Considerações
acerca do
texto de base
de Corpo de
Baile, de Guimarães
Rosa
Tereza Paula Alves Calzolari (UFRJ)
RESUMO
Passados
dez
anos da
estréia
em
livro, Guimarães
Rosa publica,
em 1956,
Corpo de
Baile e
Grande
sertão:
veredas. A
primeira
obra sofreu modificações
consideráveis
em
sua
organização ao
longo das
três primeiras
edições,
que o
autor, falecido
em 1967, conheceu. A
leitura de
cartas trocadas
entre
Rosa e o tradutor Edoardo Bizzarri e,
sobretudo, a
análise do
projeto
original da
obra
em
contraste
com as alterações sofridas
nos fazem
questionar
até
que
ponto, no
caso de
Corpo de
Baile, a
chamada
última
vontade do
autor deve
ser
tomada
como
critério
decisivo
para a
escolha do
texto de
base.
O
presente
trabalho constitui
um desdobramento das
reflexões apresentadas na I
Semana
Nacional de
Crítica
Textual e
Edições de
Texto, realizada nesta
Casa,
em
fevereiro do
ano
corrente. Na
ocasião, analisamos algumas das
principais transformações sofridas
por
Corpo de
Baile, de Guimarães
Rosa,
desde a
primeira
edição (1956), empreendida
pela José Olympio,
até a publicação comemorativa do
cinqüentenário,
pela
Nova
Fronteira,
em 2006.
A comparação se deteve
sobretudo nas
diferentes classificações das
narrativas –
novelas,
poemas,
romances e
contos, “Gerais” e parábase –, distribuídas na
folha de
rosto e
nos
dois
índices, localizados,
respectivamente, na
abertura do
primeiro
volume e ao
final do
segundo. Ao
longo da
tradição
impressa, as
nomenclaturas, de
suma
importância
para a
compreensão da
obra
como
um
todo,
conforme veremos, foram
pouco a
pouco se perdendo.
Até a
edição comemorativa,
que
busca
recuperar o
projeto
original da
obra, a
edição
mais
recente
deixa de
fora algumas delas
quando
não as confunde. Merece
destaque
ainda o
fato de a
obra,
que
em 1956 se apresentava
em
dois
volumes e
quatro
anos
depois
em
volume
único,
ter se tripartido na
terceira
edição, passando o
título
original,
Corpo de
Baile, a
figurar
como
subtítulo dos
volumes
independentes: Manuelzão e Miguilim (1964), No Urubuquaquá, no Pinhém (1965) e
Noites do
sertão (1965).
Retomamos
aqui o
problema da
organização de
Corpo de
Baile, acrescentando à
discussão os
critérios
para a
escolha do
texto de
base.
Conforme sabemos, o
texto de
base
ou texto-base é
aquele adotado na
edição
crítica, de
preferência o do
manuscrito do
próprio
autor
ou, na
falta deste, o “testemunho
não
autógrafo
que
lhe esteja
mais próximo” (Nunes e Martins, s.d.).
Segundo a
escola anglo-saxônica, a
escolha deveria basear-se na
edição
mais
antiga, reservando-se, no
entanto, “ao
editor o
direito de
emendar o
texto a
partir de
outro
testemunho
que
pontualmente considere melhor” (Idem, ibidem). A
corrente francesa,
contudo, defende a
chamada
última
vontade do
autor,
isto é, a
utilização da
última
edição
feita
em
vida do
autor
como
texto de
base.
Em 1923, Gustave Rudler
já escrevia
não
ser
possível a
aceitação da “suposta”
última
vontade do
autor
como
critério de
seleção
para o
texto de
base. Afirmava
constituir a verdadeira
forma de uma
obra “aquela
que
lhe emprestou a
tradição”. Roger Laufer (1972: 9),
cerca de cinqüenta
anos
depois, sublinha restringir-se a
noção de
última
vontade do
autor a
seu
caráter
legal,
não devendo,
portanto,
ser evocada
fora desse
âmbito.
Motivos de
diferentes
ordens levariam,
enfim, o
autor a
alterar o
texto.
De
acordo
com a
lei de 11 de
março de 1957
relativa à
propriedade
literária e
artística, o
autor é dotado de
autoridade
moral e
patrimonial
sobre
sua
obra.
Dentre
outros
direitos,
portanto, encontram-se os de arrepender-se e retratar-se, o
que pode
acabar
lhe custando
caro,
devido ao
contrato assinado
com o
editor.
Não chegamos a
imaginar de
que
maneira
poderia
um
editor
científico opor-se a
vontade de
um
autor
vivo;
já o
editor
comercial pode pressioná-lo multando-o, fazendo-o
pagar
integralmente
ou
em
parte os
preços das modificações introduzidas no
seu
texto
após a
entrega do
manuscrito
definitivo (Laufer, 1972: 8)
Muito provavelmente
não foi o
caso de
Corpo de
Baile. É
fato, no
entanto,
que as
razões motivadoras das experimentações estruturais realizadas nas
segunda e
terceira
edições,
como atesta a
correspondência
trocada
com o tradutor italiano Edoardo Bizzarri, tem
por
objetivo
único a
comercialização da
obra.
