A INSERÇÃO E OS TEMPOS VERBAIS
NO PORTUGUÊS FALADO

Maria Alice de Mello Fernandes (UNIGRAN)

 

RESUMO

Para a realização dessa pesquisa analisaram-se excertos do corpus, constituído por inquéritos do Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta de São Paulo, do Atlas Lingüístico de Mato Grosso do Sul e do Projeto Filologia Bandeirante e Português Popular do Brasil, ambos de São Paulo, com informantes de sexo diferente, além de faixa etária e escolaridade variadas. Foram analisados, nesses excertos, a natureza e as funções do fenômeno da inserção, o uso dos tempos verbais nos diferentes tipos de inserções e a relação entre esses tempos verbais. A partir dos dados obtidos, em análise qualitativa, verificou-se que existem variações quanto às transições verbais nos diferentes estados e entre informantes e que a inserção não interrompe a seqüência textual; pelo contrário, contribui para a coerência, o que justifica a maior freqüência das funções explicativas e de comentário. Observou-se, ainda, que o uso dos tempos verbais, tanto no caso das transições homogêneas como nas heterogêneas está sempre subordinado ao discurso e o discurso aos temas desenvolvidos, e ambos às características sociais de seus falantes. Aporte teórico: Weinrich ( 1974), Marcuschi( 2001), Koch (2003 a, 2003 b) e Jubran ( 2002).

 

O presente artigo é resultado de uma pesquisa qualitativa do tipo descritivo-explicativa, que aborda dados quantitativos, necessários para a avaliação dos resultados. O estudo baseou-se nos pressupostos teóricos de Weinrich (1974), que apresenta os tempos verbais como fatores de responsabilidade pela coesão textual. Para tanto, apresenta uma classificação desses tempos como de mundo comentado e mundo narrado. Também apoiou-se em Jubran (2002) e Koch (2003a, 2003b) para efetuar um estudo sobre as inserções que serviu de subsídio para a classificação das inserções encontradas nos corpora analisados.

Ao estudar as inserções que são estratégias que contribuem para a construção do português falado e definidas por Jubran (2002) como “interpolações de segmentos conversacionais” as quais não têm extensão e natureza definidas e que se responsabilizam pela interrupção temporária do tópico em uso, causando alteração ou não da centração desse tópico, surgiram algumas questões de pesquisa, que se faz relevante retomá-las:

1.     se as inserções apresentam características discursivas próprias, também apresentam características modo-temporais próprias?;

2.     se as inserções têm ligações com os tempos anteriores e posteriores da fala, deixam-se “contaminar” pelos tempos verbais que as precedem ou as seguem?;

3.     se o texto falado é considerado menos planejado de antemão do que o texto escrito, em função de sua natureza interativa, sendo localmente planejado ou replanejado, contribuiriam os tempos verbais das inserções e de seus segmentos anteriores e posteriores para a seqüência textual ou haveria uma ruptura desses tempos?

Em função disso, iniciou-se a busca por um corpus que respondesse a tais questões, uma vez que não se conhecia trabalhos que fornecessem tais respostas. Os objetivos elencados para a pesquisa foram os seguintes:

1.     pesquisar a inserção, estratégia característica do português falado;

2.     verificar as funções das inserções encontradas e quais as mais usadas nos excertos dos corpora de falantes de diferentes níveis sociais, faixas etárias e localizações geográficas;

3.     analisar como ocorre o emprego dos tempos verbais nos diferentes tipos de inserções;

4.     relacionar o uso dos tempos verbais nas inserções com o dos segmentos anteriores e posteriores;

5.     identificar se existem tempos verbais característicos das inserções e observar de que modo o emprego dos tempos verbais nas inserções pode relacionar-se às suas características discursivas.

Foram utilizados para o estudo três corpus de entrevistas e elocuções verbais efetuadas em dois estados: Mato Grosso do Sul e São Paulo, ou seja:

1.     Corpus composto por inquéritos do Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta de São Paulo (NURC/SP);

2.     .Corpus composto por entrevistas do Atlas Lingüístico de Mato Grosso do Sul (AL/MS);

3.     Corpus composto por entrevistas do Projeto Filologia Bandeirante de São Paulo (BAND/SP) e entrevistas do Português Popular do Brasil (SOCIOL/SP).

