FUTURO DO PRETÉRITO OU PRETÉRITO IMPERFEITO?
A ABORDAGEM DAS GRAMÁTICAS E MANUAIS DE PBE

Adriana Leite do P. Rebello (UFF e PUC-Rio)

Da nossa prática do ensino de português do Brasil como língua estrangeira surgiu o interesse em estudar o emprego do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito do indicativo. Ao colocarmos o aprendiz em contato como o registro informal escrito e falado, constatamos que não sabíamos como assegurar ao aluno estrangeiro como e quando realizar de forma segura e consciente o emprego de um tempo pelo outro. Alguns exemplos nos mostram que a utilização do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito do mesmo modo verbal é freqüentemente possível:

(1) (...) Aí o ministro, acho que da Indústria e Comércio, Fábio Yassuda, que havia promovido aquilo tudo, pôs o cargo à disposição do governo, criou um caso interno, ninguém soube, jornal não publicou. Então disseram: está bem, eu iria ao Japão, fazia o pavilhão e voltava, porque era uma relação internacional já estabelecida. E eu fui. (Caros Amigos. São Paulo: Casa Amarela, 2002, nº 61.)

(2) Fernando do Valle – Ele subestimou essa direita aí, não?

Angeli – Subestimou, achou que ia ser mais poderoso que tudo isso, que o nome dele iria suplantar qualquer acordo, e não suplantou, não. (Caros Amigos. São Paulo: Casa Amarela, 2001, nº 50.)

Os exemplos acima consistem no alvo de nosso estudo: entrevistas coletadas mensalmente no site http://carosamigos.terra.com.br, na revista Caros Amigos, publicada pela editora Casa Amarela. Apesar de termos escolhido a modalidade escrita para compor nosso corpus para análise, constatamos que as entrevistas da referida revista buscam refletir o mais fielmente possível a modalidade falada da língua portuguesa do Brasil – modalidade na qual ocorre com maior freqüência o uso do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito. No exemplo (1), o entrevistado utiliza em um mesmo período o futuro do pretérito – através da estrutura composta pelo verbo IR no futuro do pretérito e o infinitivo do verbo principal – e também o pretérito imperfeito. Por que há tal variação? Será que elas apresentam o mesmo valor? Com que intenção o falante as utiliza?

Em geral, as gramáticas e manuais de ensino do português como segunda língua não tratam do emprego do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito satisfatoriamente, pois não abordam de maneira clara como, quando e em que circunstâncias pode-se empregar um tempo verbal pelo outro. Da mesma forma, a tradição gramatical não explora de forma exaustiva o tema, desconsiderando os casos inadmissíveis de emprego do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito, tampouco orientando o aprendiz a utilizar de forma segura e consciente uma forma pela outra.

Para os falantes nativos da língua portuguesa, não seria problema fazer tal escolha, pois a realizariam de forma intuitiva. No entanto, de que meios o aprendiz estrangeiro dispõe para fazer o emprego correto de um tempo verbal pelo outro, já que os manuais didáticos e gramáticas de português como segunda língua não tratam adequadamente do referido problema? Desta forma, nosso estudo pretende apresentar uma abordagem destes materiais e verificar se conseguem proporcionar ao aprendiz estrangeiro meios de utilizar um tempo verbal pelo outro de forma consciente e segura.

Em geral, as gramáticas e manuais de ensino do português como segunda língua abordam o emprego do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito, entretanto o fazem de maneira superficial, sem explicitar como, quando e em que circunstâncias ele ocorre. Apresentamos aqui os autores que nos oferecem exemplos mais significativos para este estudo, a saber: Patrocínio e Coudry (1994); Marchant (1997); Laroca, Bara e Pereira (1992).

Em Patrocínio e Coudry (1994), encontramos uma referência ao uso do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito como uma forma coloquial de solicitação: “A senhora poderia dar um recado a ele? (A senhora podia...?) (idem, ibidem, p. 155). Os autores também ressaltam que “as formas ia viajar e viajava no lugar de viajaria são modelos alternativos da linguagem coloquial”, quando sistematizam as orações condicionais: “Se eu pudesse viajaria com você” (idem, ibidem, p. 184). Neste manual, a abordagem do nosso alvo de estudo é feita de maneira superficial, pois o pretérito imperfeito não é usado pelo futuro do pretérito apenas nas formas de solicitação.