Em
carta de 03/01/1964 a Bizzarri, o
escritor,
após
anunciar a
tripartição do
livro,
assim a justifica e a
edição
anterior:
Sairá,
agora, no
decurso de 1964, uma
nova
edição do “CORPO DE
BAILE” – a 3ª. A
novidade é
que
ela vai
ficar sendo
em 3
volumes.
Três
livros,
autônomos. A
idéia
já
me viera, há
tempos. Comecei
por “vendê-la” aos
editores na França e
em Portugal,
que se convenceram
depressa das
vantagens, e concordaram. E,
por
fim, consegui, facilmente,
aliás,
que o José Olympio
também a esposasse. De
fato, o “Corpo de
Baile”
vinha sendo prejudicado
pelo “gigantismo”
físico. A 1ª
edição,
em 2
volumes, unidos, pesava
já. Arranjamos
então a 2ª num
volume
só,
mas teve de
ser de
tipo
minúsculo
demais,
composição
cerrada. E o
preço
caro,
além de
não
ficar o
livro
convidativo.
Agora,
pois,
ele se tri-faz. (Rosa, 2003: 119-120)
Pensando
Corpo de
Baile
em
termos estruturais, a
partir do
já
exposto, arriscaríamos
ser a
terceira
edição a
escolha acertada
para o
texto de
base, uma
vez
que expressaria a
última
vontade do
autor. De
maneira
ainda a
ratificar a
opção, salientaríamos o
fato de o
próprio
Rosa
ter sugerido a
divisão do
livro
em
três
volumes. No
entanto, refletindo
acerca da
estrutura
conscientemente projetada da
obra indicada nas
edições
anteriores, somos
levados a
eleição
bem
diferente.
Em 1956,
conforme dissemos,
Corpo de
Baile
chega às
livrarias, seccionado
em
dois
volumes. Na
folha de
rosto de
ambos, temos a
primeira
indicação da
natureza de
texto
que encontraremos
encontrar,
novelas. A
seguir à
folha de
rosto,
epígrafes de Plotino e Ruysbroeck O
Admirável,
além do ““Côco de
festa”, do Chico Barbós”, distribuem-se
por
três
páginas. Findas as
epígrafes, deparamo-nos
com o
primeiro
índice da
obra, no
qual os
textos,
classificados na
folha de
rosto
como
novelas,
são
agora chamados
poemas.
Abaixo da
nova
denominação, listam-se as
narrativas: “Campo
Geral”, “Uma
Estória de
amor”, “A
Estória de Lélio e Lina”, “O
Recado do
Morro”, “Lão-Dalalão (Dão-Lalalão)”, “Cara-de-Bronze” e “Buriti”, nessa
ordem. Dos
sete
poemas,
apenas os
três
primeiros dispõem-se no
volume.
Ao
final do
segundo
volume, ao
lado da
última
página de
texto, concluindo o
livro, temos o
segundo
índice de
Corpo de
Baile. Nele, as
novelas e/ou
poemas recebem
novas classificações:
romances e
contos, “Gerais” e parábase.
São designados de
romances e “Gerais”: “Campo
Geral”, “A
Estória de Lélio e Lina”, “Dão-Lalalão” e “Buriti”; de
contos e parábase: “Uma
estória de
amor”, “O
Recado do
Morro” e “Cara-de-Bronze”.
Dos
sete
textos,
apenas
três, “Uma
Estória de
Amor”, “O
Recado do
Morro” e “Cara-de-Bronze”, apresentam
epígrafes próprias, posicionando-se, de
maneira intercalada no
primeiro
índice,
como a
segunda,
quarta e
sexta
estórias.
São
também os
únicos
textos
classificados
como parábase e
contos, no
segundo
índice.
Portanto e
desde
já, levantamos
dois
dados
bastante
claros
relativos à
estrutura de
Corpo de
Baile.
Guimarães
Rosa, no
projeto
original do
livro, reforçou
conscientemente a
flutuação
entre
diferentes
gêneros. Os
textos
são
novelas,
poemas,
alguns
romances e “Gerais”,
outros
contos e parábase.
Logo, fica
evidente a
preocupação do
autor
em
salientar
tais classificações e
sua
relação
com o
todo da
obra
que,
não à
toa, se
chama
Corpo de
Baile.
Um
segundo
aspecto
digno de
nota se refere ao
diálogo
entre os
dois
índices e,
portanto, a
importância de
sua
manutenção,
bem
como da
seqüência
em
que se acham as
narrativas.
