A DISFORIA URBANA
NOS CONTOS DE EDGAR ALLAN POE

Cristina Maria Teixeira Martinho (USS)

Máquinas, multidões, cidades: o persistente trinômio do progresso, do fascínio, e do medo. O estranhamento do ser humano em meio ao mundo em que vive, a sensação de ter sua vida organizada em obediência a um imperativo exterior e transcendente a ele mesmo, embora por ele produzido. Registros de perdas e de imposições violentas encontram-se nos escritos de homens que se auto-representaram contemporâneos de um ato inaugural. (Maria Stella Bresciani)

O século XIX gera um espaço amedrontador para as novas formas de convívio social. Palavras da ordem do progresso suscitam fascínio, medo e atração ao articular máquinas, multidões, cidades como signos de um imaginário estranho, criador de estranhas imagens. O homem tem a sensação de ter sua vida manipulada por forças imperativas, exteriores e transcendentes a ele mesmo. A linguagem enreda o urbano na encruzilhada de um duplo movimento – o de dizer espacialmente o espaço público e o de metaforizar as tensões criadas pelo início do processo de industrialização, com a irracionalidade surgida no horizonte do esquema burguês.

A vida cultural e econômica do século XIX configura a cidade como um conjunto atuante de signos que cria uma linguagem; justifica-se, assim, uma ótica de leitura voltada para ela enquanto modo específico de produzir informação, ou seja, uma representação, um modo de ser que substitui e concretiza o complexo econômico e social responsável pelo fenômeno urbano.

Este trabalho parte do princípio de que é preciso resgatar a representação responsável pela visão negativa da cidade, a cidade disfórica, mascarada, solitária e melancólica, apesar da multidão circundante., pois “quem quiser apreender a verdade sobre a vida imediata, deve indagar a sua forma alienada, as potências objetivas que determinam a existência individual até os ângulos escondidos, no dizer de Theodor Adorno (1992: 3).

O conhecido autor americano Edgar Allan Poe (1986), famoso pelos seus contos de mistério, de detetives, de terror, apresenta o homem perdido nas malhas vampirescas da cidade — palco de novos tormentos, signo de um progresso aterrador. É minha intenção fazer uma leitura de dois contos: “O Homem na Multidão” e “Um aperto”. (CW, 1986)

Ao expressar e examinar a desordem, a malha cultural tece as simbolizações do imaginário, articulando novos sentidos para itens como: povo, cidade, comunidade, espaço público, multidão — palavras-chave que designam uma época em que a sociedade alargou a noção do exterior, conforme explica Richard Sennet:

À medida que as cidades cresciam e desenvolviam-se redes de solidariedade independentes do controle real direto, aumentaram os locais onde estranhos podiam regularmente se encontrar. Foi a época da construção de enormes parques urbanos, das primeiras tentativas de abrirem ruas adequadas à finalidade precípua de passeio de pedestres, como uma forma de lazer (...). A difusão das comodidades urbanas ultrapassou o pequeno círculo da elite e alcançou um espectro muito mais abrangente da sociedade. (Sennett, 1992: 32)

A grande metrópole cosmopolita é um espaço mítico por excelência. Exemplo emblemático é Charles Baudelaire que, como revela Walter Benjamin, torna “Paris objeto de poesia lírica” (2000: 42). Visão ao mesmo tempo eufórica e disfórica, a cidade-Luz espectral, com as sombras densas entre o luxo e a voluptuosidade, a miséria e a dor, transforma o espaço conhecido numa imagem-símbolo ambígua, um paradigma cultural onde o passado e o futuro convivem investindo com as suas pulsões contraditórias.

Baudelaire publica seu Flores do mal em 1857 e cria uma grande personagem poética: a cidade, tematizada em diversos poemas. Porém, não a cidade externa, física, mas uma cidade concretizada na sua alegoria, com sua multidão como imagem flutuante, instável e fugaz através da qual o poeta vê Paris e se transformará num dos mais renomados fisionomistas da imagem urbana.

A exemplo de Baudelaire, a história da imagem urbana é aquela que culmina com o relato sensível das formas de ver a cidade; não é descrição física, mas os instantâneos culturais que a focalizam como organismo vivo, mutante e ágil para agasalhar as relações sociais que a caracterizam.