O primeiro corpus – Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta de São Paulo é constituído por informantes cultos numa situação de comunicação marcadamente didática – aulas e conferência –, denominadas elocuções formais (EF); em diálogos entre dois informantes cultos (D2) e em diálogos entre informante e documentador (DID). Trata-se de inquéritos efetuados na cidade de São Paulo, na década de 70. Tais informantes têm formação universitária, são nascidos na cidade que tem a fala estudada e foram divididos em três faixas etárias: de 25 a 30 anos; de 36 a 55 anos e de mais de 56 anos, sendo de ambos os sexos.

Os assuntos versados constaram de um Guia-questionário cujas questões abordaram os seguintes temas: corpo humano, vestuário, alimentação, casa, família, vida social, cidade, transportes e viagens, meios de comunicação e difusão, cinema, televisão, rádio, teatro, comércio exterior, profissões, dinheiro, animais, todos centros de interesse do ser humano.

O segundo corpus – entrevistas do Atlas Lingüístico de Mato Grosso do Sul - é constituído por uma amostra de informantes de diversos municípios que compõem o Estado de Mato Grosso do Sul, o que retrata a fala de indivíduos que representam uma diversidade cultural e étnica e, com certeza, uma pluralidade lingüística.

Escolhidos aleatoriamente, uma vez que se tratam de entrevistas cedidas para o presente trabalho, faz-se importante mencionar que os informantes são pessoas de ambos os sexos, com faixa etária de 18 a mais de 50 anos, pertencentes à zona rural e à zona urbana. São analfabetos, com ensino fundamental incompleto ou ensino fundamental completo.

As entrevistas para o Atlas Lingüístico de Mato Grosso do Sul fazem uso de dois tipos de questionários: lexical e fonético, sendo este último o utilizado para a pesquisa, já que a ele se junta uma narrativa. Os temas são acontecimentos do seu dia-a-dia como a escola, a vida em família, com seus momentos de alegria, tristeza e medo.

O terceiro corpus é constituído pelos informantes do Projeto Filologia Bandeirante e do Português Popular do Brasil. Os primeiros são idosos, com idade acima de 60 anos, de ambos os sexos, analfabetos, ou com baixa escolaridade, nascidos e criados na zona rural de São Paulo, residindo quase todos no Vale do Paraíba. São pessoas, na maioria, já aposentadas e que desenvolveram atividades no campo, relacionadas à agricultura e à pecuária. As entrevistas têm como tema as denominadas “conversas fiadas”, o que facilita o diálogo entre documentador e informante.

Quanto a esse terceiro grupo, os falantes são pessoas de diferentes sexos, de três faixas etárias: 20 a 35 anos, 36 a 50 anos e mais de 50 anos, todos residentes em favelas da zona norte da cidade de São Paulo. As profissões são diversas e os temas abordados são do cotidiano, trabalho e vida em família.

Tendo acesso aos três grupos de entrevistas, 1) NURC/SP; 2) ALMS; 3) BAND/SP e SOCIOL/SP, realizaram-se cuidadosas leituras a fim de se destacar as inserções. Selecionaram-se, aleatoriamente, 135 inserções – 45 de cada corpus – das mais de 180 encontradas previamente, para que se pudesse ter quantidades iguais. Em seguida foram extraídos dos três corpus excertos constituídos por inserções e segmentos anteriores e posteriores a elas. Para melhor compreensão do estudo, elaborou-se ao lado dos excertos, uma análise com descrições de interesse para o estudo, ou seja, verificou-se na letra:

(a)   a atitude comunicativa em relação à inserção e a cada segmento;

(b)  os tempos verbais dessas inserções e dos segmentos que as antecedem e as seguem;

(c)   a classificação dos tempos em relação ao mundo a que pertencem;

(d)  a denominação quanto à perspectiva comunicativa;

(e)   a função da inserção;

(f)    um comentário geral do excerto

conforme se pode observar nos exemplos a seguir:

Excerto 20b (ALMS)

 (?): como que é essa bola... de fogo... a bola de fogo passa e como...