Não é
demais lembrarmos
que muitas
personagens migram de
um
texto
para
outro. O
menino Miguilim de “Campo
Geral”,
primeira
novela de
Corpo de
Baile,
por
exemplo, ressurge
em “Buriti”, a
sétima e
última
narrativa,
como o
adulto Miguel, fechando o
ciclo de
estórias.
No
ano de
lançamento do
livro,
nomes
como Raquel de Queiroz e José Lins do Rêgo manifestaram-se publicamente
quanto às
diferentes
denominações conferidas aos
textos
pelo
próprio
autor, chamando a
atenção dos
leitores
para
tal
particularidade. O
mesmo fez Paulo Rónai
em
artigo intitulado “Rondando os
segredos de Guimarães
Rosa”.
Romper
barreiras,
fronteiras
entre
gêneros,
formas,
realidade e
ficção, parece
ser
mesmo
um
traço
marcante de
Corpo de
Baile. Ao
opor,
por
exemplo, “Gerais” à parábase, no
segundo
índice, coloca
frente a
frente
um
plano
maior e uma especificidade, o
todo, a
visão do
conjunto, e a
pausa
para a
reflexão.
A parábase,
parte estrutrante da
Comédia
Antiga,
como sabemos, suspende a
ação da
trama
para
chamar os
espectadores à
realidade, levá-los a
pensar e
repensar a
questão levantada. Do
mesmo
modo
que a parábase interrompe a
ação
em
busca da
reflexão,
quando o a(u)tor despe
sua
máscara, as
três narrativas-parábase se posicionam
exatamente interrompendo as outras
quatro no
momento
em
que
entre
elas se intercalam.
Conforme
ainda
Rosa a Bizzarri:
Assim
como “Uma
Estória de
Amor” tratava das
estórias (ficção) e “O
Recado do
Morro”
trata de uma
canção a fazer-se, “Cara-de-Bronze” se refere à
POESIA. (ROSA: 2003, 93)
Poesia,
ficção,
música, as idéias-norte dos
contos, e
igualmente norteadoras de
Corpo de
Baile, manifestam-se no
título, na
folha de
rosto e
nos
dois
índices, o
que remete de
imediato à fulcral
importância da
estrutura
original da
obra
para a
sua
compreensão.
Conforme
já salientamos, a
partir da
terceira
edição
tal
estrutura vai
pouco a
pouco se deteriorando, classificações caem e
são trocadas,
erros
grosseiros
são reproduzidos nas
edições
posteriores.
Até
mesmo a
edição comemorativa do
cinqüentenário, na
busca da
recuperação da
forma
original de
Corpo de
Baile,
falha ao
deixar de
fora a
denominação de
novela,
presente na
folha de
rosto da
primeira
edição.
Assim sendo, consideramos a
primeira
edição a
melhor
escolha
para
figurar
como
texto de
base
para a
edição
crítica da
obra.
Por
representar
com
maior
fidelidade o
projeto do
autor
para o
livro, o
princípio da coerência textológica sobrepõe-se
sobre a
chamada
última
vontade do
autor
que,
conforme vimos, se prestava à
razões de
cunho
meramente
comercial.
Como
conclusão desta
comunicação, chamamos a
atenção de
todos
para a
importância de se
buscar uma
edição confiável
para
qualquer
leitura
que se faça,
ainda
mais se o
objetivo de
tal
leitura
visa
ir
além do
mero
entretenimento.
Um
simples
descuido da
editora, a
reimpressão de uma
edição
com muitas
falhas,
gralhas
editoriais podem
prejudicar
em
muito a
compreensão de uma
obra, pondo
não raras
vezes
por
terra,
inclusive, o
projeto
original do
autor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REGO, José Lins do.
Corpo de
baile. O
Globo.
Rio de
Janeiro, 13 de
março de 1956, p. 2.
RÓNAI, Paulo. O
segredo de João Guimarães Rosa. O
Estado de
São Paulo.
São Paulo, 10 de
junho de 1956.
ROSA, Guimarães.
Corpo de
Baile.
Rio de
Janeiro: José Olympio, 1956.
––––––.
Corpo de
Baile. 2ª ed.
Rio de
Janeiro: José Olympio, 1960.
––––––.
Corpo de
Baile.
Edição comemorativa.
Rio de
Janeiro:
Nova
Fronteira, 2006.
––––––. Manuelzão e Miguilim. 3ª ed.
Rio de
Janeiro: José Olympio, 1964.
––––––. No Urubuquaquá, no Pinhém. 3ª ed.
Rio de
Janeiro: José Olympio, 1965.
––––––.
Noites do
sertão. 3ª ed.
Rio de
Janeiro: José Olympio, 1965.
––––––.
Correspondência
com
seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3ª ed.
Rio de
Janeiro:
Nova
Fronteira, 2003.
SPAGIARI, Barbara, PERUGI, Maurizio.
Fundamentos da
Crítica
Textual.
Rio de
Janeiro:
Lucerna, 2004.