DECIFRA-ME OU TE DEVORO:
O ENIGMA DE ADAMASTOR

Roberto Nunes Bittencourt (PUC-Rio)

 

RESUMO

O presente trabalho terá como foco a leitura de uma das mais célebres e belas microsseqüências da narrativa d’Os Lusíadas: a do Gigante Adamastor. Personagem mitológico, símbolo do espaço proibido no qual o homem não deve se aventurar. Diante de uma pergunta – “Quem és tu?” – este que é a transfiguração do “cabo tormentório” apresenta outra face: a do amante subjugado pelo desengano amoroso. Adamastor é aquele que ama e não é correspondido. Duas faces e um enigma – de um mito – ao qual proporemos alguns possíveis caminhos de interpretação.

 

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Nũa hora acho mil anos; e é de jeito
Que em mil anos não posso achar ũa hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora

(Luís de Camões)

A passagem d’Os Lusíadas em que Camões faz aparecer o Gigante Adamastor emergindo do Mar Tenebroso é das mais lidas e apreciadas do poema. Convém, em primeiro lugar, notar que não nos parece tratar-se de um episódio, como normalmente é chamado, mas de uma das microsseqüências da narrativa, como denomina a emérita professora Cleonice Berardinelli. Atenta-nos para o fato de que a palavra episódio – do grego epeisodion, significa “o que vem de fora” – designa

...uma ação incidente, ligada à ação principal, algo que não se poderia incluir nas funções cardinais, consecutivas e conseqüentes, de que fala Barthes, e que abrem sempre uma alternativa, possibilitando a opção por um de dois caminhos. No caso, o gigante poderia ou não ter deixado passar a armada; se sobre ela – e não sobre armadas futuras –  se abatesse a sua fúria, ainda dessa vez a Índia não teria sido alcançada. (Berardinelli, 2000: 73-74).[1]

A narrativa se inicia cinco dias após a paragem das naus de Vasco da Gama na Baía de Santa Helena, nas costas ocidentais da África, quando seguiam “[...] cortando / Os mares de outrem navegados”. Os ventos assopravam favoravelmente, até que, em uma noite, estando os navegantes descuidados em sua vigia, os elementos se revoltaram: “ũa nuvem que os ares escurece” “pôs nos corações grande medo”.

Uma estranha ameaça se apresentava aos argonautas, tão amedrontador e escuro se tornara o mar. O Capitão eleva aos Céus a voz:

– Ó Potestade, disse, sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?

(Lus. V, 38)

Mal terminara de falar, parecendo sair do mar, surge “ũa figura” “robusta e válida / de disforme e grandíssima estatura”. Devido à criatura ter

O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

(Lus. V, 39)

descreve-a o Gama como “o segundo / de Rodes estranhíssimo Colosso”. É uma descrição crua do Gigante que aparecia diante dos portugueses. Algo maior que uma tormenta. O “monstro horrendo”, sentindo-se desafiado por aquela gente, brada:

[...] – Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados de estranho ou próprio lenho:

Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pela terra
Que inda hás de sojugar com dura guerra.

(Lus. V, 41-42)

Com estas palavras, a terrível criatura prevê às naus “naufrágios, perdições de toda a sorte, / Que o menor mal de todos seja a morte!”. Há no discurso do colossal Gigante, uma profecia, um futuro que somente a ele é dado conhecer. Tudo o que vaticina são fatos verdadeiros[2] – futuros supondo a sua fala, passados quando Camões os enuncia na voz do Gigante. A gente portuguesa está a ultrapassar os limites proibidos do mundo, apoderando-se dos ocultos segredos da natureza

Neste sentido, Adamastor cumpre um papel simbólico: ele é a personificação de um mito cuja origem se perde na História. Para o imaginário medieval, a travessia oceânica sempre escondia os mais ferozes monstros e os mais aterradores efeitos climáticos. No mar se refugiavam todos os medos – individuais ou coletivos – do homem do medievo. O Gigante é o espaço proibido no qual o homem não deve se aventurar, manifestando em forma e consciência cada um desses medos que tomam conta dos portugueses.

Adamastor é uma visão. Enfrentar o Gigante é, pois, enfrentar a imagem ancestral dos perigos, superando as próprias limitações do homem. Ao deparar-se com o Gigante, a lusa gente torna-se, também, gigante.

Deste mito admirável notemos dois aspectos significativos: as ameaças que se cumprem em naufrágios e tragédias ali sofridos e dão expressão mítica à luta do homem contra a natureza, de que se esforça por quebrantar os vedados términos, e a narrativa da aventura amorosa do gigante, que nada tem com a História de Portugal. É apenas uma criação da libérrima fantasia do Poeta, por demais desbordante e alada, para se conter num quadro histórico, mesmo que sublimado em beleza e sintetizado em belos mitos. Nada tendo com a História de Portugal, é, todavia, da história humana, expressa na mitologia, porque é da viva realidade, onde a cada passo a mulher surge como a explicação de quanto o homem cria de mais grandioso ou sofre de mais trágico. (Cidade, 1979: 116)

Depois de se mostrar “horrendo e grosso”, diante de uma pergunta do Gama – “Quem és tu?” – o Gigante, com a voz “pesada e amara”, conta a sua triste história de amor. A voz se prende, se tolhe, porque tudo o que contará é infortúnio, um grande desconcerto:

Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo,
Plínio e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que pera o Pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende!

