Literatura e mídia: pontos e contrapontos

Maria Isaura Rodrigues Pinto (UERJ e UNIPLI)

 

RESUMO

A presente pesquisa, em conformidade com o pensamento estético do momento, elege como caminho de análise o enfoque do considerável grau de interseção entre o domínio literário e domínio midiático na atualidade, visto que esse parece ser o ponto que identifica, de modo mais intenso, a produção literária de hoje, gerando a necessidade de se examinar a maneira como esse processo vem se evidenciando. Busca-se, sobretudo, caracterizar o discurso romanesco contemporâneo, em função de suas complexas e variadas relações com os meios e formas da cultura de massa. Para realizar tal intento, foram escolhidas como objeto de exame a escritura de Sérgio Sant'Anna e de João Gilberto Noll, por se considerar o espaço narrativo dessas produções um campo especialmente privilegiado para a investigação proposta.

 

O presente trabalho trata de fatores de avizinhação das escrituras de Sérgio Sant’Anna e de João Gilberto Noll com a modalidade discursiva fílmica, o que patenteia a força do apelo visual tanto nas sociedades contemporâneas quanto no domínio estético, devido ao desenvolvimento e generalização dos simulacros visuais. Tomando por base essas reflexões, a abordagem se estende às categorias narrativas de tempo e espaço; observa-se, nesse caso, o embotamento da consciência histórica do sujeito, sob o imperativo das imagens técnicas, que acabam por converter o espaço urbano em “tela”.

A fragmentação do discurso romanesco de Sant’Anna e de Noll por meio da montagem e o engendramento de uma sintaxe visual calcada na parataxe são manejos constitutivos que, pelos efeitos de simultaneidade e interpenetração, aproximam a ficção literária das mensagens audiovisuais. Evidencia-se nessas escrituras uma conotação específica, extraída do cinema.

A visualidade, manifestada pelo fazer literário, atualiza os eventos que passam a ser vistos no seu acontecer, à semelhança do que ocorre com as imagens fílmicas, que são percebidas como presente, mesmo quando em flashback ou flashfoward. Sobre o poder presentificador das imagens no cinema, expõe Marcel Martin:

Temos a prova imediata quando entramos no cinema com a sessão começada: se a ação que se apresenta aos nossos olhos constitui uma volta ao passado em relação à ação principal, evidentemente não a percebemos enquanto tal, e disso resulta certa dificuldade na compreensão. Toda imagem fílmica, portanto, está no presente: o pretérito perfeito, o pretérito imperfeito, eventualmente o futuro, são apenas o produto de nosso julgamento colocado diante de certos meios de expressão cinematográfica cuja significação aprendemos a ler (Martin, 1885: 23).

O método de compor capta a velocidade e a efemeridade das imagens que passam fugazes pela tela. A aceleração do tempo, experimentada no cinema, integra o sistema narrativo, cuja linguagem vertiginosa e fragmentada encena, como espetáculo visual, a vida contemporânea em seu movimento frenético.

Mas é com características próprias que o aspecto da rapidez e do movimento da dicção se destacam na obra dos autores citados. O narrar vertiginoso de Noll deve-se, em grande parte, ao ritmo febril dos passos errantes de seus narradores andarilhos, entregues ao torvelinho tumultuado dos acontecimentos. Impelidos a uma errância visual, eles estão sempre na iminência de partir. Essa mobilidade transparece até mesmo no título Hotel Atlântico, dado a um dos romances do escritor, já que o hotel é por natureza um local de passagem que, possuindo conotação oposta à casa, ao lar, é um lugar anônimo; em todos os aspectos (mobiliário funcional, produtos descartáveis), destituído de significação pessoal. Nessas andanças, algo está sempre acontecendo com o narrador-personagem, mas logo se percebe que não é bem o que parece ser, é outra coisa que também acaba por não ser exatamente o que aparenta. O compasso alucinante e dúbio da errância remete o leitor ansioso de uma página a outra e assim sucessivamente, até o final do livro e daí, de novo, ao princípio de um tênue fio narrativo, em que as imagens se sucedem em profusão e o enfoque do existencial se realiza na ótica do instantâneo. Nesse caso, como já ressaltou Silviano Santiago:

Olhados no seu próprio presente, isto é, narrados pela perspectiva do instante em que estão “sendo”, os fatos existenciais não suportam encadeamentos lógicos ou explicativos pedidos de empréstimo às ciências clássicas que estudaram o homem. (...) eles são aglutinados anarquicamente pela cola do acaso (Santiago,1989).

