A ficção brasileira contemporânea
e o mercado editorial: o caso Hilda Hilst

Raquel Cristina de Souza e Souza (UFRJ)

 

RESUMO

É cada vez mais notório que a expansão do mercado editorial brasileiro tem influenciado negativamente a relação entre a produção literária e sua comercialização. Assumindo-se como bem de consumo da indústria cultural, a obra passa a ter de seguir os ditames do capital e resumir-se a fórmulas fáceis e palatáveis. Não é por acaso que tal relacionamento - descrito em termos de promiscuidade por certos críticos da sociedade de consumo - tem sido continuamente tematizado nas narrativas de ficção contemporâneas.

Esse é o caso de Hilda Hilst, autora que, cansada da pouca visibilidade apesar da longa carreira, resolve, aos sessenta anos, escrever “umas coisas porcas” a fim de supostamente atingir o grande público - atitude que culmina na chamada trilogia pornográfica: O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d’escárnio. Textos grotescos (1990) e Cartas de um sedutor (1991). O presente trabalho objetiva demonstrar como a escolha pela narrativa licenciosa faz parte de um projeto irônico que visa à reflexão acerca da ditadura editorial e que se viabiliza por meio de dois recursos principais: 1) a ficcionalização de elementos do contexto extra-literário em questão e 2) a utilização consciente de procedimentos próprios da literatura pornográfica como forma de metaforizar e criticar a mercantilização sem peios da arte. Também se pretende mostrar que a reflexão sobre o mercado se desdobra na reflexão sobre a linguagem, de forma que o resultado do projeto irônico hilstiano é uma trilogia metapornográfica altamente elaborada esteticamente e, portanto, de difícil penetração no mercado editorial.

 

É cada vez mais notório que a expansão do mercado editorial brasileiro tem influenciado negativamente a relação entre a produção literária e sua comercialização. Assumindo-se como bem de consumo da indústria cultural, a obra passa a ter de seguir os ditames do capital e resumir-se a fórmulas fáceis e palatáveis. Não é por acaso, então, que tal relacionamento seja descrito em termos de promiscuidade por certos críticos da sociedade de consumo, como Baudrillard (1979), para quem a corrupção mercantilista do sexo (corruption marchande du sexe) pela pornografia equivale à corrupção do trabalho pelos critérios de produtividade (corruption productiviste du travail), e Adorno, o qual defende que o comércio cultural contemporâneo é pornográfico e puritano, porquanto estimula a todo preço o prazer do consumidor ao mesmo tempo em que o priva de satisfazê-lo: “É justamente porque nunca deve ter lugar, que tudo gira em torno do coito” (1997: 132).

Nesse sentido, a opção deliberada e amplamente divulgada de Hilda Hilst pela narrativa pornográfica se insere num contexto maior de crítica ao deslocamento axiológico a que tem sido submetido o fenômeno literário, cada vez mais definido por seu valor de troca e negado em sua finalidade social não pragmática. Cansada da pouca visibilidade apesar da longa carreira, a autora resolve, aos sessenta anos, escrever “umas coisas porcas” a fim de supostamente atingir o grande público – atitude que culmina na chamada trilogia pornográfica: O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d’escárnio. Textos grotescos (1990) e Cartas de um sedutor (1991). A citação do best-seller de Régine Deforges pela autora em entrevista é sintomática a este respeito: “Eu estava muito atrapalhada, só recebia dinheiro da Universidade de Campinas. Não ganhava praticamente nada. De repente, leio sobre aquela mulher ganhando todo aquele dinheirão”.[1] A obra em questão não é em nada pornográfica strictu sensu, pelo contrário, é um romance açucarado e clichê. No entanto, por esse trecho, podemos perceber que Hilda Hilst compartilha da visão daqueles críticos mencionados mais acima, qual seja a de que a indústria cultural é pornográfica por pressupor relacionamentos promíscuos entre o produtor da obra e o responsável por sua divulgação e circulação, já que aquele muitas vezes deve abrir mão de seus princípios em favor das exigências do mercado.[2]

 Apesar de muitos estudiosos insistirem no fato de a trilogia não ser pornográfica de fato, devido ao refinamento das estratégias literárias que elidiriam o pressuposto básico desse tipo de narrativa, ou seja, a excitação física do leitor, esse apelo à literatura licenciosa deve ser encarado como um procedimento irônico que visa a questionar a subserviência da literatura às regras ditadas pelo capital e, porque irônico, necessariamente submete a obra a uma auto-reflexão de seu estatuto ficcional. Dessa forma, ainda que metapornográfica, a trilogia permanece pornográfica e dialoga com grandes representantes do gênero que não se renderam ao apelo comercial que costuma definir esse tipo de narrativa.