Lídia: é, tem uma bola de fogo aí onde que vai essa bola de fogo diz que aparece pra lá, lá pra o lado do campo, [a senhora viu o campinho pra lá...] aí diz que tem...lá tem uma serpente assim e...essa serpente não deixa passar porque diz que tem ouro, e também tem, diz que tem lobisome aqui, o pessoal fala que sempre apareceu, um senhor morreu diz que é, e tem outra também que fala mas...

 

 

(Inquérito p – ALMS)

a)        MC + MC + MC

b)        Presente + Pret. Perfeito + Presente

c)        Tempo zero MC + Tempo retrospectivo MC + Tempo zero MC

d)        Sem perspectiva + Retrospectiva MC + Sem perspectiva

e)        Função de comentário

f)        Mundo comentado; na inserção, permanece no mundo comentado, mas retrospectivo e, continua no mundo comentado.

 

Excerto 30b (NURC/SP)

Doc. (muito) bonita ((risos))

Inf. Belo Horizonte:: é uma cidade atrativa uma cidade:: limpa uma cidade... [inclusive naquele centro de Belo Horizonte onde a gente costuma estar MAIS quando vai a Belo Horizonte dá uma sensação assim de largueza muito grande...] que São Paulo não apresenta muito porque São Paulo cresceu desordenadamente mesmo no Rio de Janeiro que tem uma feição arquitetural arquitetural completamente diferente São Paulo...

(Inquérito nº 137 – Bobina nº 47)

a)       MC + MC + MC

b)        Presente + Presente + Presente

c)        Tempo zero MC + Tempo zero MC + Tempo zero MC

d)       Sem perspectiva + Sem perspectiva + Sem perspectiva

e)       Função explicativa

f)        Mundo comentado; permanece no mundo comentado na inserção e finaliza no mundo comentado

Fez-se importante, ainda, conforme se observará, em seguida, uma reflexão sobre os tempos verbais e as inserções.

 

O tempo verbal e a função coesiva

Dentre os recursos de seqüenciação parafrástica, destacam-se os tempos verbais estudados por Weinrich (1974), em sua obra Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. O autor declara que nas línguas estudadas (o francês, o espanhol e o alemão) há, ligadas à situação comunicativa, três dimensões: a) atitude comunicativa do falante – distinção entre o mundo comentado e o mundo narrado; b) perspectiva comunicativa – tempos de grau zero (sem perspectiva) e tempos com perspectiva (prospecção e retrospecção) e c) relevo – 1º e 2º planos, detectados apenas no mundo narrado.

O autor esclarece que os tempos do mundo comentado indicam comprometimento, pois conduzem o ouvinte a uma atitude receptiva, tensa, atenta e que pertencem ao mundo comentado todas as situações comunicativas que não sejam relatos, como a lírica, o drama, o ensaio, o diálogo, o comentário etc, sendo seus tempos característicos o presente do indicativo, o pretérito perfeito (composto) e o futuro do presente. Quanto ao mundo narrado, explica ser um convite ao ouvinte para relaxar, sem sua manifestação, sem sua voz. Todos os tipos de relato, seja literário ou não, são do mundo narrado, pois trata-se de relato de fatos (eventos) já ocorridos. São tempos desse mundo o pretérito perfeito simples, o pretérito imperfeito, o pretérito mais que perfeito e o futuro do pretérito do indicativo.

Weinrich (1974) explica, também, que analisando a perspectiva comunicativa, o presente é o tempo-zero do mundo comentado, o pretérito perfeito (simples) é o retrospectivo e o futuro do presente, o prospectivo. No mundo narrado aponta serem dois tempos-zero, ou seja, o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito, enquanto é retrospectivo o pretérito–mais–que–perfeito e, prospectivo, o futuro do pretérito com relação aos tempos zero.

