A CRÍTICA TEXTUAL E O PATRIMÔNIO CULTURAL

Fabiana da Costa Ferraz Patueli

 

Este trabalho pretende assinalar as questões que envolvem a importância da Crítica Textual quanto à fixação de um texto, livre de deturpações e censuras, por meio do empenho de resgatar a memória de uma sociedade, contribuindo assim para a formação de um patrimônio sócio-cultural consistente.

Mas, para que nós pesquisadores, e por que não os leitores, possamos nos utilizar dos textos impregnados de discursos representativos da memória de uma sociedade, devemos fazer uso também da Crítica Textual, cujos objetivos vão de encontro com o ato de resguardar a memória de uma sociedade através da restituição, conservação e fixação dos textos escritos ao longo do tempo, publicados em seus mais variados suportes. Desta maneira:

A Crítica Textual, com o seu método rigoroso de investigação histórico-social, com as preocupações fundamentais de averiguar a autenticidade dos mesmos e a fidedignidade da sua transmissão através do tempo, e de cuidar de interpretá-los, prepará-los e reproduzi-los em edições que se identifiquem ou se exprimem o mais possível da vontade dos autores ou dos testemunhos de que temos conhecimento [...] (Silva, 1994: 57).

Tendo em vista que um texto modificado, mesmo inconscientemente, dá margens a interpretações não fidedignas ao que o autor pretendia fornecer com a sua produção; levando, portanto, à transmissão e à fixação de um discurso com o seu sentido alterado. Isto ocorre devido à circulação e à transmissão dos textos no decorrer do tempo, sendo o uso da edição anterior como matriz é um dos poucos critérios utilizados para a escolha do texto de base para uma nova publicação.

A Crítica Textual, atualmente, pode facultar a uma obra, por meio do exame e da comparação dos testemunhos ou dos documentos que formam a sua tradição, o resgate integral ou parcial de toda a sua história, da elaboração pelo autor ou intervenção provocada pela forma que o texto foi transmitido ao longo do tempo, informações que tornam o produto do trabalho do crítico textual mais próximo ou mais fidedigno do texto proposto ou da última vontade materializada pelo autor ou texto final. De encontro com esta idéia, este trabalho de pesquisa da Crítica Textual concorda com a Professora Sônia Maria van Dijck Lima que cita sobre a necessidade de pesquisas profundas que vão de encontro à superação das dificuldades das próprias instituições de pesquisas que estão:

[...] na dependência direta de proposições de trabalhos que se voltem para os documentos de arquivos, para os museus e para a garimpagem de bibliotecas; que treinem novos pesquisadores e que tenham, principalmente o necessário o apoio oficial na forma de bolsas e de financiamento capazes de oferecer as condições objetivas para a conservação e a exploração de acervos documentais. Apesar de carência de uma política efetivamente comprometida com nosso patrimônio cultural, tem crescido o numero de pesquisadores que procuram no silencio dos acervos dados reveladores e de interesse para a cultura nacional (Lima, 1993: 21).

O árduo labor de restituição dos caminhos percorridos por um texto exige que a Crítica Textual recorra a pesquisas que envolvam tanto o cotejo das edições existentes da obra quanto o cotejo com os manuscritos, bem como o relacionamento do autor com os editores, o momento histórico, as correspondências e outros tipos de anotações e testemunhos que muitas vezes se encontram em seus arquivos pessoais, comumente denominados de espólio ou de acervos.

Desta forma, podemos dizer que

Decorrendo do colectivo e orientando-se para o colectivo a que passa a pertencer, a obra literária incorpora-se, então, num património cultural cuja salvaguarda é exigida pela necessidade de se preservar uma memória comunitária de vivencias, valores e experiências históricas que nesse património se vão sedimentando (Reis; Milheiro, 1989: .25).

Segundo César Nardelli Cambraia, podemos perceber que no cotejo de mais de uma edição/publicação, as modificações autorais realizadas pelo próprio autor podem acarretar uma nova publicação, após o retorno ao trabalho sobre o texto publicado. Neste caso, podem ocorrer diferenças tão profundas entre as edições que chegam a conter versões diferentes de uma “mesma” obra.

Mas, o que mais nos interessa é o reconhecimento da estatura de um texto literário como matéria legítima de determinação do patrimônio cultural de uma sociedade num determinado espaço temporal. Para este fim, faz-se necessário o conhecimento sobre o caminho percorrido pelo texto, verificando se é assegurada a integralidade do mesmo quanto ao seu conteúdo ou a legitimidade de sua autoria.