Assim é que a obscenidade dos escritos em questão visa em certa medida a metaforizar a teia de conexões espúrias que subjaz às novas regras a que a produção literária está submetida. O exemplo mais significativo desse procedimento pode ser observado na construção da personagem-ninfeta do livro de abertura da trilogia, O caderno rosa de Lori Lamby (CR). Lori é uma menininha de apenas oito anos de idade, supostamente prostituída pelos pais, que adora as “brincadeiras” dos “moços” que a visitam em seu quarto cor-de-rosa – principalmente pela recompensa que recebe deles depois de satisfazer suas excentricidades:

Quem será que inventou isso da gente ser lambida, e porque será que é tão gostoso? Eu quero muito que o moço volte. Tudo isso que eu estou escrevendo não é pra contar pra ninguém porque se eu conto pra outra gente, todas as meninas vão querer ser lambidas e tem umas meninas mais bonitas do que eu, aí os moços vão dar dinheiro pra todas e não vai sobrar dinheiro pra mim, pra eu comprar as coisas que eu vejo na televisão e na escola. Aquelas bolsinhas, blusinhas aqueles tênis e a boneca da Xoxa. (CR, p. 18)

Fica clara pelo trecho acima a presença incômoda da sociedade de consumo – e de seu principal alicerce, a indústria cultural – guiando as atitudes do indivíduo do nosso tempo. A relação com a posição do escritor contemporâneo frente a essa realidade se faz na medida em que Lori Lamby também é uma escritora e pretende publicar suas memórias lúbricas para assim ajudar seu pai financeiramente. A força da comparação reside inegavelmente na escolha acertada e extremada da ingenuidade infantil corrompida pelo dinheiro, apontando para a similar prostituição do escritor em tempos de profissionalização e submissão ao mercado. Em certos trechos a associação é ainda mais clara, como em Cartas de um sedutor (CS): “E não é que aquele pulha cínico está lançando um livro? É capaz de tudo. De dar a rodela, de meter no aro de algum editor velhusco, chupar-lhe a pica até fazê-la sangrar, sacripanta bicudo!” (p. 138).

Além de servir de signo do contexto atual de comercialização sem peios da arte, a pornografia serve aos propósitos irônicos hilstianos porque é definida freqüentemente a partir de critérios comerciais, o que significa que visa ao entretenimento fácil e proíbe a atividade intelectual do receptor. Desse modo, a autora se apropria conscientemente de procedimentos caros à literatura pornográfica comercial para problematizá-los no contexto geral da narrativa.

Algumas das características desse gênero de mercado que podem ser observadas na trilogia têm necessariamente a ver com sua inserção na indústria cultural, como a linearidade da narrativa, o clichê e a perfeição das técnicas de “duplicação” dos objetos empíricos para criar a ilusão de realidade (Adorno, 1997: 118). Em CR, a narrativa encaixada “O caderno negro” é o melhor exemplo de relato cronológico, em que não há interrupções do efeito de excitação do leitor, até que se alcance o ponto de culminância do envolvimento erótico na orgia entre os personagens – inclusive com a partição de um animal, fato que não é estranho às produções cinematográficas do gênero. Em Contos d’escárnio/ Textos grotescos (CE) a linearidade é abolida pelo narrador, Crasso: “A verdade é que eu não gosto de colocar fatos numa seqüência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim” (p.19). No entanto, a filiação ao modo de narrar típico do gênero se dá através da narrativa episódica empreendida por esse narrador, que relata suas façanhas sexuais com várias mulheres nas páginas iniciais do livro, cada uma com sua peculiaridade: Lina, a virgem deflorada; Otávia, afeita a práticas masoquistas; Flora, a advogada insaciável e culta; e Josete, de “gosto exótico na comida e no sexo” (p. 19). O relato desses episódios independentes não tem outro objetivo a não ser enfatizar o caráter temático repetitivo do gênero pornográfico em que tudo deve apontar para a situação erótica.

