espectador e não no palco.

Machado de Assis termina seu conto, com esta magnífica passagem, estabelece uma realidade para o leitor que pode ser esta: “você, caro leitor, também se livrou de ouvir a leitura da peça”, este jogo de combinações e intenções, levam o leitor a viver a realidade ficcional, o imaginário de Duarte e o próprio imaginário. Quando o leitor percebe que foi um sonho de Duarte, recorda-se das migalhas de pão que o autor deixou pelo caminho:

– Ah! Ah! Disse o homem gordo. Com que então pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras, casar talvez com elas... e rir ainda por cima do gênero humano. Ouvindo aquela alusão à dama dos seus pensamentos, Duarte teve um calafrio. Tratava-se, ao que parecia, de algum desforço de rival suplantado. Ou a alusão seria casual e estranha à aventura?

Observa-se que não há alusão casual e estranha à aventura, o leitor é levado a desconfiar de que algum fato novo está mudando a realidade ficcional.

Iser em “A interação do texto com o leitor”, ressalta que os vazios originam a comunicação. O equilíbrio só pode ser resolvido com o preenchimento dos vazios pelo leitor. Os vazios regulam a atividade de representação do leitor, que agora segue condições impostas pelo texto; as negociações provocam o leitor a situar-se perante o texto.

O imaginário preenche o vazio. Havendo aí êxito na relação texto-leitor: mudança do leitor. Ao ler uma obra literária e estudar suas relações estruturais, semânticas e ficcionais estabelece-se um vínculo com o autor, um pacto de co-autoria.

 

CONCLUSÃO

A Chinela Turca de Machado de Assis, além de um texto enriquecedor por fazer uso de uma linguagem agradável, com certa dose de humor, expressa a língua magnífica, que deve ser sempre instrumento de reflexão. Sabe-se que o texto foi escrito no século dezenove e mantém as características próprias da época. O texto é uma ficção, o fictício se completa com o imaginário, num desnudamento das relações intratextuais, relativizadas no contexto do leitor.

A relação do real com o fictício e o imaginário apresenta uma propriedade fundamental do texto ficcional. Quando a realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre uma transgressão de sua determinação. Daí o ato de fingir ser uma transgressão de limites. Nisso se expressa sua aliança com o imaginário.

Machado de Assis distingue-se de outros autores por apresentar vazios para que o leitor possa se apropriar desses espaços transformando-se em co-autor, sem que este mesmo leitor se perca do caminho traçado pelo autor.

Machado tinha a escrita perfeita e isso era uma arma poderosa para época. Observamos no texto sua crítica ao ultra-romantismo, àqueles que se julgavam escritores, mas que não tinham talento, às obras ruins, impostas ao homem, sem estética ou estilo.

É a obra excelente exemplo para os estudos de Wolfgang Iser, destacando o capítulo Atos de Fingir, pois todos os elementos apresentados estão ricamente expostos ao leitor.

Ao terminar o trabalho, fica a certeza da importância da Literatura, como fonte perene de renovação do ser humano.

 

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Machado: A Chinela Turca. In: Para gostar de ler - vol. 13. São Paulo: Ática, 1997.

CHARTIER, Roger: Cultura escrita, literatura e história. Porto Alegre: Artmed, 2001.

ECO, Umberto: Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.

ISER, Wolfgang: O Fictício e o Imaginário – Perspectivas de uma Antropologia Literária. Rio de Janeiro: Eduerj.

––––––. A assimetria texto / leitor. In: ––. A interação do texto com o leitor.

VALÉRY, Paul. Discurso sobre a Estética. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura em Suas Fontes - Vol. 1. Rio de Janeiro: Francisco Alves.

 

 

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