A preservação das faces a serviço da polidez
no discurso pedagógico-empresarial

Leonardo Lennertz Marcotulio (UFRJ)
Sabrina Lima de Souza (UFRJ)

 

RESUMO

Este trabalho objetiva analisar as estratégias de polidez encontradas em uma carta endereçada à coordenação de um curso de capacitação de funcionários de uma determinada empresa, elaborada por um membro do corpo discente, visando ao aperfeiçoamento dos pontos negativos encontrados no decorrer do curso. Deseja-se, assim, observar como é feita a construção, a ameaça e a preservação das faces envolvidas no processo interativo.

Para tanto, parte-se de um recorte teórico sob uma perspectiva pragmática, cuja análise se baseia nas estratégias de polidez proposta por Brown e Levinson (1987). Além disso, propõe-se fazer um contraste entre os diferentes conceitos de polidez, assim como verificar a consciência do redator em relação às estratégias utilizadas.

 

Este trabalho objetiva analisar as estratégias de polidez encontradas em uma carta endereçada à coordenação de um curso de capacitação de funcionários de uma determinada empresa, elaborada por um membro do corpo discente, visando ao aperfeiçoamento dos pontos negativos encontrados no decorrer do mesmo. Deseja-se, assim, observar como é feita a construção, a ameaça e a preservação das faces envolvidas no processo interativo.

Para sua elaboração nos valemos da carta, da qual analisaremos sua introdução e seu desfecho, escrita por um discente do curso e de uma entrevista feita com o mesmo para a verificação de seu conhecimento de estratégias de polidez e assim realizar a confrontação dos dois conceitos de polidez (que serão apresentados à continuação).

Além disso, pretende-se verificar como o autor da carta utilizou suas estratégias para evitar uma situação de conflito. Ressaltamos, aqui, que entendemos por conflito “um processo que tem início quando uma das partes percebe que a outra parte afeta, ou pode afetar, negativamente, alguma coisa que a primeira considera importante. (Robbins, 2002)”

Nossas bases teóricas estão alicerçadas na teoria da polidez proposta por Brown e Levinson (1987), no trabalho de G. Eelen (2001) intitulado A critique of politeness theories, no trabalho Cortesía, fórmulas convencionales y estratégias indirectas de Vidal (1995: 31-66) e no trabalho de Stephen P. Robbins Conflito e negociação (Robbins, 2002).

Começaremos a análise a partir da definição de Vidal (1995) que diz que há duas concepções para polidez: (a) a primeira seria o enfoque tradicional que concebe polidez como o conjunto de mostras de respeito ou deferência cujo uso determina e exige a organização social de acordo com o estatuto relativo aos participantes da interação. Nessa concepção, o conhecimento e o domínio dos princípios que regulam a etiqueta conversacional constituem o objetivo central da educação e é o ponto de diferenciação dos maus e bons modos de comportamento; (b) a segunda concepção seria o enfoque moderno que entende polidez como conjunto de ‘regras’ criadas a partir da necessidade humana de manter o equilíbrio durante as interações interpessoais. Esta concepção entende polidez como um conjunto de manobras lingüísticas das quais um falante pode utilizar-se para evitar ou reduzir o conflito com seu interlocutor quando os interesses não são comuns (ou seja, o objetivo neste caso é salvar a face[1] dos interlocutores).

Brown e Levinson (1987) criaram um conceito de polidez que se baseia nas noções de autonomia/ território (polidez negativa) e afiliação/ aprovação (polidez positiva). A face negativa é o conjunto dos territórios do ‘eu’ (território corporal, espacial, temporal, bens materiais ou simbólicos); e a face positiva, o conjunto das imagens valorizadas de si mesmos que os interlocutores constroem e tentam impor na interação. Segundo estes autores, todos os atos que realizamos ameaçam a uma das nossas faces[2] e, de maneira geral, os participantes de uma interação sempre buscam proteger a sua própria face e a de seu interlocutor. Segundo Brown e Levinson (1987), a ‘distancia social’, o ‘poder relativo’ e o ‘grau de imposição’ são importantes variáveis para a caracterização de um ato de ameaça à face, assim sendo, para a análise dos nossos dados iremos levá-las em consideração.