O cliché fica por conta, principalmente, da caracterização dos pares em torno dos quais gira os fatos obscenos. É sintomático que em CE o “roteiro de fornicações” (p.30) seja narrado por um personagem do sexo masculino, já que a regra geral da pornografia comercial é a subjugação da mulher à vontade do homem, pois assim o status quo se mantém e o que parece transgressão se configura na verdade como brechas controladas de diversão para manter o indivíduo em sintonia com o sistema. O homem desse tipo de literatura é sempre um “super-homem”, dotado de um órgão de proporções exageradas e de potência sexual ilimitada, o que pode estar sutilmente sugerido no nome do narrador Crasso (“grosso”), de quem parte a reveladora afirmação: “O que eu podia fazer com as mulheres além de foder?” (p.18). A este modelo de virilidade corresponde um modelo de mulher que satisfaça plenamente os desejos do sexo masculino, autor e consumidor privilegiado da pornografia comercial. Assim, faz parte da “mitologia da mulher” (Giachetti, 1978) sua insaciabilidade, sua postura de vítima frente à possessão masculina e seu aparato fisiológico igualmente descomunal, o qual permite orgasmos longos e múltiplos acompanhados de uma torrente de fluido vaginal, além da mise en scéne de que fazem parte sons vários e contorcionismos. Quase todos os elementos dessa mitologia podem ser encontrados em CE: Crasso se diz louco pelos “ruídos extravagantes durante o prolongado orgasmo” (p. 17) de Otávia, a qual é descrita da seguinte forma pelo narrador: “Mas nenhuma outra mulher era dona desse gorgolejo na garganta. Era mais do que uma rosnada langorosa. Vinha do fundo de águas negras, mas era também pungente e langoroso” (p. 17). Da mesma forma, Flora se destaca por possuir “uma pomba molhada e faminta” (p. 19), e Josete um órgão capaz de abraçar e quase engolir o de Crasso.

Também é ilustrativo desse caráter machista a homofobia, já que as produções são escritas primordialmente por e para homens heterossexuais. O comentário é de Crasso: “Acho lindo vagina. Deus me livre de gostar de outra coisa” (p. 35). A preferência suspeita pela sodomia por parte da mulher também pode ser um índice da tentativa de recriação do universo masculino da pornografia comercial.

O fato de esse tipo de narrativa obedecer sempre a receitas semi-prontas é ironizado nas três obras. Em CR é sugerido que o livro, para vender, precisa ter diálogos (pois a abundância de diálogos na literatura de massa serve para permitir uma adesão maior do leitor à trama, segundo Sodré, 1985). Mas Lori não sabe como fazê-lo: “Mas como eu vou fazer pra ter diálogo se os homens não falam muito e só ficam lambendo?” (p. 26). Em CE, Clódia, parceira mais constante de Crasso, também tem idéia do que é necessário para atrair editores: sexo e aventuras fantásticas: “Só se você lembrar de colocar a língua de alguém no meio disso tudo ou um outro dragão quem sabe” (p. 77) Em CS, a fórmula mágica é dada por Eulália: “qué sabê, Tiu? Escreve um conto horrível, todo mundo gosta de pavor, a gente sente uma coisa nos meio… um arrepião” (p. 92).