Mercedes Marchant (1997) afirma que “o futuro do pretérito é, com freqüência, substituído pelo imperfeito do indicativo” e exemplifica: “Se Moema não estivesse tão ocupada, escrevia o relatório hoje.” (idem, ibidem, p. 142). O termo “com freqüência” é impreciso, já que não oferece ao aprendiz meios seguros de substituir o futuro do pretérito pelo pretérito imperfeito.

Laroca, Bara e Pereira (1992) somente se referem ao problema por nós proposto no que tange aos graus de polidez, mas não deixam claras as nuances que o emprego do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito pode imprimir ao enunciado (idem, ibidem: 35).

Todas as gramáticas do português como segunda língua por nós analisadas tratam do nosso objeto de estudo, com exceção de Masip (2000). No entanto, os autores não apresentam um estudo aprofundado do problema, o que os leva a estabelecer equivocadas regras gerais de uso do pretérito imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito. A seguir, detalharemos cada obra por nós pesquisada.

Prista (1966: 57) afirma que o imperfeito do indicativo é freqüentemente usado no português no lugar do futuro do pretérito e exemplifica: “Desejava ler este livro. / Não sabia que eles vinham.” No primeiro exemplo, temos o verbo DESEJAR no pretérito imperfeito, utilizado para uma solicitação, no entanto, o verbo GOSTAR também é usado com sentido similar, mas não no mesmo tempo verbal (não no Brasil): Gostava de ler este livro. (?). Considerando o segundo exemplo, temos o verbo VIR, no pretérito imperfeito, em uma oração subordinada substantiva objetiva direta. No exemplo a seguir (exemplo forjado), temos uma estrutura semelhante, mas que na qual não se pode empregar o mesmo tempo pelo futuro do pretérito: Não sabia que eles me convidavam.(?)

Thomas (1974: 68) afirma que o pretérito imperfeito do indicativo pode ser utilizado pelo futuro do pretérito “em todas as circunstâncias”: “For the conditional in any circunstances: (normally expressed in English by the auxiliary would).” E exemplifica em português, traduzindo a seguir seus exemplos para o inglês:

Eu queria ir. / I’d like to go. – Ele disse que ia. / He said he’d go. Sabemos que o imperfeito do indicativo não pode ser sempre usado no lugar do futuro do pretérito do indicativo, então torna-se equivocada a afirmação feita por Thomas.

Em Hutchinson e Lloyd (1996), encontram-se algumas referências ao tema de nosso estudo. As autoras afirmam que o pretérito imperfeito do indicativo é usado quando o falante quer fazer solicitações de forma polida e ressaltam “Polite request (in the sense of ‘would’ or ‘could’)”, ou seja, declaram que o imperfeito do indicativo está sendo usado pelo futuro do pretérito, representado pelas construções em que os referidos auxiliares aparecem na língua inglesa. A seguir, confirmam tal fato através do exemplo: “Se eu tivesse dinheiro, comprava um iate.”, afirmando que o imperfeito do indicativo pode ser usado pelo “conditional tense” – futuro do pretérito (idem, ibidem: 59). Ao abordarem o tempo futuro do pretérito em sua gramática, as autoras mais uma vez afirmam que este tempo é geralmente substituído pelo imperfeito do indicativo: “The Conditional is usually replaced by the Imperfect: Se eu tivesse tempo ia à praia”.(idem, ibidem: 64). Na seção destinada ao emprego do pretérito imperfeito do subjuntivo, mais uma referência ao nosso objeto de estudo pode ser encontrada: “The Past Subjunctive is also used to Express a condition to a fact that probably will not happen. It can be used with the Conditional or the Imperfect: Se eu tivesse dinheiro, compraria/comprava um barco.” (idem, ibidem: 68). Embora, as autoras ressaltem a possibilidade do emprego do imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito do indicativo, não garantem através de um número satisfatório de exemplos que tal substituição pode ser feita seguramente de maneira aleatória.