Para a análise da carta é importante saber que a pessoa que a escreveu tem aproximadamente 60 anos e que por muitos anos seguiu carreira militar, na qual nos últimos anos ocupava uma patente alta. Essa pessoa entrou para a empresa que proporcionou o curso há pouco tempo (pouco mais de um ano) e é tido por seus colegas de trabalho como uma pessoa muito competente e inteligente. Estes dados influenciam diretamente na maneira como este senhor escreve sua carta, uma vez que se trata de uma pessoa experiente e que provavelmente estava acostumado a fazer cartas deste tipo em seu antigo cargo. Trata-se de uma pessoa altamente capacitada e habituada a lidar com este tipo de situação. Sendo assim, pode-se dizer que a distancia social, o poder relativo e o grau de imposição estabelecidos no nosso objeto de estudo foram diretamente influenciados pelas características do autor e calculados pelo mesmo.

Para saber o grau de consciência do redator da carta quanto à utilização de determinadas expressões realizamos uma entrevista com o mesmo que durou aproximadamente cinqüenta minutos. A entrevista foi gravada com a autorização do entrevistado.

Sabemos, através da entrevista, que o redator tinha consciência de que estava escrevendo uma carta de crítica e que por isso teve muito cuidado ao fazê-la. Segundo ele o cuidado era porque

A nossa cultura é assim... o chefe é muito forte... o professor é, de um modo geral, o dono da palavra... então é preciso, na nossa cultura, ter essa introdução muito cuidadosa..(...) é necessário que você tenha uma polidez acentuada para que a sua carta seja lida, para que os seus pensamentos cheguem  a essa pessoa... então essa tentativa que eu tive de ser um pouco polido foi intencional para que esse documento não fosse deletado de prima....

Pode-se dizer que este cuidado era para evitar uma possível situação de conflito, uma vez que ele estaria criticando como determinadas coisas foram feitas no decorrer do curso e algumas pessoas poderiam não gostar do que estava sendo dito na carta. Sabe-se que, muitas vezes, a comunicação é uma fonte de conflitos (Robbins, 2002), pois a maneira como se diz (dificuldades semânticas e de compreensão) pode causar “ruídos” no processo de comunicação e por isso o cuidado tomado pelo redator é justificado. Como se pode observar, o autor da carta tem conhecimento disso e a escreveu em tom de sugestão, ou seja, ele deu uma outra roupagem para a crítica que estava fazendo.

Foi tudo intencional... não que não tenha o aspecto de (ser) sempre sugestão... mas a critica tem que ser colocada com palavras polidas para não chocar as pessoas mesmo... porque dentro desse aspecto, na nossa própria cultura, não é muito bem-visto que um aluno tenha a ousadia de fazer uma critica... isso é muito fácil de ser falado que não é bem assim... mas isso na pratica não é muito bem aceito... o aluno está aqui pra estudar, pra aprender e ponto... esse é o nosso pensamento cultural... e a gente sabendo disso tem que ter uma maneira de fazer chegar as nossas idéias e essa maneira não pode ser pelo grito. Essa roupagem de sugestão foi um instrumento usado para que essa mensagem seja lida, seja então trabalhada... foi intencional... não que eu não seja educado...

Começando a análise da carta pelo título a ela dado (“Sugestões Gerais para o Curso de X[3] 2007”) observamos que o autor começa informando a seus interlocutores que ele não será específico em nada, que falará do curso de uma maneira geral. Além disso, ele utiliza a palavra ‘sugestão’ que suaviza a idéia de crítica que está por trás da carta. Assim sendo, ele ameniza, logo no título, a ameaça à face positiva que irá realizar no decorrer da carta.

Em seguida, observa-se que o seu autor começa ressaltando as qualidades do curso (“Sem dúvida, o Curso teve muitos aspectos positivos.”), valorizando a face positiva do seu interlocutor (que são os professores e organizadores do mesmo), dando-lhes credibilidade (o autor utiliza a expressão ‘sem dúvida’ que reforça a idéia de que o curso realmente foi produtivo) e só então diz que se aterá a comentar o que para ele não foi bom (“Entretanto, vou me ater, apenas, aos pontos que julgo precisam e possam ser melhorados.”). Observa-se nesta frase que o discente utilizou a palavra mitigadora ‘apenas’ que suaviza a ameaça à face negativa do ouvinte. Assim sendo, primeiro ele valoriza a face positiva do interlocutor e em seguida ele anuncia que irá se ater às críticas, ou seja, que nesta carta irá predominar as ameaças à face negativa do interlocutor. Além disso, ocorre neste trecho um deslocamento do foco de ‘o curso’ (o autor poderia ter escrito: vou me ater nos detalhes do curso que não foram bons) para ‘os pontos’, evitando a afirmação de que o curso foi ruim, e afirmando simplesmente que algumas coisas ainda podem ser melhores do que foram e que isso é pontual. Ainda neste trecho observa-se que o autor trabalha no campo da possibilidade, uma vez que ele usa a primeira pessoa do singular do verbo julgar no presente do indicativo, ou seja, ele não afirma nada, apenas expressa sua opinião quanto ao curso e assim trabalha no campo da possibilidade, pois ninguém é obrigado a concordar com ele, que está simplesmente demonstrando sua opinião.