Assim como todo produto da indústria cultural, a narrativa pornográfica deve produzir o efeito de ilusão de o mundo exterior é um prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme, no romance ou na telenovela (Adorno, 1997). É lugar-comum entre os estudiosos desse tipo de narrativa afirmar que esta se caracteriza necessariamente pelas descrições realistas dos corpos e atos sexuais, através principalmente do vocabulário denotativo e sem eufemismos utilizado para referir a órgãos e atitudes. O leitor, nesse caso, passa a voyeur de quadros quase que pictóricos desenhados pelos narradores. O objetivo principal do caráter indispensavelmente voyeurista da pornografia é ativar a imaginação do leitor-expectador e fazê-lo passar da leitura ao ato, ou seja, excitá-lo sexualmente. Na trilogia hilstiana, embora a incitação do prazer físico do leitor não seja intenção unívoca, não se pode negar as seqüências de inegável acuidade descritiva que podem ser surpreendidas. Em CR, “O caderno negro” é um exemplo bem acabado desse recurso, assim como a narração minuciosa que Lorinha faz das “brincadeiras” com que ela e os “moços” se divertem em seu quarto, apesar de, diferentemente de “O caderno negro”, não apresentar palavra alguma que lembre a crueza do léxico pornográfico. No caso de CE, embora os episódios envolvendo Crasso e suas parceiras só dêem conta de clímaxes parciais, o relato que o personagem faz de uma prática comum no bordel que freqüentava não deixa nada a desejar em matéria de pornografia. Como manda a regra, a carga erótica é progressiva e constante, e o vocabulário o mais direto e chulo possível. O final do relato não por acaso corresponde ao fim do ato sexual, e pretende-se que nesse momento a reação do leitor seja a mesma experimentada pelo personagem saciado. Nesse sentido, a pergunta de Karl em CS em uma das cartas endereçadas a sua irmã pode ser também uma pergunta ao leitor, nesse caso mais voyeur do que nunca, pois que lê as correspondências que dizem respeito a outrem: “Estás molhada”? (p. 26).

Apesar da utilização que a autora faz dessas características básicas do produto cultural de massa, é fato que o aproveitamento que delas faz é irônico. Primeiramente, porque esses traços aparecem combinados com elementos caros a um tipo específico de pornografia que não é a meramente comercial e que Susan Sontag (1987) localiza no interior das artes. Poderíamos chamá-la de pornografia estetizada, e não faltam representantes dessa categoria cujas obras se chocam com os preceitos fundamentais das leis do mercado por um traço essencial: o tratamento cuidadoso com os meios expressivos. A filiação de Hilda Hilst a esses expoentes da literatura obscena é clara, não só pelos traços identificáveis nas obras, mas também pela referência direta a eles: Bataille, D.H. Lawrence e Henry Miller comparecem freqüentemente à narrativa, e o diálogo que se instaura no interior das obras é mais um indício de seu trabalho consciente.

Muitos elementos caros à pornografia, tanto a comercial quanto a estetizada, são descritos por Susan Sontag como sendo constitutivos da imaginação especificamente pornográfica, a qual se configura como uma das formas extremas da consciência humana. Esse estado de consciência nada tem de anômalo, já que faz parte de todo e qualquer ser humano o potencial transgressor da sexualidade, embora nem todos o experimentem a nível perturbador – principalmente porque se faz necessário inibir esses arroubos transgressores em nossa vida cotidiana para que a ordem social seja assegurada. Os personagens hilstianos têm ciência disso: “torpe é a nossa natureza, imundo e dilacerado é o homem, imundo sou eu, Crasso, mas querem saber? Não vou falar disso não, imundos são vocês também, todos nós (…) “ (CE, p. 30).

Um desses elementos também encontrados na trilogia é a presença de arremedos de indivíduos, de insipidez emocional notável. O tratamento dispensado a órgãos despersonalizados, quase autômatos, é levado ao extremo em CE, no qual a personagem Clódia ganha a vida pintando quadros de vaginas e pênis gigantes. Na ode de Crasso, o tom jocoso traz à tona esse tema privilegiado: órgãos em detrimento dos corpos, e os corpos em detrimento dos seres (Moraes, 1984).

Ó conas e caralhos, cuida-vos! Clódia anda pelas ruas, pelas avenidas, olhando sempre abaixo de vossas cinturas! Cuida-vos adolescentes, machos, fêmeas, lolitas, velhas! Colocai vossa mão sobre a genitália! A leoa faminta caminha vagarosa, dourada, a úmida língua nas beiçolas claras! (CE, p. 36).