(Lus. V, 50)

Ele é Adamastor, um dos “filhos aspérrimos da terra”, que, com seus irmãos Encélado, Egeu e Centímano, tomou partido na guerra contra os deuses. Seus irmãos voltaram-se contra o Olimpo, a morada dos desuses. Adamastor rebelou-se contra o Oceano e, “conquistando suas ondas”, foi “capitão do mar” onde dominava Neptuno. Se Encélado, Egeu e Centímano desafiaram o panteão buscando expulsar Júpiter do trono, Adamastor justifica a sua atitude como um ato de amor:

Amores da alta esposa de Peleu
Me fizeram tomar tamanha empresa.
Todas as deusas desprezei do Céu,
Só por amar das Águas a Princesa.

(Lus. V, 52)

O Gigante se apaixonara pela ninfa Thétis, mulher de Peleu e filha de Nereu e Dóris. Desprezando todas as deusas do Céu, queria apenas amar a Princesa das águas. Não lhe sendo possível abordar a amada, Adamastor toma Dóris como intermediária, ameaçando fazer guerra ao Oceano se não obtivesse os amores de Thétis. Iludido pela mãe da ninfa, o cego amante enche “com grandes abonanças, / O peito de desejos e esperanças”.

Enlouquecido e já desistindo de guerrear, Adamastor é seduzido por Thétis, que preparava para o Gigante uma armadilha. Erguendo-se nua do mar, a ninfa conduz o amante à ruína, ao aniquilamento total, ao nada. Correndo para os braços de sua amada, Adamastor é iludido. Acreditava beijar “os olhos belos”, “as faces e os cabelos” da ninfa. Crendo ter nos braços a amada, Adamastor encontrou-se abraçado com um “duro monte / De áspero mato e de espessura brava”. Seus irmãos já estavam vencidos. E ele, Adamastor, estava também, enfim, derrotado. O amor não correspondido é o seu sofrimento inconsolável:

Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custa ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?
Daqui me parto, irado e quase insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

Eram já neste tempo meus Irmãos
Vencidos e em miséria extrema postos,
E, por mais segurar-se os Deuses vãos,
Alguns a vários montes sotopostos.
E, como contra o Céu não valem mãos,
Eu, que chorando andava meus desgostos,
Comecei a sentir do Fado imigo,
Por meus atrevimentos o castigo.

Converte-se-me a carne em terra dura;
Em penedos e ossos se fizeram;
Estes membros que vês, e esta figura,
Por estas longas águas se estenderam.
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto Cabo converteram
Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Thétis cercando destas águas

(Lus. V, 57/59)

Adamastor é um vassalo do feroz amor que arrebata corações, que faz, com sua força, sucumbir os apaixonados. O gigante derrama lágrimas porque vê próximo de si a amada, mas não pode tocá-la, ou beijá-la, ou amá-la. Seu grito desesperado é o daquele que ama e não é correspondido. É o grito desesperado daquele que deu a vida pelo amor – e somente encontrou infortúnio. Finda, enfim, o seu lamento em um “medonho choro”. “Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro / bramido muito longe o mar soou”. Vasco da Gama, passada a ameaça, “levantando as mãos ao santo coro / Dos anjos” rogou a Deus “que removesse os duros / Casos, que Adamastor contou futuros”.

Adamastor constitui o núcleo entre os planos do real e do mítico na narrativa d’ Os Lusíadas. Em nenhum outro ponto da epopéia, aliás, parece haver a confluência tão perfeita entre a fantasia mítica e a realidade histórica, aglutinados pela cadência épica das profecias e ameaças do Gigante e do tom elegíaco que rege as estâncias finais desta microsseqüência da narrativa. O encontro das naus portuguesas com o Gigante Adamastor ocorre na metade da epopéia, como se estivesse indicando o ponto crucial da empreitada marítima.

Como a Esfinge, ali estava o colosso a propor aos que tentavam passagem o enigma e a alternativa por ele criada: “Decifra-me ou te devoro”. O enigma era a sua força; decifrada, a Esfinge perdeu-a e matou-se. Assim também o Adamastor, desvendado, revelou a outra face, a face da fraqueza, até aí irrevelada. Não se mata, na verdade, mas perde a sua unidade aparente, passa a ser a imagem do povo que o decifra e que nela se projeta para nela se reconhecer. É o momento da criação do mito. (Berardinelli, 2000: 80)

Podemos, portanto, pensar que a história de Adamastor simboliza a capacidade de o amor superar as maiores adversidades, quaisquer que sejam elas. Pela força do amor à pátria, afinal, as naus lusíadas puderam atravessar o Mar Tenebroso e vencer os próprios medos, superando todas as adversidades. O coração de Adamastor é a alma do povo português que se revela. Simbolicamente, enfrentar – e desvendar – o seu enigma é a celebração do “peito ilustre lusitano”.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. 2ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro; Nova Fronteira, 2000.

CAMÕES, Luís de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

CIDADE, Hernani. Luís de Camões: a obra e o homem. 3ª ed. Lisboa: Arcádia, 1979.


 

[1] O texto de Roland Barthes a que se refere Cleonice Berardinelli está em "Introduction à l’analyse structurelle des récits". In. Communications 98. Paris: Seuil, p. 10.

[2] Três acidentes que ocorrem depois da viagem de Vasco da Gama (1497-1499) são destacados – e todos eles anteriores à publicação d’ Os Lusíadas (1572): Bartolomeu Dias, descobridor do Cabo das Tormentas em 1487. Ali morreu em 1500, durante uma tempestade, quando integrava a armada de Pedro Álvares Cabral, que, uma vez descoberto o Brasil, dirigia-se para a Índia; D. Francisco de Almeida, o primeiro Vice-Rei da Índia, em 1503, pereceu em guerra com os africanos no Cabo das Tormentas; Manuel de Sousa Sepúlveda que, casado com D. Leonor de Sá – filha do governador da Índia – naufraga com a esposa e os filhos no Natal de 1552, tornando-se o acidente mais famoso da história trágico-marítima portuguesa.