DESENVOLVIMENTO DE HABILIDADES
DE LEITURA DE TEXTOS A PARTIR
DA ANÁLISE DE PRESSUPOSTOS E SUBENTENDIDOS

Nohad Mouhanna Fernandes (UNIGRAN)

 

RESUMO

Contemplando a leitura como processo sócio-discursivo que se realiza num contexto enunciativo, processo cognitivo de inferências e trabalho de produção de sentidos, este trabalho destaca a importância de se conduzir o aluno ao estudo de aspectos semântico-discursivos, especificamente das noções de pressupostos e subentendidos, para o desenvolvimento de habilidades de leitura nos diversos níveis de escolaridade. Enfatiza a necessidade de, no contexto escolar, os fenômenos relativos à significação serem trabalhados nas aulas de leitura e interpretação, com vistas a contribuir para a formação de leitores atuantes e críticos, capazes de encarar a leitura como um processo dialógico.

 

Introdução

Desde a década de 70, por meio de resultados de vestibulares e de avaliações nacionais, tem-se constatado que um número significativo de alunos brasileiros tem dificuldade em interpretar, em interagir com o texto atribuindo-lhe sentido, em posicionar-se criticamente frente ao que lê. Tem-se ressaltado, a partir de então, que um dos principais compromissos do professor da área da linguagem é auxiliar o aluno a desenvolver sua competência de leitura, pois não há mais dúvidas de que, na sociedade atual, a qualidade de vida do cidadão está diretamente ligada a essa competência. Dessa feita, ampliam-se os estudos sobre leitura fundamentados em teorias do discurso e do texto, sob as mais diferentes abordagens. Uma dessas abordagens parte do princípio de que ler é muito mais do que decodificar sinais, destacando, portanto, a necessidade de se conscientizar o aluno sobre os diversos níveis de significação existentes em cada texto, ou seja, “cumpre mostrar-lhe que, além da significação explícita, existe toda uma gama de significações implícitas, muito mais sutis, diretamente ligadas à intencionalidade do produtor”. (Koch, 1996: 160).

Isso implica dizer que as interações verbais não ocorrem fora de um contexto sócio-histórico-ideológico e, sendo assim, a interpretação de enunciados exige do interlocutor não apenas uma interpretação semântica, mas uma análise do contexto, ou seja, exige dele um procedimento pragmático (Maingueneau, 2004: 29). Nessa direção, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN, 1998) têm motivado os educadores a refletirem sobre a necessidade de capacitar o aluno a compreender não só o que está escrito, mas também a identificar os implícitos, como evidencia o conteúdo abaixo para a prática de leitura de textos escritos:

Articulação entre conhecimentos prévios e informações textuais, inclusive as que dependem de pressuposições e inferências (semânticas e pragmáticas) autorizadas pelo texto, para dar conta de ambigüidades, ironias e expressões figuradas, opiniões e valores implícitos, bem como das intenções do autor. (PCN, 1998: 56)

Por outro lado, cabe lembrar que a introdução dessa prática em sala de aula não tem sido muito usual. A vasta bibliografia da lingüística aplicada ao ensino de língua portuguesa mostra que a escola está acostumada a práticas pedagógicas que não estendem o aprendizado da leitura, compreensão e interpretação a um constante interagir, impossibilitando o aluno de perceber aspectos semânticos e pragmáticos que atuam no sentido dos enunciados e de analisar a língua em uso, em funcionamento.

Atingir o objetivo de fazer com que os alunos se tornem leitores autônomos e competentes esbarra em alguns outros entraves que incorporam a operacionalização do trabalho com a linguagem. Um deles está no fato de a escola privilegiar muito mais os estudos sobre Morfologia, Sintaxe e Fonética do que os estudos do texto e da significação. Nesse sentido, é oportuno ressaltar o que Rodolfo Ilari diz sobre a ausência do estudo da significação nas escolas de ensino médio:

Uma das características que empobrecem o ensino médio da língua materna é a pouca atenção reservada ao estudo da significação. O tempo dedicado a esse tema é insignificante, comparado àquele que se gasta com "problemas" como a ortografia, a acentuação, a assimilação de regras gramaticais de concordância e regência, e tantos outros, que deveriam dar aos alunos um verniz de "usuário culto da língua". Esse descompasso é problemático quando se pensa na importância que as questões da significação têm, desde sempre, para a vida de todos os dias, e no peso que lhe atribuem hoje, com razão, em alguns instrumentos de avaliação importantes, tais como o Exame Nacional do Ensino Médio, os vestibulares que exigem interpretação de textos e o Exame Nacional de Cursos. (Ilari, 2003: 11)

Em relação às diferentes maneiras de se trabalhar com o texto, o autor assevera para o fato de que “as que prevalecem na prática pouco tem a ver com interpretação”. Segundo ele, não se dá atenção “ao enorme repertório de conhecimentos e à variedade dos processos que mobilizamos ao interpretar”; e, ainda, “não existe em nosso ensino a tradição de tratar do sentido através de exercícios específicos” (Ilari, 2003: 11).