A cidade no século XIX, aponta Maria Stella Bresciane (1982), dividida entre os estratos sobrepostos de uma civilização ancestral e de uma sociedade oriunda da nova economia comercial e industrial em completa mutação, focaliza-se em Paris como um modelo irradiador para uma Europa marcada por grandes transformações. O surgimento de fábricas, lojas, armazéns, usinas, asilos, prisões, estações ferroviárias, túneis, revelam o aspecto majestático de uma geografia urbana que a burguesia emergente amplia. Tais construções, feitas para abrigar multidões, constituem o cenário perfeito para o espetáculo das multidões a errar pela cidade. Citando Bresciane,

Fascínio, espanto, temor e devoção são sentimentos para manifestar o reconhecimento do poder assustador das novidades que cercam o homem. A imagem técnica, viabilizando realizações infinitas, impõe-se potente no centro dessa nova sensibilidade, preenchendo o vazio deixado pela desagregação de formas multisseculares de orientação. (1982: 8)

A imagem urbana configura a multidão a se acotovelar e colidir; olhos aturdidos se surpreendem, amedrontados diante de tal transformação impactante da cidade européia, cujo local urbano não é mais a praça pública, mas as longas ruas, as avenidas, os bulevares, as galerias, os becos da cidade que sofrem o impacto da metropolização.

Nas percepções da cidade organiza-se uma alegoria do monstro, uma criatura vampiresca que consome o povo que nela vive. A cidade, negação da natureza, artificial, agressiva, manifesta a dimensão mais ampla do maquinismo burguês. O povo é a massa que escorrega das estruturas imaginárias em textos poéticos e literários; ao crescer de forma desordenada, patenteia a desproporção que existe entre o homem e seu meio. A via pública configura o macrocosmo social. É uma presença assustadora e fascinante, variada, a formar um enorme observatório dos fatos psicológicos e sociais e a engendrar novos medos.

Qual a causa deste medo? Basicamente a idéia de uma sociedade em transformação, quando o choque das novidades esbarra nas convenções estabelecidas. Mas estes medos não se explicam facilmente. Sua origem não se encontra nas suas próprias condições internas, mas na representação da alteridade, daquele espaço do outro que é temporal e geograficamente periférico. A nova sociedade e o progresso se encontram em tensão.

Michel Foucault (2002) percorrendo a história da loucura, aponta que, desde o século XIV ao século XVII, a exclusão de indivíduos é uma prática constante, isto é, pessoas indesejadas são eliminadas, pois valores éticos, morais e o modelo médico estão fortemente enraizados. A prática de retirá-los do convívio social, seja enviando-os em embarcações marinhas seja fechando-os em celas e calabouços, asilos e hospitais, é um elemento predominante desta época. No século XVII e XVIII, na Europa, a internação dessas pessoas é um grande movimento, um período de segregação e categorização dos indivíduos, internando a loucura pela mesma razão que a devassidão e a libertinagem. Estes medos medievais retornam no século XIX, reavivando as ansiedades sociais, principalmente nas cidades, onde o pânico se alimenta dos mitos morais de afastamento e exclusão de determinados grupos sociais.

A cidade é questionada como fonte de possíveis ameaças para seus habitantes e torna-se a experiência mais insólita entre 1830 e 1840 em diversos paises na Europa e também na América do Norte. Com um processo de crescimento muito acelerado, tumultuado, incontrolável, perturba e transtorna o homem comum sem saber como se posicionar diante do ineditismo da situação. Perplexo, despojado de recursos para compreender a realidade, o este homem manifesta uma forma singular de angústia e um sentimento de impotência – diante de tal mudança. Esse imaginário do espaço urbano questiona a civilização criada pelo sistema capitalista e apresenta personagens cindidos em relação a si mesmos e ao espaço em que circulam como estrangeiros, quase exilados, alheios ao próprio cotidiano. A vida cotidiana na cidade e na metrópole é marcada por sinais que estabelecem comunicação difícil e distorcida, não cabendo à forma literária tornar esse lugar legível e transparente, confortável e pacificado.

O escritor americano Edgar Allan Poe, ao contrário de escritores como Charles Dickens, Eugene Sue, Victor Hugo ou Charles Baudelaire, não faz uma abordagem direta do tema da cidade em sua obra, mas ela ocupa um lugar decisivo no conjunto. A predominância de mansões sombrias, perdidas em regiões abandonadas, castelos decadentes, definhando às margens de precipícios e pântanos medonhos, apropriados ao figurino gótico da época são elementos profundamente enraizados na obra; mas o que torna sua obra extraordinária é a assimilação dos espectros urbanos, oriundos do burlesco popular.