Entre a primeira cena de Hotel Atlântico (que alude a um assassinato) e a que a segue, por exemplo, abre-se uma espécie de brecha: o narrador surge, então, aos olhos do leitor, hesitante diante das escadas. Diz a passagem, dando acesso ao que vai em sua mente: Mas recuar me pareceu ali uma covardia a mais que eu teria de carregar pela viagem. E então fui em frente (Noll, 1989: 5). Assim, sem explicações prévias ou mesmo alusões anteriores, toma-se conhecimento de que o narrador se encontra na iminência de empreender uma viagem e de que seguir requer coragem. O ato de se pôr em trânsito assinala um duplo início: o da escritura e o da errância.

O episódio anteriormente mencionado é um exemplo do aspecto não causal que caracteriza a ação humana encenada na obra. O narrador não toma uma decisão, é arrastado pelas contingências. Apreende-se de imediato, ao ler a seqüência, que na armadilha em que o mundo configurado se transformou, o indivíduo é cada vez mais impelido por forças exteriores, por situações inexoráveis das quais não pode escapar. Diante dessa deriva e da incerteza generalizada, o personagem é tomado por uma espécie de embriaguez, de atordoamento.

Assim é que uma gargalhada estridente e inesperada, exibida em “close” logo a seguir, introduz a próxima seqüência, que diz respeito à breve estada do narrador no hotel e ao seu rápido relacionamento sexual com a recepcionista. A ambiência contemporânea com sua instabilidade inquietante parece estar sendo aí traduzida pela gargalhada sarcástica desse sujeito atordoado para quem os relacionamentos são sempre ocasionais. O efeito de surpresa e de impacto, provocado pelo incidente desconexo, mobiliza a atenção do leitor que busca atribuir um sentido à cena perturbadoramente ambígua:

Quando me vi diante de uma moça atrás de um balcão, que atendia os hóspedes, não pude conter uma imprevista gargalhada. Desde criança eu não dava uma gargalhada como aquela. A moça pensou com certeza que fosse uma gargalhada de algum parente ou amigo do morto em estado de choque, e com um olhar consternado ela esperou que eu acabasse de gargalhar (Noll, 1989 b: 10).

Em Noll, como se pode ver, os eventos sucessivos não se vinculam a um ordenamento causal; ocorre, no caso, a justaposição e imbricamento de cenas, em lugar do encadeamento. As seqüências narrativas se apresentam como um arranjo de imagens descontínuas sem que, entre elas, haja elos explicativos que as relacionem ou hierarquizem. As situações existenciais tratadas pelo prisma da vertigem encontram correlato numa técnica de montagem disjuntiva que bem se pode definir como uma vertigem poética do discurso. Em conseqüência disso, diz Santiago: os fatos existenciais, desprovidos da perspectiva da história de uma vida, são meras marcas no corpo humano talhadas pelo tempo e o acaso. Marcas desprovidas de nexo, sentido, explicação (Santiago, 1989).

Por outro lado, enquanto, em Noll, a vertigem da escritura passa pela procura de um viés metafísico para o instante cotidiano de um narrador desindividualizado que se caracteriza por uma mobilidade compulsiva, no caso de Sant’Anna, como argumenta Ítalo Moriconi:

(...) a sensação de vertigem vem mais da sinuosidade da própria voz do narrador. (...) a ficção de Sant’Anna é a literatura enquanto testemunho de experiências pessoais, abordadas por ele sempre com muito pouca solenidade. Seu texto busca seduzir o leitor pelo caráter farsesco e desabusado (Moriconi 1989: 10).

O discurso romanesco de Sant’Anna cria para seus personagens e narradores situações que, em muitos casos, descambando para o puro absurdo, provocam o riso. A escritura descarta, dessa forma, o velho contrato que associa a idéia do existencial ao sério.

