Conto de fadas – uma análise semiótica

Patrícia de Fátima Abreu Costa (UninCor)

 

INTRODUÇÃO

Segundo Barthes (1987), nunca houve a vez de uma sociedade sem certo grau de narratividade ou sem um repertório de histórias próprias ou sem a necessidade de contar tais histórias. Enquanto existiu, ela contou. Pode-se acrescentar ainda que nunca houve sociedade isenta da necessidade de formas de expressão que a permitisse inventar-se, historiar-se e construir-se perante a busca de significado para sua existência.

O homem tem perante a realidade que o circunda várias atitudes: prática, científica, teórica, religiosa e estética. Nesse sentido, uma obra literária, por ser uma criação artística autônoma em relação às demais atividades humanas e por não ter um conteúdo definido, pode exercer várias funções perante a sociedade.

Segundo Salvatore (1995), a obra literária, devido à potência especial de sua linguagem poética, cria o seu próprio universo semanticamente autônomo em relação ao mundo em que vive o autor, com seus seres ficcionais, seu ambiente imaginário, seu código ideológico, sua própria verdade: pessoas metamorfoseadas em animais, animais que falam a linguagem humana, tapetes voadores, cidades fantásticas, amores incríveis, situações paradoxais, sentimentos contraditórios, etc. Mesmo a literatura mais realista é fruto de imaginação, pois o caráter ficcional é uma prerrogativa indeclinável da obra literária.

Ainda segundo ele, essa realidade nova, criada pela ficção poética, não deixa de ter, porém, uma relação significativa com o real objetivo. Ninguém pode criar a partir do nada: as estruturas lingüísticas, sociais e ideológicas fornecem ao artista o material sobre o qual ele constrói o seu mundo de imaginação.

Para Salvatore, a linguagem poética insurge-se contra o automatismo do uso lingüístico, reavivando arcaísmos, criando neologismos, inventando novas metáforas, ordenando de um modo diferente e surpreendente os lexemas no sintagma.

Como o significante lingüístico é utilizado de um modo diferente, os significados ideológicos são interpretados sob uma feição toda particular. Ao dar nova vida às palavras, criar o efeito de estranhamento, o poeta obriga o destinatário da obra literária a pensar na essência da condição humana, a refletir nos problemas da verdade, da justiça, do amor, do tempo, da morte etc.

Sendo assim, o papel da literatura na vida social é de plurifuncionalidade. Além da função estética (arte da palavra e expressão do belo), uma obra literária pode possuir, concomitantemente, a função lúdica (provocar prazer), a função cognitiva (forma de conhecimento de uma realidade objetiva ou psicológica), a função catártica (purificação de sentimentos) e a função pragmática (pregação de uma ideologia). Sendo considerada hoje uma das formas de literatura infantil, o conto de fadas, pode ser visto como instrumento que ajuda a pensar. “A poesia desses contos, nascida dos mais fortes e primários sentimentos gerais, é a que mais fala e desperta a sensibilidade dos jovens” (Góes, 1991: 118).

Acredita-se que, para as crianças, esses contos têm um valor especial. Através de sua estrutura, onde se encontram personagens, sentimentos, valores e desafios, que correspondem às exigências infantis, ele possibilita à criança digerir suas manifestações mais arcaicas. Seu caráter simbólico permite-lhe utilizar essa forma literária conforme sua necessidade, pois se trata de uma obra aberta à subjetividade e que oferece de modo simplificado novas dimensões à imaginação da criança, sendo passível de um leque de possibilidades interpretativas.

Como disse Bettelheim (1986: 20-21), os contos de fadas são ímpares, não só como forma de literatura, mas como obras de arte integralmente compreensíveis para a criança, como nenhuma outra obra de arte o é. Como sucede com toda grande obra de arte, o significado mais profundo do conto de fadas será diferente para a mesma pessoa em vários momentos de sua vida. A criança extrai significados diferentes do mesmo conto de fadas, dependendo de interesses e necessidades no momento.

Ao encontro dessa possibilidade gerada pelos contos, nos deparamos com a grande necessidade atual, apresentada por nossas crianças, de imaginar, criar, construir significados para sua própria existência e, por que não dizer, estruturar mecanismos para interagir com o mundo. O que quero dizer é que a realidade, nua e crua, é por demais difícil de ser encarada por seres ainda em desenvolvimento, do ponto de vista emocional. Mas por não poder negar-se a enfrentá-la, precisa encontrar mecanismos que a possibilite fazê-lo de forma menos dolorosa.

Nesse contexto, não tenho dúvida de que os contos de fadas têm importância especial para a estruturação das crianças, o que é corroborado por Bettelheim. Apesar das resistências, sobretudo dos adultos ainda mal-informados, seu potencial representativo goza de aprovação quase unânime daqueles que consideram a imaginação, o melhor dos caminhos para se chegar a realidade.