Junto às idéias de estética e composição, Poe agiliza o conto como a forma literária mais adequada ao ritmo da vida urbana moderna. Diferente de seus contemporâneos, ele não fala sobre a cidade, mas parece antes metamor­fosear-se na voz pela qual a experiência desenraizada da vida na metrópole procura pronunciar a sua identidade inconsistente. Sua melancolia não procede da razão, nem da moral e sim da solidão em que a metrópole enclausura cada um dos seus milhares ou milhões de habitantes.

O sentimento de Poe em relação à cidade é semelhante ao de Baudelaire: oscila entre a sedução embriagadora e a amargura nostálgica. Revela um vazio não preenchido, um elo perdido difícil e impossível de se resgatar, sem permitir ao homem o exercício de sua plenitude, deixando-o com seus fragmentos soltos, na angústia do desencontro, na desigualdade e incompletude. A cidade leva o homem a esconder a solidão e a melancolia.

“ O homem na multidão” e “Um Aperto” são contos em que o tema da cidade ganha feições estranhas e magnetizam os sentidos; o primeiro, é mais conhecido e foi analisado por Walter Benjamin (2000); o outro é menos conhecido, sem tradução para o português em nenhuma das inúmeras antologias dos contos de Poe em circulação até o momento. Nesses dois contos, Poe nos transmite uma visão trágica da grande cidade, identificando-a com a morte, em maneiras diversas.

“O homem na multidão” forma um paradigma da cidade moderna. Praticamente sem enredo intrigante, o conto se mantém a partir de impressões e emoções extremamente densas que criam uma atmosfera bizarra e envolvem, hipnotizam o narrador, arrastando-o a um comportamento impulsivo irresistível. Um indivíduo passa os dias longos de sua convalescença junto à janela de um café londrino e distrai-se apreciando a movimentação das pessoas em seus percalços de um dia de trabalho. É um conjunto amorfo, agitado, e isto o fascina.

Aos poucos, passa a distinguir e destacar características de vários indivíduos, pequenos funcionários e burocratas, pobres e marginais da sociedade. Fascinado e exaltado, ele decide seguir os passos de um velho que o intriga. Suas peripécias na caminhada atrás do outro pelas ruas de Londres, dia e noite, são narradas com minúcia: desfilam diante de si os tipos, a arquitetura, os hábitos, num quadro preciso que o narrador vai traçando com habilidade, construindo a nossa frente o perfil de uma cidade enigmática, em puro estado de ebulição:

O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas um itinerário que nos !e­vou aos limites da cidade, para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessado. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. À débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas, arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. (.137)

O narrador não realiza o seu intento; por mais acentuada que seja sua capacidade de observação, por mais informações que ele tenha sobre os signos que compõem a cidade, e sobre os labirintos por onde transita um homem no meio da multidão, o velho permanece ilegível. O narrador não entende por que motivo aquele homem anda tanto, e a esmo, sem cansaço e sem objetivo, uma máquina de caminhar cujo modo de funcionamento lhe escapa:

Este velho - disse comigo, por fim - é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. E o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hartulm Animae e talvez seja uma das mercês de Deus que es lasst sich lesen (137).

Poe escolhe uma citação de La Bruyère como epígrafe: “Essa grande desgraça de não poder estar só”. Mas a tensão que se observa na narrativa é justamente entre a massa disforme dos cidadãos, em confronto com a personalidade única e irredutível de cada um tomado isoladamente; a ironia consiste em que todos estão irremediavelmente solitários na multidão, mas essa constatação é tão apavorante, que todos preferem a consciência tácita de estarem condenados ao convívio da massa. Só o flâneur se dá conta desse engano voluntário e prefere levar às últimas conseqüências a ambigüidade dramática desta situação.

Para Benjamin (2000), há algo em comum entre o criminoso e o flâneur: ambos se utilizam do anonimato na multidão, simulando anuência ao comportamento automático da massa para darem vazão a seus instintos anti-sociais. A multidão é o envoltório anódino que ao mesmo tempo estimula, possibilita, oculta tanto o crime quanto à perversão. Na multidão, todos são suspeitos. A sociedade aperfeiçoa técnicas de identificação e controle social – fotografias, impressões digitais, números, endereços precisos. Diante disso, fica mais fácil entender o fascínio e a perseguição compulsiva do narrador – é a si mesmo, à dimensão profunda de sua própria identidade que ele busca. A indeterminação do enredo, a generalidade e ambigüidade do título, não são meras casualidades – somos todos homens na multidão, que engloba como cúmplices o narrador, o velho e o leitor.