A falta de reação passional aos acontecimentos acompanha o tratamento dado aos personagens, sempre caracterizados em função de seu comportamento sexual. Lori Lamby, por exemplo, não se mostra nem um pouco abalada com o que seria uma monstruosidade no mundo empírico, sua prostituição administrada pelos próprios pais. Em CE, Crasso conta a sucessão de tragédias que é sua vida da forma mais desinteressada possível. Aliás, os episódios são bastante inusitados e provocam mais o riso que a compaixão dos leitores. Com exceção de sua mãe, de quem sabemos apenas que morreu depois do batismo do protagonista, as outras duas pessoas responsáveis por sua criação tiveram mortes absurdas e motivadas sexualmente. Seu pai teve um ataque fulminante num bordel, enquanto tinha relações com uma prostituta, um mês depois da morte de sua mãe. Seu tio Vlad também morreu enquanto mantinha relações, só que com um jovenzinho, coroinha de uma igreja. Em CS a insipidez emocional está relacionada a um aspecto praticamente ausente do gênero comercial e que abunda nas narrativas mais elaboradas: as perversões específicas, segundo Goulemot (2000), ou os elementos constituintes da psicologia da pornografia, segundo Giachetti (1978). São aspectos do comportamento sexual humano reprimidos socialmente e que emergem na literatura obscena com um vigor irrefreável, justamente por ser a imaginação pornográfica aí presente o local privilegiado para a transgressão. Tais aspectos se encontram abolidos do gênero comercial por motivo que já deve estar claro: funcionando sob os auspícios do sistema, a pornografia meramente comercial não pode ir de encontro à organização básica da sociedade, e por isso se mantém no perímetro seguro que engloba a heterossexualidade e a subjugação da fêmea ao macho. A perversão específica em torno da qual as cartas de Karl para sua irmã Cordélia se organizam em CS é o incesto, não só entre os irmãos, mas também entre pai e filha. Karl relembra situações lúbricas entre ele e Cordélia na juventude, assim como manifestações de desejo desta pelo “deslumbrante” que era o pai de ambos. Ao final das cartas ficamos sabendo que Cordélia teve um filho do pai, para decepção de Karl, que se sente lesado por não ter partilhado igualmente da atenção paterna. Não há vestígio algum de conflito emocional nas palavras do narrador quanto a esses fatos passados. Ao contrário, a sensação que tem o leitor é a de que a intimidade incestuosa entre os membros da família era bastante comum. Karl chega inclusive a debochar da possibilidade de sua irmã estar passando por um momento de crise moral, e nega categoricamente qualquer vestígio de envolvimento verdadeiramente emocional na rotina familiar de perversões:

Muito me admira que na sua idade chames de sentimentos a essas arruaças, essa quizumba como diz meu amigo Piva, essa desordem esse banzé, esse arregaço esse esparramo de corpo, sentimenteias picas, jamais sentimestaste coisa alguma (CS, p. 35)

A literatura obscena transforma a todos em escravos do poder da sexualidade, de modo a tornar todas as pessoas intercambiáveis. O incesto, nesse sentido, serve ao propósito de aumentar as possibilidades de troca, assim como a presença da bissexualidade. Em CS, Karl se apresenta, contrariamente a Crasso, como amante dos homens e desdenhoso das mulheres (podemos dizer até que há certa dose de apologia ao homossexualismo masculino), assim como o célebre personagem sadiano Dolmancé, de Filosofia da alcova. Não é por acaso a estrutura epistolar de parte da obra, no melhor estilo romance libertino francês do século XVIII – quando a pornografia ainda não havia se rendido aos ditames mercadológicos. Também comparece à seqüência de cartas o tema da corrupção do ingênuo, tão caro à tradição obscena oitocentista. Alberto, mecânico de dezesseis anos, é a vítima iniciada por Karl nos prazeres da carne. A crise de consciência que o jovem apresenta por conta de seu relacionamento escuso com o protagonista, assim como a crise moral de Cordélia, é ridicularizada.

Lori Lamby, Crasso e Karl, além de narradores, são os autores ficcionais da “bandalheira” criada por Hilda Hilst, mas não são os únicos responsáveis pelos relatos. Cada uma das três obras conta com dois autores ficcionais, e o recurso à autoria dupla é o procedimento principal para levar a cabo o projeto irônico da autora. Todos os protagonistas são personagens-escritores, e podem ser agrupados em dois blocos distintos. Um deles corresponde aos três narradores de que temos nos ocupado até então. Todos possuem desenvoltura no trato com a matéria obscena e manipulam sem dificuldades as regras básicas da narrativa pornográfica. Mesmo Lori, que só não utilizou a linguagem denotativa por desconhecimento – ela tem só oito anos –, conseguiu produzir descrições de carga erótica intensa e conteúdo tão ofensivo quanto se tivesse feito uso de léxico próprio. No entanto, nenhum deles é escritor no sentido artístico da palavra. Karl, por exemplo, virou escritor por acaso; Lori escreve para ajudar o pai financeiramente, e Crasso é um mero oportunista:

Resolvi escrever esse livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. E os outros, os que lêem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? (CE, p. 14)

Todos três também têm em comum o contato com o dinheiro facilitado de alguma forma: Lori supostamente se prostitui, Crasso ficou rico com negócios escusos e Karl nasceu em berço de ouro.