Nesta perspectiva, este trabalho visa a uma reflexão sobre a leitura como um processo cognitivo de inferências e como um processo sócio-discursivo que se realiza num contexto enunciativo. Destaca a importância de se conduzir o aluno ao estudo de aspectos semântico-discursivos, especificamente das noções de pressupostos e subentendidos, para o desenvolvimento de habilidades de leitura nos diversos níveis de escolaridade, com vistas a contribuir para a formação de leitores atuantes e críticos, capazes de encarar a leitura como um processo dialógico.

 

Algumas Considerações
Sobre Atividades Inferenciais De Leitura

Os PCN contemplam a necessidade de a escola formar leitores proficientes, passe essencial para a cidadania. Para a concretização desse objetivo, mudanças na forma de se compreender a linguagem e o seu processo de aprendizagem devem ser feitas. A ação que se faz necessária advém de princípios teóricos relativos à concepção sociointeracionista de língua, na qual o texto é visto como um todo organizado de sentido e, no dizer de Koch (2002: 17), como um espaço em que adentra “toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interação”. A leitura, nessa concepção, é vista como um processo que envolve, além dos conhecimentos lingüísticos e textuais, o conhecimento de mundo do leitor ou, em outros termos, é vista como uma atividade que envolve elaborações semânticas, pragmáticas, lógicas e culturais, e, portanto, como dependente de fatores lingüísticos e extralingüísticos. Dessa feita, o ensino/aprendizagem de língua portuguesa se faz por meio da interligação entre os eixos da análise lingüística, da leitura e da produção textual. A interiorização desses princípios decorrentes da evolução dos estudos lingüísticos, enfim, sustentam o fazer pedagógico no processo de compreensão.

Vale ressaltar que compreensão, de acordo com Marcuschi (2003: 58), é “um processo criador, ativo, construtivo que vai além da informação estritamente textual.” Ou ainda, a compreensão, na visão interacional de língua, segundo Koch,

Deixa de ser entendida como simples “captação” de uma representação mental ou como a decodificação da mensagem resultante de uma codificação de um emissor. Ela é, isto sim, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos lingüísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas que requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes (enciclopédia) e sua reconstrução deste no interior do evento comunicativo. (Koch , 2002: 17)

Nessa perspectiva, o professor deve realizar um exercício analítico por meio de perguntas mediadoras que orientem o olhar dos leitores em formação a compreender ativamente os implícitos das práticas da linguagem, levando-os a avaliar os argumentos e o conteúdo subjacente às afirmações do texto e orientando-os para o exercício do pensar crítico. Enfim, o professor, que tem familiaridade com diferentes manifestações da linguagem, deve dar uma contribuição significativa para a compreensão do texto, de modo a favorecer o desenvolvimento de capacidades de leitura mais complexas, ou seja, inferenciais. Esta, sem dúvida, é uma das formas de ajudar o aluno a inter-relacionar-se com o texto, a raciocinar de forma mais eficaz, a fazer inferências baseadas em informações explícitas e implícitas, mostrando-lhe como essas influenciam na leitura e na compreensão do texto, pois, como explica Marcuschi:

Na atividade inferencial, costumamos acrescentar ou eliminar; generalizar ou reordenar; substituir ou extrapolar informações. Isto porque avaliamos, generalizamos, comparamos, associamos, reconstruímos, particularizamos informações e assim por diante. Pois inferir é produzir informações novas a partir de informações prévias, sejam elas textuais ou não. A única coisa que deve ser controlada na inferenciação é a falsidade ou a incompatibilidade do resultado com os elementos explícitos do texto. (Marcuschi, 2003: 58)

Koch (2002: 161), ao tecer algumas reflexões sobre o ensino da leitura, explica que mediante a observação de determinadas estratégias de enunciação que a superfície textual revela, o leitor consegue entender as intenções do autor. Para tanto, segundo a autora, “é preciso compreender-se o querer dizer como um querer fazer.”

