GÊNEROS TEXTUAIS, PONTUAÇÃO E ENSINO

Tania Maria Nunes de Lima Camara (UNISUAM)

Questões relativas ao ensino da língua portuguesa povoam o universo dos professores, que, a todo momento, buscam respostas para as dificuldades com as quais se deparam no cotidiano da sala de aula. É sabido que discussões acerca de caminhos a trilhar, no sentido de fazer desse ensino uma prática ao mesmo tempo eficaz e prazerosa, têm ocupado um tempo considerável daqueles que se vêem como uma imagem muito diferente daquela que projeta simplesmente um especialista que despeja seus conhecimentos sobre um grupo de alunos, com a finalidade única de mensurar o quanto ficou retido de suas explanações semanais.

A democratização da escola, por si só, já alterou algo dessa realidade, na medida em que promoveu a inclusão de alunos anteriormente deixados à margem. A falta de domínio da língua culta, modalidade esta que, até então, era de domínio do aluno que freqüentava a escola, determinou mudanças na condução dos conteúdos escolares. Cabia agora à escola suprir falhas que as famílias não eram capazes de superar, no sentido de garantir a esse aluno que chegava condições plenas de disputar, democraticamente, com outros mais favorecidos, em igualdade de condições, espaços no ensino superior e no mercado de trabalho

A partir dessa nova realidade estabelecida, passou a escola, além da informação, a cuidar também da formação ampla, abrangente e responsável. A construção da cidadania mostrava-se tarefa da escola: formar o cidadão cônscio de seus direitos e deveres, capaz de reivindicar tudo quanto lhe é devido.

Focamos nesta comunicação especificamente o Ensino Médio, no qual também atuo até o presente momento, com muito me orgulho. Um espaço no qual me empenho e que muito retorno me dá, em termos de prática acadêmica.

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, na área Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, estão destacadas as competências que, segundo Nunes (1997), “... dizem respeito à constituição e formalização de todos os conteúdos curriculares, para a construção da identidade e o exercício da cidadania”.Desse modo, caberá à escola promover atividades e selecionar conteúdos relacionados às diferentes formas de expressão, entre as quais a língua portuguesa se mostra imprescindível. Amplia-se, pois, o papel do ensino da língua, considerados os aspectos tradicionalmente apresentados: leitura, gramática e redação.

É nos próprios PCN que se encontra o apoio daquilo que se acabou de afirmar. Retomando a área anteriormente aludida, entre as competências e habilidades a desenvolver, estão aquelas que permitam ao aluno desenvolver: 1– “analisar, interpretar e aplicar os recursos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização e estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção”; 2– “compreender e usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade” (p. 114).

Portanto, a linguagem – especificamente a língua portuguesa – deve servir de ferramenta no desenvolvimento da percepção, da leitura da realidade circundante. A tão propalada, e tão nova à época em que foi trazida a público, leitura do mundo de Paulo Freire mais uma vez apresenta-se, agora em nível nacional, como caminho do qual o professor não se pode afastar, na qualidade de orientador de sua(s) turma(s).

O contato do aluno com a língua portuguesa no dia-a-dia ocorre , em geral, de maneira bastante distinta daquela como trazida nas aulas. Considerado o espaço do texto escrito – praticamente a única modalidade trabalhada no ambiente escolar -, com ele freqüentemente ocorre o contato fora da escola, cumprindo cada texto um papel social específico. Por isso, a proposta dos PCN é, segundo Kleiman (2005), “... fundamentar o ensino da língua materna (...) nos gêneros do discurso” (p. 7), considerada toda a sua variedade; só assim o aluno vivenciará a língua efetivamente como elemento de integração social.

Tal cuidado, porém, dificilmente ocorre no espaço da sala de aula, não obstante a farta pesquisa existente sobre o tema, os diversos fóruns de discussão existentes e as inúmeras publicações relacionadas ensino. Em geral, por uma série de motivos, a tradição acaba por reafirmar-se como procedimento a seguir.