Devido a isto, torna-se importante à utilização do leitor/ pesquisador das Edições Críticas que possibilitam a recuperação do laborioso caminho percorrido pelo autor e permite também identificar quais as publicações que deixam a desejar em termos de qualidade editorial.

Logo, apreciar um texto conforme foi elaborado pelo autor é fazer valer um patrimônio legítimo e apreciar um labor autoral fidedigno:

[...] da génese da narrativa à sua escrita, instituem-se patamares nem sempre susceptíveis de distinção rígida, mas necessariamente ilustrando fases de um processo lento e laborioso: a definição e estabelecimento isolado de elementos como as personagens do relato ou o espaço que o enquadra, a configuração orgânica de acções e das estratégias narrativas que melhor as sirvam, são fases em que o escritor concentra um tempo próprio do seu trabalho literário (Reis; Milheiro, 1989: 14). 

Portanto, este estudo possui o intuito de ressaltar a importância do trabalho desenvolvido pela Crítica Textual que pretende fixar um texto confiável em termos de sua qualidade editorial.

Na verdade, contribui a Edição Crítica com “fartos elementos comprobatórios da relevância do trabalho de restituição dos textos à sua versão autêntica e definitiva” (Silva, 1978: 101), cujas variações são decorridas muitas vezes de erros tipográficos que podem causar turbulência de sentido aos leitores desavisados, como podemos verificar no romance Til de José de Alencar, a mudança de “abraço” por “braço”, por exemplo.

Expurgar e contrapor estes erros, concluídos e cotejados pelas pesquisas realizadas no trabalho da Crítica Textual tem como finalidade enriquecer o patrimônio cultural. Levamos também em conta que algumas obras literárias possuem além dos erros tipográficos e de intromissões ou cortes, realizados consciente e inconscientemente por terceiros, variações introduzidas pelos próprios autores de uma edição à outra, de tal forma que cada uma pode representar uma versão. Esta última forma de modificações introduzidas a um texto é um exemplo vivo, a obra de Martim Cererê de Cassiano Ricardo, que possui variações e mudanças de ordem observadas em todas as edições publicadas em vida do autor de segmentos e títulos, fato que nos leva a acreditar que o autor pôde mudar o texto conforme a recepção do público leitor ou conforme a adequação do tema proposto no texto à realidade em que ele é editado.

Assim, serve a Crítica Textual como um importante aliado ao resgate da memória de uma sociedade, já que procura restituir os textos literários ao projeto literário do autor, a fim de reconfigurar legitimamente o legado cultural em que se configura as obras literárias escritas em uma determinada época.

Desta forma, constituem-se como objetivos deste estudo: mostrar a importância do trabalho da Crítica textual ao fixar um texto, o mais próximo possível, da forma que foi produzido pelo autor a fim de resgatar a memória histórico-social, dos valores culturais e os estereótipos de cada sociedade num determinado espaço temporal; discutir os pressupostos da Crítica Textual que viabilizam a restituição e a fixação da memória a partir da circulação e a transmissão dos textos que se determinam como patrimônio cultural; pontuar os problemas e suas conseqüências pertinentes à transmissão e à difusão dos textos sem critérios ou análises, submetidos às modificações autorais e não autorais, e suas conseqüências ao patrimônio cultural de uma sociedade; analisar os critérios e avaliações adotadas pelas Edições Críticas que pretende conservar e restituir o patrimônio cultural.

A pesquisa pretende fazer um diálogo com os problemas encontrados na transmissão de um texto literário que podem deturpar o sentido, a forma lingüística ou a imagem cultural de uma sociedade ou, conforme disposto nas próprias Edições Criticas.

Através do labor autoral, constitui-se a palavra o alto grau do conhecimento. E como o homem em tudo emprega sua criatividade; os contos, as poesias, os romances se tornaram instrumentos de veiculação da imagem de um língua, de uma cultura, isto é, dos aspectos muitas vezes esquecidos de uma sociedade que se procura recuperar. Mas para isto, faz-se importante o trabalho da Crítica Textual que busca

[...] indicar toda a sorte de indagações sobre os textos de qualquer natureza – históricos, religiosos, filosóficos, literários e científicos [grifo meu]– com a finalidade de preservá-los e de interpretá-los corretamente, o que implicava o trabalho de restituí-los na medida do possível á apresentação original, através de minuciosos estudos comparativos dos testemunhos existentes (Silva, 2002: 54).

Este trabalho de recomposição tem como objetivo a “[...] valorização e divulgação dessa peça [a obra literária] do nosso patrimônio cultural” (Reis; Milheiro, 1989: 11).

 

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