Perini (2002) afirma que o pretérito imperfeito do indicativo “às vezes” substitui o futuro do pretérito, na língua falada, exemplificando: “Cristiana me disse que mandaria um cartão. / Cristiana me disse que mandava um cartão. / Se eu tivesse tempo, eu faria uma quiche para você. / Se eu tivesse tempo, eu fazia uma quiche para você.” (idem, ibidem, p. 240). Como já constatamos anteriormente, o termo “às vezes” é demasiado vago para que o aprendiz possa realizar com segurança o uso do imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito. Entretanto, em um outro momento de sua obra, Perini faz uma tentativa de sistematizar o uso de um tempo pelo outro, apresentando os seguintes exemplos: “Se você quisesse eu fazia (faria) isso para você”.(o verbo como um complemento de uma sentença que exprime um fato contrário); “O cara prometeu que pintava (pintaria) a casa em três dias.”/ “Ela jurou que pagava (pagaria) tudo em maio.” (como complemento de verbo que expressa uma promessa); “Pensei que você vinha (viria).” (como complemento de verbo que expressa suposição); “Todos disseram que você chegava (chegaria).” (fragmento de informação). O autor afirma que, quando o futuro do pretérito expressa futuro em relação ao passado, não pode ser substituído pelo pretérito imperfeito do indicativo, como em: “Foi apresentado a Pereira, que mais tarde seria eleito senador.” Contudo, há casos em que esta substituição é possível, a saber: Foi apresentado a Pereira, que mais tarde elegia-se senador./ ... devia ser eleito senador. / ... podia ser eleito senado (exemplos forjados)r.

Outras estruturas não abordadas pelas obras pesquisadas nos fazem pensar sobre a impossibilidade do uso do imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito ou vice-versa, como em:

(3) Wagner Nabuco – O senhor diria que, do ponto de vista da política externa brasileira, desde a independência, 1822, o governo Getúlio ou a influência do Getúlio de 1930 a 1950 são um espaço diferenciado, em que se afirmaram um projeto nacional e uma política externa que representassem esse projeto nacional? (polidez) (Caros Amigos. São Paulo: Casa Amarela, 2002, nº 51.)

(4) Juca Kfouri – Falando em lato sensu, queria que você falasse do seu projeto em defesa da língua portuguesa, que te custa, por exemplo, ser ridicularizado pela revista Veja. (polidez) (Caros Amigos. São Paulo: Casa Amarela, 2002, nº 52.)

No exemplo (3), o elemento diria não pode ser substituído por dizia, pois o futuro do pretérito aqui quer expressar polidez na pergunta e, se usarmos o imperfeito do indicativo, atribuímos à forma verbal a idéia de passado – o que não é a intenção do entrevistador. No exemplo (4), a escolha da forma quereria pela forma queria não é muito comum; sendo mais freqüente o emprego do verbo GOSTAR no futuro do pretérito: gostaria.

Devido à falta de meios através dos quais o aprendiz de português como segunda língua possa saber como utilizar o imperfeito do indicativo pelo futuro do pretérito de forma consciente e segura, faz-se necessário que o tema seja abordado de maneira profunda, oferecendo tanto ao aluno quanto ao professor uma sistematização mais ampla e eficiente.

Referências bibliográficas

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CELLI, Rosine. Passagens – Português do Brasil para estrangeiros. Campinas: Pontes, 2002.

CUNHA, Celso, CINTRA, Lindley. Nova gramática do Português contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

CUNHA, Celso. Gramática de base. 4ª ed. Rio de Janeiro: FAE, 1986.

HUTCHINSON, Amélia P., LLOYD, Janet. Portuguese: an essential grammar. London – New York: Routledge, 1996.

LAROCA, Maria Nazaré de Carvalho, BARA, Nadime, PEREIRA, Sonia Maria da Cunha. Aprendendo Português do Brasil. Campinas: Pontes, 1992.

MARCHANT, Mercedes. Português para estrangeiros – nível avançado. Porto Alegre: AGE, 1997.

MASIP, Vicente. Gramática de Português como Língua Estrangeira – Fonologia, ortografia e morfossintaxe. São Paulo: EPU, 2000.

NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: UNESP, 2000.

PATROCÍNIO, Elizabeth Fontão do; COUDRY, Pierre. Fala Brasil. 5ª ed. São Paulo: Pontes, 1994.

PERINI, Mario A. Modern Portuguese: a Reference Grammar. Yale Univ Press, 2002.

PRISTA, Alexander da R.. Essential Portuguese Grammar. New York: Dover, 1966.

CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela, 2002, nos 50, 51, 52 e 61.

ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. 28ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.

THOMAS, Earl W. A grammar of spoken brazilian Portuguese. Nashville: Vanderbilt University Press, 1974.

 

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