No campo da redação, por exemplo, os “tipos de textos” – descrição, narração e dissertação -, que, na verdade, são modos de organização do discurso, aparecem como únicas formas de prática textual, tradicionalmente cobradas a partir de uma espécie de “receita” estabelecida.

No dizer de Oliveira (2004), “... é só no ensino de redação comercial e oficial, presente às vezes nos programas de alguns cursos médios profissionalizantes, que a tradição escolar se preocupa com gêneros existentes fora da escola”, quando “o aluno tem oportunidade de redigir simulando situações reais de comunicação” (p. 189), como se apenas àquele que buscou esse tipo de ensino interessasse a aproximação com outras formas de produção escrita.

O trabalho de sala de aula, no tocante à língua portuguesa, mostra-se, dessa maneira, muito distanciado da realidade com a qual o aluno irá defrontar-se. Se, à sua volta, estão “outdoors”, anúncios publicitários, notícias de jornal, manuais de instrução, crônicas, editoriais, receitas culinárias, bulas de remédio, contratos de prestação de serviços, poemas, romances, entre outros, deve o professor trazer essa realidade para dentro de sua sala, no sentido de promover um ensino proficiente, dentro de um universo amplo no qual está atualmente inserida a educação.

Mostra-se, portanto, evidente a importância que os gêneros textuais assumem na consecução de tal propósito. Concordamos com Oliveira (2004), para o qual “É preciso estimular o aluno a produzir, por escrito, gêneros até aqui não incluídos na redação escolar” (191).

Embora, até o presente momento, nossa atenção tenha-se voltado para a produção textual, não podemos esquecer que o trabalho com os diferentes gêneros relaciona-se também com as atividades de leitura. Ler é muito mais do que decodificar palavras registradas na folha e papel; ler é produzir sentido; é compreender, interagir. É a forma mais plena de colocar o indivíduo com a realidade que o cerca, simbolicamente representada no texto, servindo a língua portuguesa, em seus diferentes níveis de expressão, de instrumento para a materialização das intenções mais distintas. Por conseguinte, o texto, assim tratado, mostra-se essencial, necessitando ocupar o centro também dos estudos lingüísticos, o que também constitui orientação dos PCN.

No tocante aos aspectos gramaticais, os recursos de que a língua dispõe deverão mostrar-se como instrumentos de codificação e de decodificação, consideradas as intenções de maior ou menor expressividade. Ou seja, deve ser o aluno capaz de, por exemplo, perceber que “o que é virtude num gênero textual pode ser defeito em outro”, segundo Oliveira (2004: 192), o que certamente fará dele um leitor/autor proficiente.

Desse modo, no âmbito dos níveis de linguagem, ater-se ou não ao registro formal culto estará diretamente ligado ao gênero do texto com o qual o aluno está interagindo em determinado momento. Perceber, por exemplo, que textos científicos, burocráticos, jurídicos, didáticos pressupõem o uso formal da língua, enquanto os bilhetes pessoais, as histórias em quadrinho, os “chats” dispensam tal envolvimento e que um terceiro grupo de textos poderá seguir ou não o padrão culto, de acordo com as intenções comunicativas do autor. Agir dessa maneira é efetivamente desenvolver um ensino lingüístico produtivo, voltado para a reflexão no tocante à escolha de elementos que adequarão o texto a um propósito claro e definido.

Considerando esse aspecto, já que nosso foco, como se disse anteriormente, é o Ensino Médio, consideramos, no momento, serem extremamente importantes algumas considerações acerca do tratamento dispensado ao texto literário. Na qualidade de gênero textual, e, por conseguinte, com um papel social definido, também nele estão expostas as intenções do autor, as quais conduzirão à maior ou à menor obediência aos procedimentos estabelecidos pela tradição gramatical.

Minha condição de professora também desse segmento de ensino me faz refletir sobre a maneira como o texto literário é trabalhado na sala de aula, o que, algumas vezes, me leva a desagradáveis surpresas.

