LEITURA, ESCRITA E CORREÇÃO

Rute de Souza Josgrilberg (UNIGRAN)

 

RESUMO

Este trabalho é resultado da reflexão sobre a importância do ato de ler, enquanto manifestação da linguagem humana, e possíveis contribuições para o desenvolvimento da competência lingüística. Objetivou-se perceber a relação entre leitura e correção lingüística, tanto na modalidade oral, quanto na escrita, entendendo-se como leitor não apenas aquele que lê livros consagrados, mas, também, o que lê os mais variados tipos textuais, tais como jornais, outdoors, letras de música popular, entre outros. Para validar este estudo, contou-se com o aporte teórico de autores como Gustavo Bernardo (2000), Ângela Kleiman (2002) e Ingedore Koch (2001).

 

Muito se tem discutido sobre a importância da leitura e sobre a sua relação com a escrita, não apenas como fonte geradora do “o que” escrever, mas também como matriz do “como” escrever. Em meio a essa relação, paira a dúvida sobre até que ponto ler influencia no grau de correção gramatical, sendo essa a mola propulsora de nossas reflexões. Vejamos, primeiramente, algumas questões referentes à leitura.

Tal qual a mão direita e a esquerda, ler e escrever caminham juntos. Ora independentes, ora em movimentos sincronizados, ora em movimentos inversos e, freqüentemente, em franca parceria. Para melhor entendermos o funcionamento da engrenagem cujas peças são a leitura, a escrita e a correção gramatical, comecemos por buscar compreender o que significa cada um desses componentes. No que diz respeito à leitura, sabemos que não basta juntarmos sons ou letras para formarmos palavras. Se não construirmos sentido, o texto não se realizou como tal, isto é, não basta juntarmos b + o + .l + a, se não associarmos essas combinações à imagem e ao significado do objeto. Tomemos, como exemplo, um estrangeiro que nada compreende da língua portuguesa, mas consegue pronunciar essa seqüência de sons, ou mesmo escrevê-la. Isso não significa que ele tenha feito a leitura de tal palavra, uma vez que não construiu nenhum sentido a partir desses sons. Pode, no máximo, ter conseguido decodificar a palavra. Ler vai além da decifração de signos e ler em profundidade exige ler além do que está explicitamente escrito, isto é, ler o não-dito, ler nas entrelinhas e, ainda, relacionar o texto lido com outros, lidos anteriormente. O leitor “maduro” consegue estabelecer essas relações, porém há aqueles que afirmam não gostar de ler, e há os que lêem, mas não compreendem.

Ao falarmos em leitura e/ou escrita, falamos em produção textual. Cabe, então, um parênteses para esclarecermos sobre o conceito de texto a que fazemos referência. Entendemos ‘texto’, conforme orientação de Koch (2001), como uma estrutura sempre “em processo”, de caráter verbal, social, cognitivo e sócio-cultural, cujo sentido não é construído no texto, mas a partir dele.

O grupo dos leitores “maduros” estabelece uma relação prazerosa com a leitura enquanto que para os demais, essa relação é de mera obrigação. Ninguém nasce pré-determinado a ser um bom ou mau leitor. A formação do leitor exige um complexo processo de formação que vai além da capacidade intelectual de cada um, passando por determinantes estabelecidas pela sociedade, pela família e pela escola. Nesse sentido, Magda Soares (1988: 17) lembra que

[...] é o uso da língua na escola que evidencia mais claramente as diferenças entre grupos sociais e que gera discriminações e fracasso: o uso, pelos alunos provenientes de camadas populares, de variantes lingüísticas social e escolarmente estigmatizadas provoca preconceitos lingüísticos e leva a dificuldades de aprendizagem, já que a escola usa e quer ver usada a variante-padrão socialmente prestigiada.

A aprendizagem na escola está vinculada à capacidade de ler e esse é um dos grandes problemas a ser enfrentado, visto que o texto escrito torna-se, para a maioria dos alunos, incompreensível, configurando-se num obstáculo à aprendizagem. Depreende-se daí que ensinar a compreender um texto escrito é papel do educador. Desempenhar esse papel, segundo Kleiman, “significa lidar com a complexidade do ato de compreender e a multiplicidade de processos cognitivos que constituem a atividade em que o leitor se engaja para construir o sentido de um texto escrito” (2002: 9). Ensinar a compreender um texto, mais do que uma ação no plano cognitivo, é ensinar uma relação social que se estabelece na interação entre o autor e o leitor. Essa interação faz-se na medida em que a construção do sentido do texto não é, apenas, tarefa do autor, visto que leitor e autor dividem essa responsabilidade.