O relevo, comenta o autor, só é indicado por meio do tempo verbal no mundo narrado, manifestando o 1º plano pelo perfeito que denota a ação propriamente dita e o 2º plano (pano de fundo ou background) pelo imperfeito.

Merece ainda destaque o conceito de Weinrich (1974) sobre as transições temporais, isto é, as passagens de um tempo para outro na seqüência linear do texto. São classificadas em homogêneas, quando há repetição do mesmo tempo, e heterogêneas, que se subdividem em: de primeiro grau, quando muda o grupo temporal ou a perspectiva; de segundo grau, quando mudam o grupo temporal e a perspectiva.

No mundo narrado, também se pode verificar transições temporais em relação ao relevo, denominando-se homogêneas quando há repetição do mesmo plano e heterogêneas quando há mudança de um plano para outro.

O referido autor cita, ainda, o que se denomina de metáfora temporal, que se efetua quando um tempo de um mundo é usado em outro mundo. Quando se emprega um tempo do mundo narrado em um mundo comentado, indica-se um compromisso menor, distanciamento, ou irrealidade, cortesia, etc; já, no caso de um tempo do mundo comentado em um mundo narrado, denota maior atenção, ou comprometimento com aquilo que se diz.

É necessário, no entanto, destacar que Weinrich (1974), como afirma Koch (2003a: 56), ao fazer esse estudo da classificação dos tempos verbais no português, teve como ponto de partida o francês, o que causa algumas dúvidas em relação ao português. Exemplo disso é o caso do pretérito perfeito simples que em nossa língua pode ser empregado tanto no mundo narrado quanto no mundo comentado, sendo que a diferença em cada emprego é o valor, pois no mundo narrado constitui-se tempo zero, sem perspectiva e no mundo comentado valor retrospectivo em relação ao tempo zero.

Koch (1994), em seus comentários, afirma ainda:

Assim, a recorrência de tempo verbal tem função coesiva, indicando ao leitor/ouvinte que se trata de uma seqüência de comentário ou de relato de perspectiva retrospectiva, prospectiva ou zero, ou ainda, de primeiro ou segundo plano, no relato.

Os elementos de coesão, quando usados com propriedade, garantem, então, a articulação entre as partes do texto; caso contrário, provocam a fragmentação desse texto. Enquanto a coerência diz respeito às correlações existentes entre as diversas partes do texto, atribuindo-lhe um significado global, percebe-se que a coesão responsabiliza-se pelas ligações, pelas costuras, pelas relações que se estabelecem entre as passagens do texto em sua superfície.

 

Inserções: uma reflexão

Sabe-se que o fluxo de informações no discurso pode se desenvolver de maneira contínua quando a seqüência temática flui naturalmente, sem obstáculos até a introdução do próximo tópico, e de modo descontínuo quando há a ruptura, fenômeno responsável pela “quebra momentânea” do tópico. Tal ruptura da unidade temática efetua-se pelo próprio falante ou se realiza por iniciativa do interlocutor. A primeira situação acontece quando o falante julga necessária uma pausa que pode ter diferentes funções, o que caracteriza o planejamento local do texto falado e a preocupação com a compreensão do interlocutor; a segunda denota a manifestação de envolvimento interacional do interlocutor.

As inserções, estratégias responsáveis por essa ruptura ou suspensão, definem-se, segundo Koch (2003a, p.110) como

segmentos discursivos de extensão variável que provocam uma espécie de suspensão temporária do tópico em curso, desempenhando funções interativas: explicar, ilustrar, atenuar, fazer ressalvas, introduzir avaliações ou atitudes do locutor, etc.

Jubran (2002, p.127) afirma que entre os fenômenos de descontinuidade, a inserção de informações que progridem na mesma direção (paralelas) e que se subdividem em outras áreas no tema da unidade do discurso (subsidiárias) nomeiam-se como autocondicionadas, quando a intercalação no tema efetiva-se pelo próprio falante e heterocondicionadas, quando o falante, em função de um pedido ou sinalização do interlocutor, é conduzido a efetuar a intercalação ou encaixe.