Nesse sentido, faz-se útil delinear, ainda que de forma sintética, alguns pressupostos teóricos referentes à questão da significação. Vale ressaltar que os exemplos que estão imbricados aos fenômenos semântico-discursivos ora apresentados servem para impulsionar uma reflexão sobre a prática da leitura, de forma a mostrar a importância da percepção dos significados implícitos – pressupostos e subentendidos-, que entram em jogo no ato de interpretar o texto.

 

Informações implícitas

No processo de aprendizagem da leitura, é essencial que o professor chame a atenção dos alunos para o fato de que os textos transmitem explicitamente certas informações (significação observável pelo contexto frasal, gramatical, lingüístico em sentido estrito, portanto, decorrente da competência lingüística do leitor), enquanto deixam outras implícitas. Para Koch (1996, p. 161), “a intelecção de um texto consiste na apreensão de suas significações possíveis, as quais se representam nele, em grande parte, por meio de marcas linguísticas.” Assim, segundo a autora, é preciso preparar o aluno para reconhecer essas marcas, dentre as quais se destacam o pressuposto e o subentendido. Isso porque, ao reconhecê-las, o aluno reconstrói o evento da enunciação, pois apreende a intencionalidade subjacente ao texto, mas não só, também reconstrói o texto “a partir de sua vivência, de seu conhecimento e de sua visão de mundo.”

No momento que o educando se tornar capaz de descobrir tudo aquilo que se encontra, de algum modo, implicitado no texto, em seus diversos níveis de significação, ser-lhe-á mais fácil fugir à manipulação, ou seja, reconhecer as manobras discursivas realizadas pelo emissor, com o intuito de conduzi-lo a uma determinada interpretação ou obter dele determinados tipos de comportamento. (Koch, 1996: 162)

Sintetiza-se nas palavras acima, portanto, a importância de os fenômenos relativos à significação serem trabalhados nas atividades de compreensão de textos.

 

Pressuposição.

É indiscutível que a escola é o lugar privilegiado para auxiliar os alunos na leitura de pressupostos. Mas, o que são pressupostos? Veja-se o seguinte exemplo prático: “Ademir parou de beber.” Para se aceitar o fato de Ademir ter deixado de beber, toma-se, como verdadeira, outra informação que, embora não dita na frase, é logicamente pressuposta pelo verbo parar de, ou seja, se Ademir parou de beber, é porque antes ele bebia. Por outro lado, a informação deixa de ser válida se Ademir nunca bebeu. Dessa feita, o Novo Dicionário Aurélio (Ferreira, 1986) assim define pressuposto: “circunstância ou fato considerado como antecedente necessário a outro.” De forma mais abrangente, Ilari e Geraldi (1994: 90) explicam que a pressuposição é um “conteúdo implícito, sistematicamente associado ao sentido de uma oração, tal que a oração só pode ser verdadeira ou falsa se o conteúdo em questão for reconhecido como verdadeiro”.

No exemplo citado acima, percebe-se que a pressuposição lógica ou semântica é parte do conhecimento partilhado pelo falante e pelo ouvinte. Assim, diz-se que sua noção é relacionada ao sentido das palavras inscritas no enunciado, mas também, como diz Cançado (2005: 27-28), “a um conhecimento prévio, extralingüístico, que o falante e o ouvinte têm em comum”; portanto, de acordo com a autora , “pode-se dizer que a pressuposição é uma noção semântico-pragmática.” Dessa feita, o conteúdo pressuposto “Ademir bebia antes”, já que conhecido pelos interlocutores para ser proferido, não é afetado, permanece inalterado quando esse enunciado é negado, ou é colocado em forma de interrogativa, ou mesmo como uma condicional (suposição) antecedendo outra sentença: a) Ademir parou de beber; b) Ademir não parou de beber; c) Ademir parou de beber?; d) Se Ademir parou de beber, sua esposa deve estar contente. O pressuposto, pois, faz sentido em qualquer uma dessas situações, ainda que modifiquemos sua forma sintática.