A par disso, o sujeito da enunciação se recusa a assumir uma posição de segurança e de clareza diante de suas idéias-imagens. Isso fica patente não só na indicação dúbia do gênero, mas na própria estrutura de inúmeras narrativas. Os subtítulos de livros como A tragédia brasileira: romance teatro e Um romance de geração: comédia dramática em um ato indicam, logo de saída, essa flutuação genérica. Já o conto “Cenários”, de O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, ilustra, de modo bastante evidente, os volteios da narrativa, sua instabilidade e “sinuosidade” estrutural. O processo de composição é marcado pela transitoriedade, pela efemeridade, pela farsa: as cena banais duram apenas alguns instantes. Tudo é móvel, volátil, passageiro. A expressão: Não, não é bem isso, no final de cada micro-seqüência, aponta para o movimento de desmonte. O texto se apresenta como um cenário de papelão que é refeito a cada momento, dando lugar a uma outra montagem. O leitor tem diante de si um texto vacilante, um lugar incerto, produto da mobilidade engendrada pela técnica discursiva.

A relação imagética que o narrador estabelece com o mundo pode ser claramente constatada na seguinte passagem do romance de Noll, Rastros do verão, em que travellings sucessivos e rápidos do olhar do narrador enquadram locais diversos da paisagem citadina:

Fiz sinal a um táxi que passava. Durante o trajeto procurei não pensar. Olhava pela janela do carro uma sucessão de imagens, só isso. Uma vitrine apagando suas luzes, um homem encostado num posto olhando para as unhas, a cada quarteirão as ruas mais desertas (Noll, 1990: 92).

No cenário urbano, focalizado no trecho, vê-se (por intermédio da instância narrante) no claro-escuro da rua, a figura de um indivíduo anônimo, sozinho e sem nada para fazer, — um possível duplo do narrador.

Em Simulacros, de Sant’Anna, o narrador, dando-se conta do novo modo (cinematográfico) com que, de dentro do carro, se passa a experimentar o espaço urbano, comenta:

Talvez não fossem assim tão interessantes as atrações turísticas da nossa cidade. Talvez o interessante fosse a nossa nova maneira de ver a cidade. Nós a víamos através das janelas do nosso carro. E não importavam tanto a sujeira, a miséria, os perigos constantes nas ruas. O carro nos protegia, aquilo eram coisas que se passavam fora (Sant’Anna, 1992: 214).

Na passagem citada, também o olhar do narrador durante o percurso de automóvel se identifica com um travelling cinematográfico. A cidade vista do interior de um automóvel em andamento se ficcionaliza, tudo funciona como se o sujeito estivesse diante de uma projeção cinematográfica: a visão, moldurada pelo enquadramento do pára-brisas, das janelas e dos retrovisores, parece acompanhar, numa espécie de tela, quadros de imagens móveis que adquirem o valor de fotogramas. A vida, assim, reveste-se de um intenso grau de irrealidade e as coisas, nesse caso, já não tocam aquele que olha, pois elas se tornam um fluxo de signos fugazes que passa pela relação entre imagem e movimento.

O cotidiano urbano, apreendido como cinema/teatro em função da rapidez de transporte e do deslocamento, da produção de imagens e da circulação de informações, é lugar onde se manifesta a solidão, a insegurança, a dúvida e a desconfiança. Um sentimento difuso de perigo paira no ar, desviando atitudes, baralhando sentimentos. Como na linguagem do cinema americano, no mundo de fingimento dos detetives, todos se sentem ameaçados e para sobreviverem se munem de estratégias de despistamento, de duplicidade.

Tal fato pode ser ilustrado com a passagem de Rastros do verão, em que o narrador suspeita do adolescente que fica conhecendo ao chegar a Porto Alegre. A narrativa, enigmaticamente montada, aponta para a possibilidade de o garoto ser seu filho (o perfil que o rapaz esboça de seu pai desaparecido mantém pontos de contato com o pouco que se sabe do narrador). Apesar da visível afinidade existente entre ambos, o narrador, em dados momentos, supõe que está sendo enganado por ele.

Exemplos análogos podem ser colhidos na obra de Sant’Anna. Nas narrativas de Contos e novelas reunidos a propensão a se sentir enganado e a desconfiar do outro é um procedimento constantemente demonstrado pelos personagens e narradores. No conto “Estranhos”, o personagem-narrador, em face da insuperável desconfiança que nele provoca a mulher que acabara de conhecer, conjectura:

Dei-me conta de que a mulher estava demorando no banheiro e desconfiei de alguma coisa. Cocaína, por exemplo. Mas, afinal, eu não estava com ela, podia ver o apartamento sozinho e ir logo embora, pois já concluíra, mais ou menos, que o imóvel não fazia o gênero de Clarice (Sant’Anna, 1997 a: 706).