Numa visão pragmática interativa, as inserções autocondicionadas revelam-se, no discurso, por intermédio das denominadas frases hóspedes, ou seja, frases independentes – parênteses – e as heterocondicionadas manifestam-se por meio de “seqüências laterais” (Jefferson, 1972 apud Jubran, 2002).

Segundo Brown & Yule (1983, p. 73) tópico discursivo é “aquilo acerca do que se está falando”. Trata-se, então, da unidade discursiva que se constrói mediante a interação dos participantes no processo dialógico e explica-se pela centração e organicidade.

Entende-se por centração o assunto tratado durante a interação, sendo que um tópico pode ser constituído por vários subtópicos que, por sua vez, poderão ser constituídos de segmentos tópicos. Koch (2003a: 82) afirma que, “diversos subtópicos constituirão um quadro tópico; se houver um tópico superior que englobe vários tópicos, ter-se-á um supertópico”.

Quanto à organicidade, nota-se que ela se faz pela conexão estabelecida em dois planos, ou seja, hierárquico e seqüencial que correspondem à progressão tanto no sentido vertical como no horizontal. Tal processo organizacional manifestar-se-á em maior ou menor grau em função do interesse dos participantes pelo tema da conversação e a necessidade do “detalhamento” para maior compreensão.

Duas são as modalidades de inserção: uma, de menor extensão textual, que não gera outro tópico ou mudança de centração, permanecendo, em curso, o mesmo tópico, não afetando a coerência, e, outra, que apresenta maior extensão textual assim como “estatuto tópico”, uma vez que há mudança de centração, provocando a divisão do tópico em destaque em segmentos.

Na primeira modalidade, observam-se duas situações: a primeira delas quando a inserção – tipo frase parentética[1] – provoca uma interrupção tão breve que não ocasiona cortes perceptíveis do tópico e a unidade discursiva permanece coesa. Jubran (2002: 64) destaca, em função disso, que as frases parentéticas provocam dificuldade para se estabelecer qual o limite para determinar se são referentes ou não ao tópico discursivo a fim de serem classificadas como inserções.

A segunda situação efetiva-se quando causa, na linearidade do discurso, fracionamento do tópico alvo em segmentos não conectados, representando, muitas vezes, tentativas frustradas de alteração do assunto que, em momentos posteriores, realizam-se de forma satisfatória. Essas inserções podem ser “resquícios” de tópicos conversacionais que já foram mencionados anteriormente ou “indícios” de tópicos que se destacarão em momento subseqüente e podem estar relacionadas tanto à unidade tópica na qual ocorrem como a outras mais amplas.

Koch (2003a, 2003b) afirma que a inserção, estratégia do texto falado, apesar de parecer conteúdo supérfluo ou de menor importância, na maioria dos casos, não pode ser eliminada sem que haja prejuízo de sentido. Dois são, segundo ela, os grandes blocos de funções: o de função cognitiva que objetiva facilitar a captação de sentido(s) por parte do(s) interlocutor(es) e o de função interacional que busca chamar a atenção do(s) interlocutor(es) para uma atitude de co-responsabilidade, de co-autoria.

Na visão da autora, quando se efetua a suspensão temporária do tópico em andamento para inserir “algum tipo de material lingüístico”, esse processamento pode ocorrer, por vários motivos:

·  Introdução de explicações ou justificativa, – explica ou justifica o assunto em pauta.

§  Referência a um conhecimento prévio – funciona como uma estratégia para compreensão do assunto a ser abordado.

§  Apresentação de ilustrações ou exemplificações – cita exemplos e faz elucidações sobre o assunto.

§  Introdução de comentário metaformulativo – acrescenta o esclarecimento da palavra ou expressão citado anteriormente.

A autora esclarece, ainda, que as inserções podem ter outras funções essencialmente interacionais, uma vez que pretendem chamar a atenção do parceiro e/ou gerar um “clima” de intimidade ou de cumplicidade como:

§  Formulação de questões retóricas — encontradas em discursos didáticos e de persuasão — questionamento(s) do falante ou do ouvinte durante a conversação.

§  Introdução de comentários jocosos – encaixa brincadeiras, falas que provocam riso.