O flâneur, a personagem que agita a imagem do homem baudelairiano difere totalmente d'O homem da multidão, conto traduzido pelo autor francês. O flâneur não é um autômato, mas, ao contrário, é um ocioso paradoxal; transforma a ociosidade em valor, quando transforma todo o processo de atendimento coletivo á multidão, como ruas, pavilhões, fábricas e usinas, em instrumentos indiciais a referendar o labirinto emocional despertado pela cidade moderna.

Como um homem na multidão, o flâneur cria uma proteção contra o contato urbano, para poder estar situado sem se comprometer com qualquer envolvimento. Sua atitude, no conto em questão, é a de poder olhar as imagens, as visões passageiras, aprisionadas no fluxo amorfo dos quilômetros das ruas percorridas. Luta e ainda se surpreende com a imagem urbana, em contradição com a linha evanescente que ainda persiste entre o espaço público e a reserva da intimidade. Não está condicionado pelo hábito que automatiza a percepção e impede a apropriação da cidade pelo cidadão, essa doença a que, perplexos, assistimos corroer a imagem da metrópole moderna.

Citando novamente Benjamin, “os seus transeuntes se comportam como se, adaptados para autômatos, já não se pudessem exprimir a não ser de forma automática. O seu comportamento é uma reação ao choque”. (2000:44). Acredito que o conto articula não somente a busca da diferença no meio da igualdade, mas também a percepção da própria individualidade. Enquanto que o conhecimento e a razão se identificam com a metáfora solar, em Poe, a claridade do dia transforma-se na luminosidade artificial dos lampiões. Poe engendra-se na noite, e demonstra o caos, o imperceptível e o sensível oriundos da ausência de razão. Não é a multidão que desperta-lhe o interesse, mas sim a individualidade – perdida “nesse mar tumultuoso de cabeças humanas” (Ibid.).

Para compreendermos melhor o conto, é necessário refletir sobre a teoria de melancolia, comentada em outro trabalho de Walter Benjamin (1984), em que estuda a doutrina dos temperamentos, estudada pela Escola Médica de Salerno. Estes estudos principiam no século XII, e permanecem em vigor até o Renascimento. O melancólico é descrito como uma figura invejosa, triste, avara, gananciosa, desleal, medrosa e de cor terrosa. No século XIX, novas teorias configuram a dimensão do homem maldito: a melancolia está ligada aos caracteres da solidão, da tristeza infindável, da morte, da noite, da cor negra e da loucura, signos amplamente utilizados no conto em questão.

A melancolia encontra-se estreitamente associada à doutrina das influências astrais. Entre essas influências, a mais importante é a exercida por Saturno, que torna as pessoas apáticas, indecisas, vagarosas. A lentidão é uma característica do temperamento melancólico. Desse modo, segundo Susan Sontag,

O caráter melancólico é perseguido pela morte; são os melancólicos que melhor sabem decifrar o mundo. Ou melhor, é o mundo que se rende à minuciosa investigação do melancólico, como não se rende a ninguém mais. ( 93)

No conto, o leitor sente a tensão criada pela singularidade e o mistério do velho homem. Em contraste com os narradores de outras histórias, o velho nada faz, nada fala. Seus segredos não podem ser comentados, seu terror está nos próprios pensamentos. Jamais está sozinho, pois seus espectros perseguem, incessantemente. Melancolicamente, ele se perde no anonimato despersonalizado da cidade moderna de Poe.

“A Predicament” (Um aperto), marca um dos contos mais desconcertantes da trajetória literária do autor americano. Estamos em Edimburgo, evocada pelo nome tradicional e significativo de Edina. Poe não procura descrever a cidade. A Signora Psyche Zenobia é a protagonista narradora da história. Seu velho escravo negro Pompeu e uma cadelinha poddle Diana a acompanham numa visita à cidade. Ao avistar uma vulnerável catedral gótica, com uma torre altíssima, Zenobia exclama

Que loucura me possuiu? Por que corri para o meu destino? Fui tomada por um desejo incontrolável de subir até o pináculo capaz de provocar vertigens e daí vislumbrar a imensa extensão da cidade

E sempre acompanhada pelos dois, inicia a subida pelas escadarias; chegando ao topo, percebe, decepcionada, que não existe aberturas para o exterior. Somente um relógio potente e imenso movimenta o lugar, com seus ponteiros na parte exterior do edifício da torre, mostrando as horas para os habitantes da cidade. Uma pequena abertura permite vislumbrar a paisagem; é um pequeno orifício por onde as imensas lâminas de ferro, os braços do relógio, se movimentam e pelo qual, algum encarregado deve manipulá-los. A senhora Zenobia ordena ao escravo que a levante nos ombros, e, curiosa, coloca sua cabeça nesta entrada tão apertada que sua cabeça mal passa, sem perceber o perigo a que se expõe.