O distanciamento do texto propriamente dito caracteriza a maior parte dos procedimentos. Concordamos com Pereira (2004), para quem “...a cerimônia impede a proximidade, inibe o singelo ato de intimidade quando nos apossamos de um texto – matéria lingüística– que nos mostrará a Língua Portuguesa em plenitude ...” (p. 175). Não há dúvida de que aí se encontra o cerne do problema existente: o texto literário não é apreciado intimamente; não é apresentado como produto dos recursos existentes na língua portuguesa, como materialização das possibilidades que, não a norma, mas o sistema lingüístico oferece. Nele, a língua mostra-se matéria-prima aberta a satisfazer os desejos expressionais daquele de que dela faz uso estético.

Deve, portanto, o aluno ser orientado no sentido de perceber no texto não só aspectos ligados ao conteúdo, aos personagens; antes, a linguagem deverá ser o foco de observação, aquela grande responsável pela maneira como os efeitos se produzem: os perfis criados, os estranhamentos obtidos, os envolvimentos suscitados, traços que colocarão cada autor como construtor ou desconstrutor da norma padrão.

Assim, a sintaxe, a morfologia, a fonologia mostram-se meios para se chegar a um fim, ou a vários fins. Ao lado dessas áreas, importante também é o papel da pontuação, na sua condição de signo: ao lado da função de demarcadora dos elementos sintáticos, a condutora rítmica, aliada na produção de sentido.

Enquanto no discurso oral conta o sujeito com uma variedade de recursos auxiliares que se inter-relacionam no intuito de concretizar uma intenção, dispõe o discurso escrito, em comparação ao outro, de um número reduzido de ferramentas: somente a palavra e a pontuação. E nem por isso deixaram de ser produzidas maravilhas.

Seguir ou não o padrão sintático do emprego da pontuação será uma questão de escolha daquele que produz o texto, consideradas também outras possibilidades, tais como o ritmo, por exemplo. Se “Catar feijão se limita com escrever”, como bem o disse João Cabral de Melo Neto, um de nossos poetas maiores, seleciona o autor os grãos dos quais deseja dispor, sem desconsiderar as “pedras” – os grãos “mais vivos”, aquelas que açulam “a atenção”. Do mesmo modo que anteriormente abordamos o fato de alguns gêneros estarem diretamente compromissados com a língua culta, enquanto outros, necessariamente ou não, subvertem esse modelo, o mesmo se dá no que diz respeito à pontuação: na verdade, o gênero determina o emprego. E certamente o literário é aquele que mais possibilidades apresenta sobre tal aspecto. Portanto, deixar de empregar vírgulas em ambientes sintáticos nos quais a tradição gramatical indica o emprego; iniciar textos com reticências ou com pontos de interrogação, sem que nada houve sido anteriormente expresso; usar excessivamente dois-pontos em construções nas quais as regras gramaticais indicam vírgulas, por exemplo, devem ser entendidos como procedimentos legítimos, decorrentes de um propósito, e, por isso mesmo, necessário para a produção de sentido.

Desse modo, é possível concluir que quanto maior for a exposição do aluno a diferentes gêneros de texto, maior será a sua percepção acerca da pertinência do uso dos recursos lingüísticos, incluídos, nesse conjunto, os sinais gráficos. Só dessa maneira será possível fazer com que nosso aluno reconheça o aprendizado da língua portuguesa como meio de levá-lo a interagir produtivamente no meio social.

Referências

KLEIMAN, Ângela B. “Apresentação”. In: DIONISIO, Ângela P., MACHADO, Anna R. e BEZERRA, Maria A. Gêneros textuais e ensino. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

NUNES, Clarice. Diretrizes curriculares nacionais: ensino médio. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

OLIVEIRA, Helênio F. de. “Os gêneros da redação escolar e o compromisso com a variedade padrão da língua”. In: HENRIQUES, Cláudio C. e SIMÕES, Darcilia. Língua e cidadania: novas perspectivas para o ensino. Rio de Janeiro: Europa, 2004.

PEREIRA, Maria Teresa G. “O texto literário na escola: perspectivas de abordagem”. In: HENRIQUES, Cláudio C. e SIMÕES, Darcilia. Língua e cidadania: novas perspectivas para o ensino. Rio de Janeiro: Europa, 2004.

 

 

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