Os outros personagens-escritores (não necessariamente narradores) com quem Lori, Crasso e Karl dividem a autoria dos textos são o pai de Lori, Hans Haeckel e Stamatius (ou Tiu), respectivamente. Cada um deles se apresenta como contraponto necessário dos responsáveis pela narrativa obscena strictu sensu. A começar pela dificuldade em manejar qualquer tipo de regra temática ou estrutural da pornografia. O pai de Lori vive em crise por não conseguir escrever de acordo com a fórmula imposta pelo editor; à sugestão de Crasso de escreverem juntos “uma história pornéia” e “exaltar a terra dos pornográfos, dos pulhas, dos velhacos, dos vis”, Hans responde: “Não posso. Literatura para mim é paixão. Verdade. Conhecimento” (CE, p. 41). O conselho que Karl dá a Tiu também é elucidativo do desajuste entre o escritor e as demandas do mercado:

Tiu, não tem essa de ascese e abstração. Escritor não é santo, negão. O negócio é inventar escroteria, tesudices, xotas na mão, os caras querem ler um troço que os faça esquecer que são mortais e estrume. Continua: Tiu, com tua mania de infinitude quem é que vai te ler? Aposto que serei o primeiro na vitrina e tu lá nos confins da livraria. (CS, p. 138)

Constantemente esses autores são descritos como gênios, o que fica demonstrado nos seus escritos interpolados na narrativa obscena. São trechos, na maioria das vezes contos encaixados na narrativa maior, que em nada lembram as “bandalheiras” gratuitas dos outros autores ficcionais. Crasso descreve os contos de Hans como contendo “agonias sem fim, homens e mulheres debruçando-se sobre o Nada, o Fim, o ódio, a desesperança” (CE, p. 81), o que aliás se aplica igualmente para os de Tiu. Algumas tentativas de escrever umas “coisas porcas” acabam frustradas e culminando em textos complexos, como é o caso dos contos que Tiu escreve a partir de sugestões de Eulália, sua companheira, que tenta ajudá-lo a elaborar “um continho reles” para vendê-lo “quem sabe a um reles suplemento” (CS, p. 92). O único bem sucedido na tarefa é o pai de Lori, com o seu “Caderno negro”, que vai parar em uma prateleira intitulada “bosta” e lá permanece sem que ele tenha coragem de mostrá-lo ao editor – embora fosse exatamente o que este queria.

Apesar de gênios, o pai de Lori, Hans e Tiu não são remunerados como deveriam, ao contrário dos que escrevem ao gosto do editor e do público. A indagação de Lori a esse respeito é bastante pertinente: “Por que será que não dão dinheiro pro papi que é tão gênio, e pra mim eles dão só dizendo que sou uma cachorrinha?” (CR, p. 25). Hans também não teve sucesso financeiro – nem de crítica – como escritor, o que o levou ao suicídio. A descrição de Tiu por Karl pode exemplificar bem a questão:

(…) perdeu tudo, casa e outros bens, porque tinha mania de ser escritor. Dizem que agora vive catando tudo quanto há, é catador de lixo, percebe? Vive num cubículo sórdido com uma tal de Eulália que deve ter nascido no esgoto. (CS, p. 67)

O recurso à autoria ficcional e dupla é eficaz para os propósitos irônicos de Hilda Hilst na medida em que dá forma à cisão da consciência do escritor contemporâneo, dividido entre o clichê para se adequar ao mercado e o experimentalismo para satisfazer suas ambições artísticas – ou entre a “metafísica” e a “putaria das grossas”, segundo personagem de CE. O artifício de combinar dois autores para a mesma obra por si só já é um indício da opção hilstiana pelo experimentalismo, já que a autora demonstra desembaraço no manipular das técnicas que diferenciam os textos de um e outro personagem-escritor, de modo que o leitor fica obrigado a passar de voyeur a co-produtor do texto de acordo com o que se lhe apresenta na narrativa.