Encantada, quase hipnotizada pela vista sublime, ela exclama "O panorama era sublime. Nada podia ser mais magnífico. Eu me entreguei com prazer e entusiasmo ao gozo da cena que tão amavelmente se oferecia diante dos meus olhos" . Ainda sem nada perceber, fica admirando a cena durante muito tempo, até que absorvida pelo cenário, assusta-se por ter algo frio apertando o pescoço.

Percebe, horrorizada, que é o imenso ponteiro do relógio em seu trajeto fatal. Afiado, movimentando-se em sua trajetória circular e incessante, bloqueia, com seu movimento contínuo, o resto do espaço do orifício, sem que ela possa retirar a cabeça. Nada há a fazer. “A agonia daquele momento não pode ser imaginada. Com minhas mãos tentei me libertar daquele espaço, com toda a força possível”.

Em vão; a lâmina continua seu avanço lento, implacável e inexorável, cortando e afundando-se no pescoço da senhora, enquanto o negro foge e a cadelinha, parada aos pés da sua dona, é devorada pelos ratos. O sofrimento é intenso; neste momento a figura observa a cidade como se já não estivesse nela. O sangue de Zenobia corre abundantemente, a agonia se prolonga até que a cabeça, separada do corpo, espatifa-se no meio da rua. "Sem cachorro, sem negro, sem cabeça, o que sobrou agora para a desgraçada Signora Psyche Zenobia? Õ Deus - nada! Eu deixei de ser."

Zenobia é mais um flâneur a observar a cidade. Estrangeira, culta, conhece as artes clássicas, a ponto de só chamar a cidade pelo seu nome arcaico, Edina. Dessa vez, a urbe não aparece identificada com o crime ou a doença. Sua imagem nesse conto é a de um encantamento irresistível e por isso mesmo é com certeza a mais terrível. As figuras que mais aterrorizam os antigos não são propriamente as criaturas que causam espanto e, portanto, compelem à fuga salvadora, mas aquelas que, por sua beleza irresistível, arrastam os homens para um fim inexorável e atroz. A cidade é uma medusa, com seu encantamento irresistível e terrível a arrastar o homem para a perdição inexorável. Ambígua como uma sereia, uma circe de rolos de fumaça, atua com uma força apavorante, provocando vertigens. Vista do alto, reúne seus fragmentos e surge como um emblema de unidade, embora falsa.

O fato marcante, contudo, é que a cidade não é mais pressentida como sendo o conjunto de emoções, gestos e situações suscitadas pela vivência cotidiana de uma comunidade, mas, a partir do estado de definitiva solidão dos indivíduos, como algo externo a cada um, algo unitário e abstrato na sua exterioridade: como um objeto simbólico suscetível de ser instrumentalizado para satisfazer os impulsos e fantasias de cada um. O próprio homem comum procura uma posição elevada para ver, do alto, o conjunto total da cidade; este é um ritual que atrai multidões. Pinturas e dioramas sobre o cenário urbano são encomendadas tornando a cidade uma mercadoria de valor. (O signo máximo desta imagem será a construção da Torre Eiffel no final do século). Poe esvazia a experiência social implícita nas relações da cidade e a transforma numa abstração. Zenobia contempla, embevecida, a grande extensão urbana. E , solitária, perde a vida, presa nas engrenagens da vida moderna, da vida marcada pelo relógio.

O passado sacralizado mostra o tempo vivenciado como um ritual. Com a vida moderna, o maquinismo de um relógio é o símbolo de uma nova visão racionalizada do tempo e de uma nova civilização tecnológica. A parte final do texto repisa insistentemente a idéia da fragmentação e da autonomia assumida por cada uma das partes estilhaçadas. O negro fugiu, a cadelinha foi devorada pelos ratos, mas sua alma permanece sentada num canto, observando melancolicamente o triste fim da sua dona. Os olhos saltados encontram-se na calha e ficam juntos ("possivelmente uma conspiração planejada", comenta ela), assistindo a agonia da infeliz vítima. A cabeça e o corpo se comunicam, jogando o corpo a caixa de rapé para a cabeça, já que não tinha mais o nariz. Nas frases finais a própria Zenobia percebe a magnitude irremediável da tragédia que se abateu sobre ela, decidindo seu destino. A ruptura da cadeia da tradição não significa a gênese de outra corrente, mas a dispersão dos elos - esse é o estigma da modernidade.