Além da relação estabelecida entre autor e leitor para a compreensão do texto, outro fator de peso é o objetivo. O objetivo do leitor define o tipo de texto que ele vai escolher para ler. Conforme esclarece Kleiman (2002), os objetivos da leitura de um romance não são os mesmos da leitura de uma notícia de jornal e quando o leitor lê mecanicamente, apenas porque alguém mandou, o resultado é bastante diferente da leitura feita quando o leitor tem uma necessidade, define um objetivo a atingir e o texto constitui-se no meio que o conduzirá ao seu intento.

Para se ensinar a ler um texto e compreendê-lo, faz-se necessário lidar com o conhecimento prévio do aluno, ou seja, tudo o que aprendeu ao longo de sua existência. O peso da bagagem cultural que ele carrega é fator relevante na compreensão de textos. O grau de conhecimento lingüístico, de conhecimento de mundo e a interelação entre esses fatores permitirá que o leitor construa, com maior ou menor facilidade, o sentido do texto. Em relação ao conhecimento lingüístico, especificamente, dominar ou não as regras que regem a língua em questão, ter um vocabulário mais ou menos extenso, serão fatores decisivos na compreensão textual. Dessa forma, segundo Koch (2001), há três componentes no processo de composição de um texto: o lingüístico (gramática e léxico), o enciclopédico (conhecimento de mundo) e o interacional (a linguagem como meio de interação). Ensinar a compreender um texto é, portanto, saber lidar com esses componentes textuais.

Além dos itens acima elencados, ao tratarmos da leitura de um texto, os fatores de coesão e coerência textuais assumem papel relevante. Koch (2001: 35) conceitua coesão textual como “o fenômeno que diz respeito ao modo como os elementos lingüísticos presentes na superfície textual se encontram interligados, por meio de recursos também lingüísticos, formando seqüências veiculadoras de sentidos”. A respeito da coerência textual, afirma a autora que é “o modo como os elementos subjacentes à superfície textual vêm a constituir, na mente dos interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos”. A exemplo do que ocorre na construção do sentido textual., a coerência também não está no texto, mas é construída a partir dele. Vale lembrar que a autora defende a idéia de que não há uma fronteira nítida entre problemas de coerência e de coesão, visto ser, freqüentemente, um problema, resultado do outro.

Contribuem, também, no processo de construção de sentido do texto escrito, a intertextualidade e a polifonia. Julia Kristeva definiu o texto como um “mosaico de citações” em que o absolutamente novo não existe, uma vez que os textos são frutos do conjunto de leituras que fizemos ao longo de nossa existência, somadas às nossas experiências pessoais. Escrever um texto é, portanto, um processo de reescritura Em relação à polifonia, muitas vezes confundida com a intertextualidade, cabe diferenciá-la desta, pelo número de vozes que se fazem presentes no texto, mostrando pontos de vista diferentes de uma mesma situação.

Não é nosso propósito nos aprofundarmos nesses conceitos, dada sua amplitude, mas, antes, retomarmos alguns conceitos básicos que, numa visão geral, servirão de base para, mais adiante, embasar nossa reflexão sobre, até que ponto, a relação leitura / escrita e correção gramatical sustenta-se. Abordaremos, então, algumas questões sobre o processo de construção de um texto.

A produção textual, no que diz respeito ao texto escrito, esbarra em diversos obstáculos. Perceber o texto como um tecido, cuja tessitura faz-se a partir do trançado de vários fios (coesão, coerência, progressão textual, adequação do nível de linguagem entre outros) e não por meio da simples justaposição de frases constitui tarefa árdua para muitas pessoas, não importando o nível de escolaridade. As dificuldades começam diante da pouca ou total falta de informação sobre o tema a ser desenvolvido. Se não há o que dizer não há motivo para escrever. Se há pouca informação é porque houve pouca ou nenhuma leitura sobre o assunto a ser tratado, o que gera, de acordo com grande parte de nossos alunos, a dificuldade em começar o texto. A escrita é, então, resultado do que foi absorvido na leitura, o que exige um momento de reflexão e de “ruminação”. Os primeiros textos que produzimos são, conforme Bernardo (2000), imitações de textos lidos, mas isso não tem caráter depreciativo. O homem aprende imitando. É assim, também, com a criança que imita o adulto. Nesse ponto, podemos identificar a conexão existente entre leitura e escrita.