Ao analisar as relações de sentido em enunciados, algumas palavras ou expressões introduzem pressuposição. Entre os indicadores lingüísticos de pressuposição, podem-se citar certos adjetivos ou palavras similares modificadoras do substantivo, verbos que indicam mudança ou permanência de estado, advérbios, orações adjetivas e conjunções, os quais, ao serem identificados, contribuem para uma leitura mais aprofundada do texto. Quando se diz, por exemplo, “Freqüentei as aulas de pintura, mas aprendi algumas coisas.” o falante transmite duas informações de maneira explícita: a) que ele freqüentou as aulas de pintura; b) que ele aprendeu algumas coisas. Ao ligar essas duas informações com um mas comunica também, de modo implícito, sua crítica às aulas de pintura, pois passa a transmitir a idéia de que pouco se aprende nessas aulas.

 

Subentendidos

Para falar em subentendidos, as “máximas conversacionais” apresentadas pelo americano Paul Grice (1982) devem ser reportadas. Segundo Maingueneau (2004), essas máximas ou leis do discurso desempenham papel fundamental na interpretação de enunciados orais ou escritos, já que são definidas como um conjunto de normas que devem ser respeitadas pelos interlocutores num ato de comunicação verbal. Como propõe Grice, há um princípio geral denominado princípio de cooperação que determina que os interlocutores devem se mostrar cooperativos, contribuindo para construir o sentido do texto de acordo com o objetivo ou orientação imposta pelo intercâmbio verbal no qual participam. Na dependência desse metaprincípio, estão várias normas, e, de acordo com Borba ( 1998: 253), algumas delas “permitem prever os subentendidos”, que são “insinuações semânticas que se acrescentam à significação dada pelo componente lingüístico”, ou, no dizer de Maingueneau (2004: 33), o subentendido é um “tipo de implícito que se evidencia pelo confronto do enunciado com o contexto de enunciação.”

Em relação às máximas de Grice (1982: 89), que dizem respeito, em síntese, a dizer o suficiente para ser compreendido, a procurar afirmar coisas verdadeiras, a ser relevante e a ser claro, tem-se que, caso seja violada ou transgredida uma dessas regras, o leitor procurará entender o que está implícito no enunciado. O significado passa a ser depreendido a partir do que não se disse explicitamente, levando-se em consideração o contexto situacional, o conhecimento das máximas que regulam a interação, os diferentes conhecimentos cognitivos, não só de caráter lingüísticos, mas socioculturais.Veja-se um exemplo de Grice: um professor escreve uma carta de recomendação a respeito de um aluno que é candidato a um cargo de professor de filosofia, nesses termos: “Prezado Senhor, o conhecimento de inglês do senhor X é excelente, ele tem participado regularmente de nossas aulas. Sem mais, etc.” Nesse caso, como o professor não transmitiu as informações necessárias e as informações constantes na carta não são relevantes ao que foi solicitado, o recebedor da carta, decifrando o sentido literal e reconhecendo que ele não é pertinente, deverá inferir que o professor deve estar querendo dar informações não explícitas na carta, qual seja: a informação de que o senhor X não é adequado ao cargo de professor de filosofia. Em outros termos, as insinuações que se podem depreender daí não foram marcadas lingüisticamente no texto, mas são inferidas em decorrência da transgressão de uma máxima, determinando que o leitor/ouvinte, subentenda um conteúdo além do sentido literal.

Ao articular as noções de pressuposto e de subentendido, Koch (1996: 69) diz que “a pressuposição é parte integrante dos enunciados; o subentendido, por sua vez, diz respeito à maneira como este sentido deve ser decifrado pelo destinatário.” Enquanto os pressupostos estão relacionados a um componente lingüístico – presente no próprio enunciado – independente das condições de ocorrência, os subentendidos estão previstos por um componente retórico que leva em conta as circunstâncias da enunciação, estando, portanto, ausentes no enunciado. Assim, o pressuposto é uma informação estabelecida como indiscutível ou evidente tanto para o falante quanto para o ouvinte, pois a estrutura lingüística oferece os elementos necessários para depreender o sentido do enunciado. Já o subentendido, por possibilitar dizer alguma coisa, aparentando não a dizer ou não a dizendo, passa a ser de responsabilidade do ouvinte/leitor. Maingueneau (1996: 91) ilustra essa distinção com o seguinte exemplo:

A: Estou procurando alguém para consertar meu carro.

B: Meu irmão está em casa.

A: Mas ele está sempre tão ocupado!