Cumpre notar que, embora não haja no texto dos autores citados as clássicas cenas de busca ou perseguição, típicas dos filmes policiais ou de mistério — mantém-se o clima —, a câmera–olho/voz narrativa focaliza pessoas, ruas, espaços suspeitos, itinerários, possíveis pistas, mas nada leva a um desfecho esclarecedor. O sentido do movimento de câmera se esvazia ou se transforma. É o que ocorre, por exemplo, no conto anteriormente citado em que a mulher misteriosa, cuja presença cria no leitor a expectativa do desvendamento de segredos instigantes, acaba desaparecendo, deixando o narrador (um redator de jornal) à espera de um reencontro: Mas não estava simplesmente fazendo frase quando escrevi, para finalizar a matéria, com esperança de que a mulher me lesse, entendesse tudo e viesse me encontrar, que morrer é muito fácil no Bois de Boulogne (Sant’Anna, 1997 a: 714).

Também se dá o mesmo na narrativa de “Estudo para um conto”, de Sant’Anna, em que, mediante o artifício do logro, num desenvolvimento enganoso, a ficção se empenha no manejo de transformar o detalhe insignificante em mistério. Observe-se, nesse sentido, a seqüência final do conto:

Tudo tão gratuito, retalhos, como o piscar das luzes, o par bailando, sempre, no letreiro luminoso, mais uma noite. Haverá também música, vinda do Acadêmico Dancing. A orquestra é boa, de velhos músicos, em sua maioria negros. Destacam-se os instrumentos de sopro (Sant’Anna, 1997: 699).

O propósito do processo ficcional parece ser o de acumular dúvidas, indagações, ciframentos palpitantes que, no entanto, fora de um interesse anedótico, revestem-se de gratuidade. O texto, ao adotar a dispersão como elemento de estruturação da narrativa, reforça e encena o sentido de entropia que marca a contemporaneidade.

O constituinte enigmático participa da estrutura dos textos. Os enigmas proliferam, mas não são decifrados. Não há aprofundamentos a serem feitos; a(s) resposta(s) está (estão) na própria cena, no elemento visível urdido pela linguagem. Em lugar da metafísica do oculto (suposição de que os fenômenos contêm uma essência subjacente), a prática discursiva afirma uma estética da superfície, em que vigora um recusa a olhar sob as coisas, a perscrutar, debaixo ou além das imagens, um princípio de verdade oculto. Em consonância com o que diz Christopher Lasch, ao referir-se à renúncia aos “velhos mitos da profundidade”:

Não há, em outras palavras, nenhuma realidade debaixo ou além daquilo que vem ao encontro de nossos olhos, nenhum inferno ou paraíso, nenhuma profundidade interior e nenhuma altura transcendente, nenhuma utopia no futuro, nada exceto o momento presente (Lasch, 1990: 139).

A incapacidade de ver o mundo como algo onde o olhar possa se deter afeta a existência do próprio sujeito que se desagrega e se desencontra de si mesmo e dos outros. O ritmo da vida individual — comenta Ernest Van Den Haag — perde a autonomia, a espontaneidade e a distinção quando ele está amarrado a uma corrente de tráfego e é levado de acordo com a velocidade da estrada (Haag, 1957: 591). A superficialidade que a experiência urbana enfatiza, estende-se ao indivíduo que olha e, inviabilizando a interioridade, torna-o incapaz de estabelecer laços duradouros, de construir uma história pessoal consistente e de permanecer durante muito tempo num mesmo lugar. Diz o narrador de Rastros do verão:

E eu, alguma vez tinha aderido às coisas da terra?

Senti um calafrio, como se uma nuvem tivesse passado por dentro do meu corpo, gelada e instantânea. Eu andava esses anos todos por aí, e que história pessoal eu poderia contar? Por essa geografia rarefeita quem tinha gerado comigo alguma memória duradoura? (Noll, 1990: 22).

O desenraizamento do homem na época atual e a sua dificuldade de lidar com a linearidade temporal, ou seja, com as três dimensões temporais: passado, presente e futuro, são idéias que também ficam bastante evidentes na seguinte fala do personagem viajante Ralfo:

Sou simplesmente um cara que atravessa uma ponte. E não quero ficar preso a nada, não quero possuir lembranças de quem e do que ficou para trás. Quem ficou, ficou, entenderam? E quem vai, vai. Não se deve perturbar uma travessia com lágrimas e memórias, remorsos (Sant’Anna, 1975: 161).

