as metáforas de clarice lispector
o texto literário nas teias da estilística

Anderson da Silva Ribeiro (UERJ)

 

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se inscreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente. (Clarice Lispector)

 

Este artigo é um pequeno recorte da pesquisa que estamos realizando no Programa de Pós-graduação lato sensu em Letras (subárea: Língua Portuguesa) da Universidade do estado do Rio de Janeiro. Pretendemos “ler” estilisticamente as construções metafóricas que descrevem as ações e as qualidades da personagem Joana, protagonista da narrativa Perto do coração selvagem (doravante PCS).

Em PCS, ainda que a metáfora tenha a feição desgastada pelo uso lingüístico, ganha notoriedade expressiva atribuída pelo contexto. Vejamos o primeiro exemplo:

Não era no mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconseqüências, de egoísmo e vitalidade. (PCS, 18)

Para definir o universo psicológico de Joana, o narrador emprega a metáfora hiperbólica “Sentia dentro de si um animal perfeito”, cuja função é, como ensina Walter de Castro, potenciar a expressão e a impressão, causando, com isso, a expressividade. Segundo o autor, “uma das funções da metáfora é dar ênfase às impressões, pois a evocação de um termo comparante tende a dar maior força, maior intensidade àquilo que expressamos”.

O enlace inusitado (hipálage) de dois adjetivos (“profunda” e “velha”) cria um efeito surpresa ao caracterizar a sede de Joana, a qual também é personificada como se fosse um ser inanimado. Sede é um substantivo feminino que representa a vontade de beber algo:

Emocionava-a também ler as histórias terríveis dos dramas onde a maldade era fria e intensa como um banho de gelo. Como se visse alguém beber água e descobrisse que tinha sede, sede profunda e velha. Talvez fosse apenas falta de vida: estava vivendo menos do que podia e imaginava que sua sede pedisse inundações. (PCS, 19)

O insolitismo, marca forte em Clarice Lispector, vai caracterizar a nossa personagem com duas metáforas que se estruturam, quanto à forma, somente com a presença do que Castro denominou de termo comparante. Em “sou mais do que eu quase normalmente”, além de o vocábulo destacado criar um ar estrangeiro no texto e romper com o convencional, ele nada mais é do que um veículo (objeto modelo que realiza a comparação) sem a presença do teor (o comparado ou o ser de que se fala). O mesmo se dá em “tudo que eu fizer é continuação de meu começo”:

[...] tudo o que não sou não pode me interessar, há impossibilidade de ser além do que se é – no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio, sou mais do que eu quase normalmente –; tenho um corpo e tudo o que eu fizer é continuação de meu começo; se a civilização dos Maias não me interessa é porque nada tenho dentro de mim que se possa unir aos seus baixos-relevos; aceito tudo o que vem de mim porque não tenho conhecimento das causas e é possível que esteja pisando no vital sem saber; é essa a minha maior humildade, adivinhava ela. (PCS, 20)

Em “Ser livre era seguir-se afinal”, a oração subordinada substantiva predicativa reduzida de infinitivo dá visibilidade a mais uma metáfora clariceana. Neste caso, a figuratividade está no tom reflexivo dado ao verbo seguir acompanhado de ser. No mesmo trecho (“Ela só veria o que já possuía dentro de si”), o verbo ver metaforiza-se (adquire um sentido segundo) com o acréscimo de uma oração subordinada substantiva objetiva direta. Percebemos aí que tudo depende de uma relação sintático-semântica como bem ensina Nilce Sant’ Anna Martins (2000: 91) em Introdução à estilística. Finalmente, em “Sinceramente, eu vivo”, o advérbio focalizado traz para o texto a acepção de que a vida é vivida de maneira leal, fiel a um determinado princípio:

Ser livre era seguir-se afinal, e eis de novo o caminho traçado. Ela só veria o que já possuía dentro de si. Perdido pois o gosto de imaginar. E o dia em que chorei? – havia certo desejo de mentir também – estudava matemática e subitamente senti a impossibilidade tremenda e fria do milagre. Olho por essa janela e a única verdade, a verdade que eu não poderia dizer àquele homem, abordando-o, sem que ele fugisse de mim, a única verdade é que vivo. Sinceramente, eu vivo. (PCS, 21)

O predicativo do sujeito em evidência na oração principal “ficaria só de mim”, segue a linha da metáfora constituída de comparante e exerce a função sintática que lhe é própria: relatar o estado em que é encontrado o sujeito:

Ninguém em casa. E de tal modo ninguém dentro de si mesma que podia ter os pensamentos mais desligados da realidade, se quisesse. Se eu me visse na terra lá das estrelas ficaria só de mim. (PCS, 23)

O próximo exemplo se aproxima da definição simplista de metáfora. Percebemos nele, pois, uma “variante condensada da comparação”. Essa percepção é ocasionada pela nítida subtração do elemento relacionador como, que é a marca canônica do símile:

Sentiu-se um galho seco, espetado no ar. Quebradiço, coberto de cascas velhas. Talvez estivesse com sede, mas não havia água por ali perto. Sobretudo a certeza asfixiante de que se um homem a abraçasse naquele momento sentiria não a doçura macia nos nervos, mas o sumo de limão ardendo sobre eles, o corpo como madeira próxima do fogo, vergada, estalante, seca. (PCS, 32)

O que Clarice Lispector faz com suas criações é concretizar estética e funcionalmente a gramática da língua. No caso das metáforas, é bastante curioso o efeito causado pela seleção paradigmática, cujo objetivo (ainda que intuitivo) é adequar o material lingüístico físico ao pensamento do enunciador-artista.

 

Referências bibliográficas

CASTRO, Walter de. Metáforas machadianas: estruturas e funções. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978.

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

––––––. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa. 3ª ed. rev. aum. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.

 

 

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