De acordo com o autor, a resposta de B contém a proposição implícita de que B tem um irmão. Essa proposição, qualquer que seja a situação de enunciação, encontra-se inscrita no enunciado. Dessa resposta, ainda, outro conteúdo implícito pode ser inferido, ainda que não se encontre no enunciado: o de que B propõe a A empregar o seu irmão, isto é, a informação de que o irmão de B é apto a fazer o conserto. Essa inferência foi operada a partir da enunciação, é subentendida a partir dela.

Segundo Borba (1998, p. 253), um enunciado como “Conheço muito bem os políticos de hoje” pode sugerir mais valores semânticos do que o enunciado declara, como, por exemplo, pode querer dizer que são desonestos. No entanto, se o locutor do enunciado é contestado pelo ouvinte quanto ao conteúdo do seu dizer, poderá alegar que quem está dizendo isso é o ouvinte e não ele, que não disse isso que o ouvinte interpretou, ou seja, defende-se atrás do sentido literal das palavras para se safar da interpretação. Portanto, o subentendido pode servir para o emissor proteger-se. Ao enunciar algo que pode ser subentendido, pode ter a intenção de transmitir a informação que deseja, mas sem se comprometer. Assim, não diz explicitamente, mas dá a entender, deixa subentendida alguma informação; deixa-a camuflada para não se comprometer.

 

Reconhecendo os implícitos do texto

Como já ressaltado, na análise de textos, o aluno deverá perceber que há textos em que o que não foi escrito também deve ser levado em consideração no ato de ler. No texto abaixo, por exemplo, o professor deve levar o aluno a depreender os significados decorrentes de certas palavras ou expressões marcadas discursivamente no texto que levam a depreender posições, idéias em relação ao que se fala:

Pesquisa revela que só 19% usam camisinha

Um levantamento feito (...) com trabalhadores de 120 empresas de 14 estados revela que o brasileiro ainda está muito mal informado sobre as formas de contágio da Aids. Segundo a pesquisa, 71% dos 4941 entrevistados acreditam que doar sangue transmite a doença, quando, na verdade, o perigo é receber o sangue de alguém que possui o vírus. No tema prevenção, a situação também é preocupante: 96,4% dos pesquisados sabem que o uso do preservativo evita a transmissão da doença, mas, mesmo assim, 47% responderam que nunca usaram preservativo; 18% disseram que usam camisinha às vezes; e 19% afirmaram usá-la sempre.

(Boa Forma. Ano 12, n° 11, nov. 1997)

Além das várias informações explícitas, as quais estão presentes na superfície textual, há informações implícitas que devem ser identificadas. Por exemplo: no título 19% usam camisinha, o advérbio estabelece o implícito de que o uso de camisinha é indesejavelmente baixo entre os pesquisados. Na passagem o brasileiro ainda está muito mal informado, o advérbio ainda deixa implícito que a desinformação é um fator negativo, mas provisório, ou seja, há a possibilidade de reverter, de superar essa desinformação. Na seqüência acreditam que doar sangue transmite a doença, quando, na verdade, o perigo é receber o sangue, percebe-se a oposição entre a falsa crença da informação ao verdadeiro conhecimento do processo de transmissão da doença. Quanto ao advérbio também, na seqüência No tema prevenção, a situação também é preocupante, instaura o pressuposto de que o que se disse antes sobre a falsa crença de contágio da Aids também é preocupante, ou seja, acrescenta-se a essa preocupação mais uma, a que se refere ao tema prevenção da Aids. Já na passagem 96,4% dos pesquisados sabem que o uso do preservativo evita a transmissão da doença, mas, mesmo assim, 47% responderam que nunca usaram preservativo, a forma verbal sabem do verbo factivo saber pressupõe que seja verdadeira a sua completiva, ou seja, a afirmação de que o uso do preservativo evita a transmissão da doença. O primeiro enunciado os pesquisados sabem que o uso do preservativo evita a transmissão da Aids conduz à conclusão de que, então, eles usam preservativos; essa conclusão, no entanto, é refutada pela conjunção adversativa mas, que introduz um argumento contrário a esse implícito, ou seja, eles não usam preservativos. Além disso, percebe-se o uso de mesmo assim reforçando a idéia de que mesmo sabendo que o uso do preservativo é necessário, não o usam.

As expressões acima analisadas, explícitas no texto, permitem depreender os pressupostos, os quais, analisados no seu conjunto, refletem o ponto de vista a partir do qual o texto foi construído, uma vez que divulgado em uma revista que se preocupa com a saúde e bem-estar do leitor. Além de informar sobre a pesquisa, o texto procura advertir sobre a necessidade de se difundir mais os métodos de prevenção da contaminação da Aids, ou, em outros termos, de se controlar a contaminação da Aids entre os brasileiros por meio de informações sobre as formas de contágio da doença. Como se vê, por meio das pistas extraídas do texto, o leitor pode, então, compreender os implícitos e garantir um bom nível de leitura.