As histórias apresentadas nos contos de fadas são vistas pelas crianças como garantia de segurança - a segurança de que pode brincar com temas próprios da sua realidade, sem que precise expor seus medos, rivalidades e ansiedades.

Bakhtin (1992) chama a atenção para o caráter ideológico das linguagens: o caráter ideológico (leia-se deformador) próprio das linguagens. Ele supera a redução da ideologia - apenas como falsa consciência da realidade -, para afirmar que a questão não se exaure nos fundamentos de uma consciência, mas na estrutura da linguagem e do pensamento e também, sim, da consciência - enquanto malha tecida pela trama do social - e das interpretações e reinterpretações havidas socialmente.

Buscando ilustrar essa discussão, apresento neste trabalho a análise de duas produções textuais realizadas por crianças da cidade de três Corações/MG.

A metodologia utilizada para a obtenção do material a ser analisado, foi a abordagem diretiva e não estruturada. A coleta foi realizada em ambiente escolar e em grupo. Num primeiro momento era verificado se as crianças conheciam o que era um conto de fadas. Em seguida, era solicitado a elas que escolhessem um conto de que mais gostassem e o redigissem à sua maneira. Por último, era promovida uma discussão sobre as histórias realizadas.

Para os fins propostos nesta comunicação, apresento a seguir uma pequena análise de dois textos produzidos sobre “Os três porquinhos”[1] e dos relatos orais anotados pelo pesquisador durante a discussão, objetivando apontar as possibilidades interpretativas, as identificações e novas significações apresentadas pelas crianças.

A primeira versão foi escrita por T, de dez anos, sexo feminino. Ela tem dois irmãos, sendo a filha do meio. Está matriculada na quarta série do ensino fundamental.

Os três porquinhos.

Era uma vez três irmãos que tinha saído para fazer suas casinhas, o menor ia fazer uma casa de palha, o do meio ia fazer de madeiras e o maior ia fazer de tijolos.

Quando o lobo apareceu e queria comê-los deu um sopro sem fazer esforço e a casa de palha desmoronou. O porquinho mais novo foi correndo para a casa do porquinho do meio e o lobo sem fazer esforço deu um sopro que a casa de madeira desmoronou. . Os porquinhos mais novo e o do meio foram correndo para a casa do mais velho. O lobo soprou até ficar roxo e a casa não desmoronou. E assim o lobo desistiu e os três porquinhos viveram felizes para sempre.

Pode-se perceber em sua produção características originais do texto tradicional, apesar de apresentá-lo de forma bem reduzida. Podemos aferir que T faz um resumo dos fatos que para ela são mais representativos.

Quanto à escolha do conto “Os Três Porquinhos”, sugere um processo de identificação. T tem mais dois irmãos e pode ter visto nesse conto uma qualidade comum compartilhada com sua história pessoal “era uma vez três irmãos”. Essa hipótese da identificação é reforçada quando, na discussão, T revela gostar mais do porquinho do meio: “Eu sou o porquinho do meio, mais ou menos preguiçoso”. “Porque eu sou só meio preguiçosa (...)”

Freud (1987) dedica um capítulo do seu texto Psicologia de Grupo e Análise do Ego para falar sobre a identificação. Segundo ele um dos tipos de identificação pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum compartilhada com alguma outra pessoa que não seja objeto do instinto sexual.

Vê-se nesse caso, que além da identificação em relação a localização na família, T encontra no porquinho do meio características comportamentais que lhe são comuns.

Em seu livro A psicanálise dos contos de fadas, Bettelheim (1986: 53) escreve que o conto “Os três porquinhos” ensinam à criança, da forma mais deliciosa e dramática, que não devemos ser preguiçosos e levar as coisas na flauta, porque se o fizermos poderemos perecer.” A menina, ao dar ênfase a essa parte da história – quando discute o comportamento meio preguiçoso do porquinho e o compara com o seu comportamento - nos permite pensar que reconhece tal risco e sabe de suas conseqüências – “eu sou só meio preguiçosa”.

T encontra nesse conto, possibilidade de reconhecer e pensar sobre questões pessoais. A interpretação que faz do conto, as identificações que estabelece com as personagens e a possibilidade de lidar com as dificuldades e as resolver de forma satisfatória, contribui para que ela aprenda a lidar com suas dificuldades existências reais, assim como, encontre caminhos para se relacionar com o meio.

Com essa breve análise temos aí um exemplo de como a ficção estabelece uma relação significativa com o real objetivo. Através dos contos, a criança faz projeções, identificações e interpreta o mundo.

A outra versão do mesmo conto foi reescrita por F de 9 anos, sexo masculino e está na terceira série do ensino fundamental.