Koch (2003b: 87) cita, ainda, outras funções interacionais que classifica como de importância. São elas:

§  Apresentação de suporte para a argumentação em curso – introduz força/reforço para o argumento explorado. Exemplo:

§  Expressão da atitude do locutor perante o dito, introduzindo atenuações, avaliações e ressalvas, evidenciando a postura do locutor diante da fala. Exemplo:

Essas funções atribuídas por Koch (2003a, 2003b) às inserções serviram de apoio para a análise dos corpora do português falado em excertos de entrevistas do Projeto NURC de São Paulo, de entrevistas para a confecção do Atlas Lingüístico de Mato Grosso do Sul e de entrevistas do Projeto Filologia Bandeirante (SP) e do Português Popular do Brasil (SP), por dar conta do material lingüístico a ser analisado.

Finalmente, vale ressaltar que as inserções, apesar de provocarem uma espécie de ruptura, ou seja, uma “suspensão” por um determinado período de tempo do tópico discursivo, diferente do que já se pensou antes, não provocam falta de coerência no texto falado; pelo contrário, contribuem e são responsáveis, em grande parte dos textos, pela sua construção. Quanto à coesão, observa-se que mesmo quando há mudança de mundo narrado para mundo comentado ou vice-versa, a “quebra” é tão suave que não interfere na seqüência textual.

No decorrer do estudo, constatou-se que as inserções apresentam inúmeras funções e, tendo escolhido a classificação apresentada por Koch (2003a, 2003b), concluiu-se que os tipos de inserções de maior freqüência são as explicativas, seguidas pelas de comentário, retóricas e de esclarecimento. Desse grupo, as de comentário e as de esclarecimento são funções não elencadas pela referida autora, que menciona em suas obras a existência de comentários metaformulativos e jocosos. Nesse corpus ocorreram apenas comentários com abordagens gerais.

Faz-se importante mencionar que, ao classificar as inserções, foi comum existirem dúvidas em relação às funções explicativas e de esclarecimento, mas percebe-se que as de esclarecimento adicionam alguma informação, enquanto as explicativas justificam o já dito. Foi possível, também, relacionar o uso do tempo presente com essas funções de inserções que desempenham o papel de explicar, comentar, esclarecer e questionar.

Ainda foi possível perceber que a presença de inserções com as funções mais citadas, principalmente as de comentário, no terceiro corpus - entrevistas do Projeto Filologia Bandeirante e do Português Popular do Brasil - justifica-se por um percentual significativo dos entrevistados ser de pessoas com menor grau de escolaridade e, na maioria, idosas.

Pensa-se que os referidos sujeitos sentem necessidade de comentar por se sentirem inseguros diante do documentador que tem maior escolaridade - geralmente universitários - e precisarem se fazer entender ou, ainda, porque vivem mais isolados, mesmo tendo família, e sentirem necessidade de comentar, explicar e até mesmo esclarecer para que o diálogo prossiga. Essas observações são hipóteses que poderão ser investigadas em outros trabalhos e com grupos de informantes previamente determinados quanto à faixa etária e à escolaridade.

Para responder também ao objetivo de número 4 (quatro), estudou-se o uso dos tempos verbais em excertos compostos por inserções e os segmentos anteriores ou posteriores. Puderam se caracterizar as seguintes situações: 1) mesmo tempo verbal no segmento anterior à inserção; 2) tempo verbal diferente no segmento anterior à inserção; 3) mesmo tempo verbal na inserção e no segmento posterior à inserção; 4) tempo verbal diferente na inserção e no segmento posterior à inserção; 5) mesmo tempo verbal na inserção e no segmento anterior e posterior a ela; 6) tempo verbal diferente na inserção e no segmento anterior e posterior a ela; 7) mesmo tempo verbal no segmento anterior e no segmento posterior à inserção.