Interessante é notar que o escritor experimental é a ficcionalização sem disfarces da autora empírica Hilda Hilst, tão envolta nos problemas do autor-produtor contemporâneo quanto os duplos que criou de si na trilogia. A descrição que Crasso faz de Hans Haeckel encaixa-se perfeita e acidamente à autora, além do próprio nome do personagem referir-se explicitamente a ela:

Hans Haeckel era um escritor sério, o infeliz. (…) Havia escrito uma belíssima novela, uma nova história de Lázaro. A crítica o ignorava, os resenhistas de literatura teimavam que ele não existia, os coleguinhas sorriam invejosos quando uma vez ou outra alguém o mencionava. (CE, p. 40-41)

A menção ao Caderno rosa de Lori Lamby como sendo escrita por Hans, além da óbvia projeção da autora no texto, é mais um sinal da ironia hilstiana (porque descortina o real e a própria ficção):

Quando Hans Haeckel pensou em escrever uma estorinha meninil muito da ingenuazinha pornô para ganhar algum dinheiroporque ele passava fome àquela época, o editor falou: escabroso, Hans, nojentinho, Hans, isso com menininhas!Mas que monturos de nomes estrangeiros ele publicava às pampas. (CE, p. 104-105)

Os outros dois elos da cadeia, circulação e consumo, responsáveis pela quase imobilidade criativa do escritor contemporâneo, também são ficcionalizados como forma de tornar mais evidente à crítica ao contexto atual, ao mesmo tempo em que aponta para o livro enquanto objeto empírico e joga certa luz à reflexão do texto enquanto artefato. Assim é que em CR o editor se personifica em “Tio Lalau” – nome já bastante sugestivo pelo seu significado popular: ladrão –, caracterizado como aquele que “vomita só de ouvir falar a palavra poesia” (p. 73) e que exige “bandalheiras” vendáveis:

Sempre devo falar no pau. Ou nos ovos. Ou na manjuba. É assim que quer o editor. ‘pode serpentear um pouco, negão, mas sempre contornando a sacanagem’. Estou preocupado porque fora as 1.500 posições do Kama Sutra devo inventar novas. E novos enfoques. (CS, p.142).

O público leitor senso comum, cujo gosto e conseqüente consumo determina o valor do escritor, aparece tematizado na figura de Eulália, que não entende os contos de Tiu e só sugere lugares-comuns ao companheiro na tentativa de ajudá-lo a escrever.

Podemos concluir, então, que da reflexão aguda de Hilda Hilst sobre o mercado advém uma reflexão sobre a linguagem que resulta em uma obra de alto rendimento estético. Utilizando-se conscientemente das convenções da narrativa pornográfica como meio para atingir seus propósitos críticos, a autora conseguiu com sua trilogia metapornográfica mais do que supostamente esperava quando a publicou: superar o caráter meteórico dos best-sellers e se impor pela excelência no trato dos meios expressivos.

 

Referências bibliográficas

BAUDRILLARD, Jean. Porno-stéréo. In: De la séduction. Paris: Galilée, 1979

GOULEMOT, Jean-Marie. Esses livros que se lêem com uma só mão: leitura e leitores de livros pornográficos no século XVIII. São Paulo: Discurso, 2000.

GIACHETTI, Romano. Porno-power: pornografia y sociedad capitalista. Editorial Fontanella, 1978.

HILST, Hilda. O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Globo, 2005.

––––––. Contos de escárnio. Textos grotescos. São Paulo: Globo, 2002.

––––––. Cartas de um sedutor. São Paulo: Globo, 2002.

HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

LAWRENCE, D. H. Pornography and obscenity. In: The portable D. H. Lawrence. New York: The Viking Press, 1947.

SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1985.

SONTAG, Susan. A imaginação pornográfica. In: A vontade radical. São Paulo: CIia. das Letras, 1987.


 

[1] Trechos de entrevista concedida aos cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles, n. 8, out. 1999.

[2] Vale a pena mencionar a diferenciação que D. H. Lawrence (1947) faz entre a pornografia e as representações criadoras do impulso sexual que são necessárias para a completa realização de nossa consciência. A primeira englobaria os produtos da indústria cultural, enquanto que às últimas estariam reservadas as verdadeiras obras de arte.