Eram uma vez, três porquinhos que resolveram morar sozinhos na floresta. Eles apostaram quem eram mais esperto e fazia a casa mais rápido. Pedrinho correu, pegou umas palhas e fez sua casa. Depois foi brincar. Zezinho pegou uns pau e também fez a casa dele e foi brincar. Mais Fabinho, mais esperto comprou tijolo, cimento e fez uma linda casa. Quando terminou tava muito cansado e foi dormir. Aí apareceu um lobo com muita fome e foi roubar a casa dos três porquinhos. Primeiro derrubou a casa de palha e depois a de pau e os dois porquinhos teve que sair correndo para casa de Fabinho. Aí o lobo foi roubar a casa do Fabinho. Mas ele não conseguiu. A casa era forte, protegida, tinha até alarme. Quando o lobo tentou entrar o alarme tocou. Ai ele entrou pela chaminé, mas tinha armadilha e ele sai correndo. Depois os pais deles chegou e tava todo mundo bem.

O que temos neste exemplo é um desenrolar bem diferente para uma mesma história. Ainda que se conservem características do conto tradicional em seu texto, F insere nele muitas características realísticas. Para começar, ele dá nomes próprios aos personagens, o que sugeriria uma tentativa de relacioná-la com o mundo real.

A característica marcante em seu conto é a preocupação com a segurança. F é uma criança capaz de adiar seu desejo de brincar para se preocupar com os perigos da realidade. É comum, atualmente, em nossa sociedade, vermos crianças que não podem mais brincar, diante da insegurança oferecida pelo contexto social em que vivem. Como diz Bettelheim (1986: 53) “(...) internamente, as ações dos porquinhos mostram o progresso da personalidade[2]...”. Na versão de F é possível perceber como é importante para ele, crescer e resolver seus problemas.

Outra característica interessante apresentada em seu texto refere-se ao fato de que nele o Lobo “rouba” as casas dos três porquinhos e não busca devorá-los como na versão tradicional. Mais uma vez o vínculo com fatos reais é reforçado – na vida real as pessoas geralmente não são devoradas, no sentido literal da palavra.

Durante a discussão sobre as histórias, F relata que queria ser o Fabinho: “Ele é esperto, não faz a casa rápido, mas faz a mais segura e se protege dos perigos. É o maior.” Vemos aqui uma forte projeção que ultrapassa a simples identificação com um objeto(o herói)[3] para cair na sua projeção da própria realidade – necessidade de se sentir seguro.

Temos então dois exemplos de uma mesma história, a partir da qual podem ser extraídas interpretações bem diferentes. T e F dão a seus contos significados condizentes com fatos de sua realidade vivencial. Apesar de buscarem manter a estrutura do conto, inserem nele novos signos e significados. Expressam através deles suas inseguranças e maneiras de pensar e lidar com as dificuldades individuais. Características pessoais e problemas sociais são por eles vivenciados de maneira segura, com uma linguagem accessível e num cenário que os preservam da exposição, permitindo-os extrair suas próprias conclusões quando e como desejarem.

E preciso dizer que, muito provavelmente, num outro momento de suas vidas, essas mesmas crianças podem voltar a esse conto e ampliar seus significados, ou ainda substituí-los por novos. Afinal, o que buscam e encontram nos contos é uma maneira representativa de lidar com as agruras do mundo real.

Não pretendo aqui encerrar essa discussão. Trata-se apenas de pontuar as possibilidades que essa forma literária dá às crianças de se relacionar com suas mais angustiantes exigências existenciais e contribuir para que continue a servir aos seus propósitos funcionais, cabendo ainda enfatizar, sem nenhuma intenção moralizante, a possibilidade de utilização dos contos de fadas como instrumento de formação crítica, mediante as ideologias sociais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Coleção Signos, 1987.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto I – prolegômenos e teoria Narrativa. São Paulo: Ática, 1995.

FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego. Obras completas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago. 1987.

GOES, Lúcia Pimentel. Introdução à literatura Infantil e juvenil. São Paulo: Pioneira, 1991.

Teles, Antonio Xavier. Psicologia Moderna. São Paulo: Ática, 1978.

ZIBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1985.


 

1 . A versão original desse conto foi escrita porJoseph Jacobs. Ele nasceu em Sydney, Austrália, em 1854. A história dos três porquinhos já era conhecida na Inglaterra e foi resgatada por Jacobs e trasformada em livro. Jacobs faleceu em 1916. Para ler uma versão do conto “os três porquinhos” baseado no tradicional, veja Christiane Angelotti, baseado na obra de Joseph Jacobs.

[2] Personalidade deriva do latim - persona - que significava máscara, ou seja, aquilo que queremos parecer aos outros. Na Psicologia a Personalidade é uma organização dos vários sistemas físicos, fisiológicos, psíquicos e morais que se interligam, determinando o modo como o indivíduo se ajusta ao ambiente em que vive. Ver TELES, 1978.

[3] Para um maior aprofundamento, ver FREUD, 1987.

 

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