Tais evidências indicam que as inserções têm características discursivas próprias e, nos três corpus analisados, a maioria delas pertence ao mundo comentado. Em decorrência disso, o tempo mais empregado é o presente que simboliza, segundo Weinrich (1974), o tempo zero, sem perspectiva, indicativo de compromisso por parte do locutor, e, por isso, quando o segmento que as precede pertence ao mundo narrado, há uma ruptura no que diz respeito à narração, ruptura esta manifestada pelo uso de um diferente tempo verbal, mas que não ocasiona a ausência de coerência; pelo contrário, as inserções fazem parte de um grupo de estratégias de construção do texto falado que contribui para a seqüência textual e o sentido do texto, como se observou nos excertos analisados nesse estudo.

Há casos, porém, em que, na inserção, há manutenção do uso do mesmo tempo verbal ou grupo temporal (MC + MC+ MC) / (MN + MN + MN) ou do mesmo plano, quando se trata de mundo narrado, pois, no segundo caso, os tempos podem se alternar entre pretérito perfeito e pretérito imperfeito – tempos zero, sem perspectiva, mas, respectivamente, de primeiro plano e de segundo plano. Também aí a inserção não representa o fracionamento da unidade discursiva.

A quantidade de tempos verbais iguais entre a inserção e o segmento antecedente ou entre a inserção e o segmento posterior desperta a atenção. Diferentemente do que pensou Weinrich (1974), quando afirmou ser o pretérito perfeito o tempo mais usado nas narrativas, o tempo que se sobressai nos corpora observados não é o pretérito perfeito e sim o pretérito imperfeito, tempo zero ou tempo base, sem perspectiva e de segundo plano.

Se o texto falado foi considerado, em décadas anteriores, um texto inferior ao texto escrito, por ser visto como sem um planejamento prévio e sem estruturação, verificou-se que, apesar de os entrevistados serem pessoas de diferentes idades, sexo e escolarização, fazem uso coerente dos tempos verbais, mesmo quando o tópico da conversação é suspenso ou rompido temporariamente. Não obstante a aparente ruptura, o que prevalece é a coerência, já que o texto exige explicações, esclarecimentos, comentários, etc.

Os tempos verbais estão subordinados ao discurso. Eles não são empregados aleatoriamente, ao gosto do falante, uma vez que são sempre razões discursivas que levam a transições heterogêneas ou à mudança do tempo verbal na inserção em relação ao tempo verbal que o precede ou o segue. Isto mostra que a língua falada não é produzida ao acaso; tem uma coerência interna, suscetível de ser analisada. Parece que o falante mostra-se mais preocupado em ser entendido do que aquele que escreve, pois o escritor sabe que seu texto pode ser relido para melhor compreensão do leitor.

Relacionando os vários inquéritos analisados, observou-se diferença entre a parte referente ao corpus do NURC de São Paulo, cujos tempos verbais pertencem, em maior número, ao mundo comentado, tanto que a situação MC + MC + MC prevalece em 71% dos casos. Nas entrevistas do Atlas Lingüístico de Mato Grosso do Sul, predomina o esquema MN + MN + MN com 42% e, em menor escala, aparece MC + MC + MC (24,5%). Já na terceira parte do corpus – Projeto de Filologia Bandeirante e Inquérito do Português Popular do Brasil, há o predomínio da estrutura MN + MC + MN.

A superioridade de tempos verbais pertencentes ao mundo comentado nos inquéritos do Projeto NURC de São Paulo parece se explicar pela diferença de escolaridade entre esses informantes e os demais, assim como a diferença de temas tratados, haja vista que os inquéritos do NURC/SP são de temas mais expositivos do que narrativos. Além disso, esses inquéritos desenvolvem em grande parte assuntos culturais em função dos corpora serem constituídos parcialmente de elocuções formais, enquanto os outros apresentam entrevistas de caráter mais informal.

Pôde-se perceber, de um modo geral, que as mudanças de tempos verbais, denominadas transições heterogêneas têm freqüência maior que as homogêneas nesse corpus estudado, contrapondo-se ao dito por Weinrich (1974) de que o contrário é mais comum. Observou-se, entretanto, que, nos inquéritos pertencentes ao Projeto NURC/ São Paulo, provavelmente devido à natureza do texto e ao tipo de informantes, as transições homogêneas – repetição do mesmo tempo verbal – ocorrem duas vezes mais que as heterogêneas, tanto no que diz respeito à mudança de perspectiva ou do grupo temporal, ou, ainda, de ambos. Esse fato não acontece com a mesma freqüência nas partes referentes ao corpus do Atlas de MS e ao corpus do Projeto Filologia Bandeirante e Português Popular do Brasil.