Na última parte de sua introdução o autor afirma que não há qualquer ordem de prioridade no que será apresentado à continuação; no entanto, observa-se pela organização da carta que ela está dividida em quatro partes numeradas que se subdividem em outras várias partes também numeradas, ou seja, o autor provavelmente estabeleceu algum critério para fazer essa hierarquização. No entanto, quando questionado pela ordem de prioridade na entrevista o entrevistado afirmou o seguinte:

Não houve uma preocupação de colocar os pontos em ordem... os mais importantes à frente dos outros... eu acho que (cada um) expõe as suas idéias, coloca como vão surgindo na mente... e eu acho que quem analisa a carta é que pode ir aproveitando um ou outro aspecto... colocar esses em ordem prioritária... então intencionalmente também eu não tive vontade de dizer qual ponto é que era mais importante... então isso também passa a ser muito subjetivo... às vezes um ponto que eu posso considerar importantíssimo e não é adequado àquele momento... então eu acho que esse aspecto, nesse caso, colocar... como foram tantos pontos, eu me policiei a não apontar quais os pontos seriam mais importantes... todos eu acho que são bastante importantes.

Na sua conclusão, o discente novamente trabalhou no campo da possibilidade, pois começou sua conclusão com um verbo que expressa sua opinião na primeira pessoa do indicativo (‘creio’) e também utilizou a polidez positiva, reafirmando que o curso teve coisas boas como a boa qualidade dos professores. No entanto, aproveitou-se da indiretividade para dizer que nem todos os professores eram bons (‘incluindo a boa qualidade dos Professores, em sua grande maioria,”). Ademais, ele justificou o motivo que o levou a escrever a carta, ou seja, depois de fazer várias ameaças à face negativa de seus interlocutores, tenta salvar sua própria face justificando o motivo que o levará a relatar tudo de ruim que ocorreu no curso. Ele afirma que o curso foi bom e que as coisas ruins que ocorreram podem ser melhoradas, não para melhorar o nível do curso a favor do seu corpo discente e sim para o “engrandecimento da Companhia”.

Por fim, podemos dizer que o autor da carta começa e termina com estratégias semelhantes, uma vez que ele tanto no início como no final exalta a face positiva de seus interlocutores, afirmando que o que foi dito no decorrer da mesma são aspectos pontuais e de pouco importância. Sabemos que as estratégias utilizadas foram muito bem pensadas pois observamos na entrevista que o autor tem pleno conhecimento das estratégias de polidez 1 (enfoque tradicional) e que tenta ao máximo ser polido para que suas reivindicações cheguem a seus interlocutores e que para tal utiliza-se de estratégias de polidez 2 que adquiriu ao longo de sua experiência profissional e pessoal sem consciência das mesmas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BROWN, P. & LEVINSON, S. Politeness: Some universals in language usage. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

EELEN, G. A critique of politeness theories. Manchester: Jerome Publishing, 2001.

VIDAL, M. Victoria Escandell. Cortesía, f´romulas convencionales y estratégias indirectas. In: Revista Español de Lingüística, 25,1, 1995.

ROBBINS, Stephen P. Comportamento organizacional. São Paulo: Prentice Hall, 2002.


 

[1] Entende-se face pela acepção de Goffman (1955): como valor social positivo que uma pessoa efetivamente reclama para si mesma através daquilo que os outros presumem ser a linha por ela tomada durante um contato específico.

[2] Os atos ameaçadores da face são também chamados de FTA, do inglês Face Threatening acts.

[3] Neste trabalho, fizemos a opção de não informar o nome da empresa e o título do curso de modo a preservá-la.