Às dificuldades apontadas, acrescenta-se a de ordenar as idéias, de modo a garantir a clareza e a evolução lógica do texto. Quando esse cuidado não é observado, o resultado, muitas vezes, é o comprometimento da compreensão. Sobre a falta de clareza nos textos, Bernardo (2000) explica, pelo viés da psicologia, sobre os motivos que podem levar as pessoas a não conseguirem escrever de forma suficientemente organizada. Escrever com clareza é mostrar-se, é expor-se aos critérios avaliativos de quem lê. Em contrapartida, a escrita truncada funciona como uma armadura que impede que o leitor penetre no texto, o qual representa, até certo ponto, o “duplo” do autor. Nessa perspectiva, explica Bernardo (2000: 30),

[...] escrever tem a ver com mágica. Como fazer do papel um espelho, mas um espelho às nossas ordens. “Espelho, espelho meu, existe alguém mais angustiado do que eu?” Ao escrever, me revelo – revelo a mim mesmo que posso organizar as palavrinhas [...], organizar, construir e montar o mundo novo.

A ausência de prazer no ato de pensar e no de escrever revelam o pouco incentivo que os alunos recebem para essas atividades nas escolas. A esse respeito, Gustavo Bernardo (2000: 19) nos fala de sua experiência:

[...] Reconheço sim, como origem do meu prazer e da minha necessidade de escrever, primeiro, o próprio prazer descoberto no pensar; segundo, o direito de escolher as minhas leituras, as minhas influências e os meus modelos, (direito conquistado fora das escolas, na angústia do menino defronte as estantes das livrarias); terceiro, o desejo. Desejo de modificar o mundo à imagem e semelhança das minhas melhores palavras.

A escrita de qualidade exige conhecimento de técnicas específicas, estudo, pesquisa, habilidade para identificar a variedade lingüística adequada, de modo que esteja em sintonia com a finalidade a que o texto se propõe, não se admitindo, portanto, que se atribua à intuição ou ao dom o mérito de uma boa produção.

Entre essas técnicas específicas está o domínio das regras impostas pela gramática, cujo uso adequado é, seguidamente, associado às pessoas que lêem muito e, por isso, as empregariam de forma correta; em outras palavras, seriam essas as pessoas que escrevem bem. Recorremos, mais uma vez, a Gustavo Bernardo (2000) para esclarecer que ler muito não é condição para escrever bem. Ler muito gera argumentos, facilita “o que” dizer, mas não interfere no “como” dizer. Escrever bem, para o autor, é determinado pela freqüência com que se escreve – é preciso escrever muito - associado à paixão por essa atividade: “ A atitude de ler é metonímia da vontade de entender o mundo. A atitude de escrever, por sua vez, é metonímia da pretensão legítima e transcendente de transformar o mundo” (2000: 29).

Dessa forma, escrever um texto gramaticalmente correto não se liga diretamente ao volume de leituras que o autor carrega consigo. Diante da questão sobre qual mecanismo garantiria o uso correto das normas gramaticais na produção textual, torna-se oportuno lembrar que a correção gramatical não é o único, nem o mais importante critério para a correção de um texto. O conceito de correção pauta-se, conforme Bechara (1998), no padrão culto imposto pelas classes dominantes.

Há, porém, muitos falantes que não dominam a norma culta da língua, mas nem por isso deixam de se comunicar, sendo a linguagem coloquial usada sem que haja prejuízo para os falantes da norma culta. Bechara (2000: 14) esclarece que o grande problema da correção está no fato de os falantes não se darem conta de que, na realidade, dominam “duas” línguas – a falada e, alguns, a escrita:

No fundo, a grande missão do professor de língua materna [...] é transformar seu aluno num poliglota dentro de sua própria língua, possibilitando-lhe escolher a língua funcional adequada a cada momento de criação [...].

Não se quer com isso, por fim, condenar o ensino de gramática na escola, mas, apenas, chamar a atenção para o fato de que, quando se trata de língua materna, os falantes já dominam grande parte da gramática, na prática, diferenciando saber português e saber gramática. Trata-se, segundo Bechara (2000), de uma modalidade adquirida, que deve ser ensinada a fim de permitir que o falante utilize as várias modalidades lingüísticas, de acordo com as suas necessidades.

Entendemos que a correção textual ultrapassa o limite da correção gramatical, preocupando-se com outros aspectos relevantes no texto como, por exemplo, a adequação do nível de linguagem de acordo com o contexto, a clareza, a progressão textual e outros. Compete ao professor orientar os alunos, de forma clara, sobre essas variações.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECHARA, E. Ensino da Gramática. Opressão? Liberdade? São Paulo: Ática, 1998.

BERNARDO, G. Redação inquieta. Belo Horizonte: Formato, 2000.

KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 2002.

KOCK, I. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2001.

KOCK, I. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 1987.

KOCH, I. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2003.