É útil ressaltar que a exploração dos implícitos deve ser feita em qualquer gênero discursivo. Alguns, como o texto humorístico, por exemplo, obrigatoriamente exigem do leitor sua identificação para que o humor seja ressaltado. Isso porque o humor é construído baseando-se no que não é dito, mas apenas sugerido, cabendo ao leitor perspicaz realizar sozinho a conclusão. Também, o texto publicitário freqüentemente transmite informações implícitas. Um exemplo pode ser o seguinte anúncio do Jornal O Estado de São Paulo, publicado na revista Veja em 28/10/92:

Pois é...

-Então...

-É fogo.

-Ô.

-Nem fale.

-É.

-Ô se é.

É melhor você começar a ler o Estadão.

 

 

ESTADÃO

É muito mais jornal.

O anúncio acima, conforme se pode ver, utiliza o recurso da função fática para denunciar a falta de informação ou de assunto contida no diálogo. Assim, pretende chamar a atenção do leitor para a necessidade da leitura do jornal Estadão, para que ele não corra o risco de se encontrar nessa situação, para que obtenha conhecimentos e esteja informado sobre os fatos da realidade, conseguindo, assim, interagir socialmente de forma eficaz. Isso tudo não está dito explicitamente no texto, mas o leitor deve captar a intenção do anúncio que é a de mostrar que se a pessoa for leitora do jornal não será estará desinformada como os interlocutores do diálogo.

 

Considerações finais

Das reflexões aqui apresentadas relativas ao processo de leitura e compreensão de textos, ressalta-se que a identificação dos implícitos é de extrema importância no ato de ler. Acredita-se que para se reverter a triste constatação de que nossos jovens possuem dificuldade em atribuir sentido ao que lêem, evidencia-se a necessidade de o professor da área da linguagem pôr em foco a questão da significação, empreender propostas de ensino de leitura que objetivem estimular o pensamento organizado, levando o aluno a apropriar-se do conhecimento de forma consciente, reflexiva e crítica. Mediante procedimentos pedagógicos de ensino de leitura que privilegiem a interação dialogal e a análise dos implícitos da linguagem, o aluno poderá refletir sobre os recursos utilizados no texto para dizer o dito e o não-dito, ou seja, comportar-se-á como um leitor-construtor do sentido do texto. Ressalta-se, aqui, que o estudo não teve a intenção de oferecer ao professor sugestões de procedimentos para o ensino da leitura; no entanto, por meio da reflexão sobre alguns aspectos semântico-pragmáticos que envolvem a leitura, pretendeu mostrar o quão importante é levar o educando a apropriar-se desses conhecimentos, com o intuito de conduzi-lo a uma leitura produtiva e, conseqüentemente, à apreensão da intencionalidade subjacente ao texto. Ao capacitar o aluno a descobrir as informações implícitas no texto, dentre elas os pressupostos e subentendidos, tornar-se-á possível reconhecê-lo como um usuário competente da linguagem no exercício da cidadania, tal como postulam os PCN.

 

Referências Bibliográficas

BORBA, F. da S. Introdução aos estudos lingüísticos. 12ª ed. Campinas: Pontes, 1998.

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais - Língua Portuguesa: 3º e 4º Ciclos do Ensino Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 1998.

CANÇADO, M. Manual de Semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

GRICE, H. P. Lógica e conversação. In. DASCAL, M. (Org.). Fundamentos metodológicos da Lingüística (IV) Pragmática – problemas, críticas, perspectivas da Lingüística. Campinas: 1982.

ILARI, R. Introdução à semântica: brincando com a gramática. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 2003.

ILARI, R. & GERALDI, J. W. Semântica. 6ª ed. São Paulo: Ática, 1994.

KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 1996.

––––––. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de S. e Silva, Décio Rocha. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2004.

––––––. Pragmática para o discurso literário. Tradução Marina Appenzeller; Revisão da tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MARCUSCHI, L. A. Compreensão de texto: algumas reflexões. In. DIONISIO, A. P. & BEZERRA, M. A. (orgs.) O livro didático de Português: múltiplos olhares. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.