Ainda nas situações em que o grupo temporal modifica-se em algum dos segmentos ou em mais de um deles, não há como justificar que ao “suspender” ou “romper” o tópico para introdução de uma inserção, haja a quebra da seqüência dos tempos verbais. Ao pesquisar o fenômeno, percebe-se que ao aprender a língua, o indivíduo sistematiza o seu uso e, independentemente de escolaridade e idade, consegue fazer uso adequado da linguagem para uma comunicação eficiente.

As metáforas temporais, explicitadas também por Weinrich (1974) como o uso de um tempo verbal de um mundo em outro mundo, são evidentes em alguns dos excertos estudados. Importante destacar, porém, que praticamente todos os casos verificados constituem parte das falas do Projeto NURC/SP. Tal fato permite refletir sobre a possibilidade desse uso estar relacionado também às pessoas mais escolarizadas, falantes da norma culta ou, ainda, porque esses usos, que se pode chamar de atenuação, devam-se a uma preocupação por parte desses falantes, que não eram ou não queriam se mostrar especialistas no assunto, possibilidades que poderiam ser confirmadas com novas pesquisas.

Apesar de algumas contribuições que esse estudo apresenta, tem-se consciência de que a análise sobre a natureza das inserções e a sua relação com o uso dos tempos verbais no português falado não é um trabalho esgotado. Pelo contrário, sabe-se que se trata de uma abordagem preliminar sobre o assunto e que muitas questões suscitadas poderão ser objeto de pesquisas futuras com outros corpora.

 

Referências Bibliográficas

BASTOS, L. K. Coesão e coerência em narrativas escolares. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BEAUGRANDE, R. de & DRESSLER , W.U. Einführing in die Textlinguistik. Tübinger: Niemeyer, 1981.

BROWN, G. & YULE, G. Discourse analyses. Cambridge, Cambridge U. Press. 1983.

CASTILHO, A. T. Introdução ao estudo do aspecto verbal na língua portuguesa. Marília: Coleção Teses, 1986.

––––––. (Org.) Gramática do português falado. Campinas: Fapesp, v. 3, As abordagens, 1993

––––––. A língua falada no ensino de português. 2ª ed. São Paulo : Contexto, 2000.

––––––. Para o estudo das unidades discursivas no português falado: o problema dos marcadores. (texto mimeog.), 1988.

FÁVERO, L. L. Coesão e coerência textuais. 3ª ed. São Paulo : Ática, 1995.

HALLIDAY, M. A. K. & HASAN, R. Cohesion in english. London: Longman, 1976.

JUBRAN, Clélia Cândida Abreu Spinardi. Inserção: um fenômeno de descontinuidade na organização tópica. In: CASTILHO, Ataliba Teixeira de. (Org.) Gramática do Português Falado. Campinas: Unicamp. (Série Pesquisas) v. III. As abordagens, 2002.

KOCH, I.G.V. A coesão textual. 7ª ed. São Paulo: Contexto, 1994.

––––––. A inter-ação pela linguagem. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2003.

––––––. O texto e a construção dos sentidos. 6ª ed. rev. e ampliada. São Paulo: Contexto, 2003.

––––––. Introdução à lingüística textual. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004

KOCH, I. V. & TRAVAGLIA, L. C. Texto e coerência. 4ª ed. São Paulo : Cortez, 1997.

––––––. A coerência textual. 6ª ed. São Paulo : Contexto, 1998.

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 1ª ed. São Paulo : Cortez, 2001.

––––––. Análise da Conversação. 5ª ed. São Paulo: Ática, 2001.

WEINRICH, H. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. [Federico Latorre]: Madrid: Gredos, 1974. (Biblioteca Românica Hispânica)


 

[1] Frase que se apresenta como um parêntese.