Comentários finais

Edgar Allan Poe trabalha as metáforas da modernidade, transformando a linguagem da referência na expressão desrealizada através da obscuridade, opacidade, sugestão. Apresenta uma poética que aliena e inquieta as certezas de sentido, que ele próprio, como escritor, precisa tentar estabelecer. Propicia a ironia do distanciamento e leva o leitor a trilhar a senda do sublime.

Eis a imagem do homem moderno, desenraizado de suas perspectivas, face à simbólica de um imaginário potente – a cidade – a multidão, o habitante das grandes metrópoles criadas pela revolução industrial. Londres, Paris, Nova York, Edimburgo, ou tantas outras.

Nenhum autor do século XIX vislumbrou com tal acuidade a desordenação da cidade, com suas multidões vagando, com homens cujas condutas não são mais reguladas por laços de terra, ou autoridades religiosas ou seculares. Formidáveis em seu número – a cidade e seus filhos formam um signo potencialmente ameaçador em sua suscetibilidade emocional.

Não é a cidade o palco de multidões violentas que em seus ajuntamentos demandavam justiça econômica ou mesmo trabalho, em tempos de escassez; também não é a cidade de Paris, vergada pelo peso de seus filhos em busca do pão; não são os excluídos da história, nem os despossuídos da sociedade em revolta contra a tirania e a opressão.

Mas sim, a cidade como um ser personificado em si mesmo; a metrópole que assume diversas faces, com uma carga de potencialidade aberta para a violência, a impessoalidade da existência e a vastidão do incomensurável, uma força onipresente na consciência do autor, um objeto capaz de ser manipulado, marca da solidão e de sedução. Emblema das perdas e não dos lucros do homem, a cidade de Poe suga o equilíbrio de seus moradores, presos à rotina, à despersonalização, signo de um pressentimento que não encontrou respaldo nos ideais de progresso.

Posso afirmar que, embora Benjamin tenha aludido a Baudelaire como o agenciador da modernidade em termos da poética, é na realidade com o autor americano, que vislumbro a alegoria da modernidade a partir da dramatização de uma escritura emblemática. Em sua representação dos recursos góticos aliados ao tema da modernidade, Poe mostra sua incessante busca pelo infinito, reafirmando o segredo das sombras que todo homem partilha com a humanidade. Faz da psique humana mito e cenário góticos, não para causar arrepios aos leitores, mas para enfatizar o cenário interior.

Seus personagens nos contos lidos não são seres em busca de uma postura determinada, mas sim indivíduos à procura de um ponto indeterminado que é o próprio espaço da criação imaginária, o estágio da criação do poeta, que ao aniquilar as dimensões do real, recua as fronteiras do consciente até o ponto de desintegração.

A associação da imagem da cidade com o sinistro e a morte destoa claramente da visão eufórica do progresso. Seu tratamento da questão é de uma sofisticação cultural surpreendente. Poe não reflete sobre a situação da metrópole pelo estudo da sua fisionomia, mas sim pelo exame cuidadoso de uma sensibilidade altamente excitada e nervosa.

Este aniquilamento se dá nível de elucidação do texto, como uma proposta em aberto; o enigma da vida é um mistério a ser decifrado nas múltiplas viagens ao redor do imaginário humano. A solidão que revela é a pintura de uma arte que agoniza, pois o poeta começa a perder o seu lugar.

Edgar Allan Poe contrapõe o texto e sua leitura, não mais aquele texto “que não se deixa ler”, mas sim um texto que propõe um quebra-cabeça; a genialidade de Poe constrói uma narrativa traiçoeira, enigmática, como uma cidade enigmática, cujo mapa apresenta grandes avenidas cortadas por pequenas ruas e becos, uma espaço limítrofe entre a razão e a imaginação, onde o mistério é jogar o arriscado jogo da leitura. Poe deixa pistas, enigmas que, como charadas góticas, potencializam uma rede de pistas falsas e verdadeiras. Ao tentar decifrá-las, o leitor penetra no labirinto de sua ficção, o espaço onde o homem/leitor moderno encontra o palco de suas próprias trevas.

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