Há momentos em que os comentários de Ralfo provocam o riso diante da disparidade entre a sua imagem cômica e a pretensa seriedade de suas colocações ilógicas. Ao se deter no exame do corpo de uma secretária, no escritório, diz cinicamente: Mas não se trata daquilo que as mentes pornográficas possam estar pensando. Não se trata de erotismo vulgar e sim de tornar mais saudável, lúdica e eficiente uma jornada de trabalho (Sant’Anna, 1975: 92).

A canibalização, que Ralfo faz de personalidades díspares em suas metamorfoses, ao sabor de suas variadas aventuras, transforma-o numa colagem de clichês, de pastiches que se desmancham a cada passo. Esse polifonia de máscaras, que faz rir, é anunciada no Prólogo:

E percebendo-me demasiadamente crápula ou vil ou pequeno e medíocre, num capítulo, surgirei gracioso e esfuziante no capítulo seguinte, desfazendo a impressão anterior. E do mesmo modo, quando ceder à tentação da frescura sentimental — de uma simpática mistificação — tentarei de todos os modos rosnar e arregalar os dentes, como a fera que se esconde em todos nós (Sant’Anna, 1975: 2).

A vida é constituída, nesse caso, de breves segmentos de tempo. Ela é pluralidade, prazer, presente. Os liames com pessoas e lugares tendem a desaparecer. Restam apenas imagens que se imbricam com as de tantos filmes já vistos.

O resgate do passado ocorre através da memória do ver, tudo é fruto de um movimento óptico. Trata-se de um processo memorialista que se sujeita à lógica da cultura e da técnica contemporâneas, do qual estão ausentes recordações subjetivas, tipicamente afetivas/ saudosistas, comuns ao memorialismo tradicional, em que o eu da narrativa relembra e reconstitui a sua vida passada, lançando um olhar retrospectivo sobre as fases passadas de si mesmo. Isso significa, entretanto, que ele revive e atualiza as etapas de seu eu anterior como diversas da atual; ao passo que o sujeito, nas narrativas contemporâneas, vive, em geral, apenas um determinado aqui e agora de seu eu, experimenta a sensação de estar imerso num presente em permanente fluxo. Mas, embora tudo se lhe apresente em contínua rotação, sente sua vida cativa num eterno presente. Nesse caso, assiste-se a um esforço da escritura para sintonizar o tempo do texto com a velocidade que rege a movimentação diária na ambiência estetizada dos centros urbanos.

Na era da reprodutividade técnica, o excesso de informação sobre o presente com entorpecimento da consciência histórica esgarça o sujeito enquanto o desdobra. A memória, em sua forma clássica, encontra-se desestabilizada, porque praticamente não há o que reter, já que, no contexto atual, como diz Walter Benjamin, as ações da experiência estão em baixa (Benjamin, 1985: 198 ), pois a vivência direta das coisas é mínima. O declínio da memória revela a perda da subjetividade. Em Os arquivos imperfeitos, diz Fausto Colombo:

(...) parece perder relevância a capacidade pessoal de rememorização de fatos e eventos, além da própria idéia de história como fluxo dentro do qual estamos inseridos, substituída, esta última, pela percepção de uma profunda diástase entre a vida própria e o Acontecimento do mundo (Colombo, 1991: 118).

Em Sant’Anna e Noll, o espaço dessublimado da cidade-imagem é esquizofrenizante: a ambiência citadina não cessa de esvair-se e o eu vive a experiência da fragmentação num tempo indiferenciado. Fredric Jameson, ao discutir a questão da temporalidade no ensaio “Pós-modernismo e sociedade de consumo” aborda o tema da esquizofrenia a partir do modelo lacaniano, segundo o qual o distúrbio esquizofrênico se caracteriza basicamente pela “desordem de linguagem”. Jameson esclarece em sua exposição:

Para Lacan, a experiência da temporalidade, da temporalidade humana (passado, presente e memória), a persistência da identidade pessoal através de meses e anos — a própria sensação vivida e existencial do tempo — são também um efeito de linguagem. Porque a linguagem possui um passado e um futuro, porque a frase se instala no tempo, é que nós podemos adquirir aquilo que nos dá a impressão de uma experiência vivida e concreta do tempo (Jameson, 1985: 22).

Logo, a mentalidade esquizofrênica reduz a experiência a uma série de presentes puros não relacionados no tempo (Jameson, 1985: 22) e, em conseqüência, a experiência do presente se torna poderosa e arrasadoramente vívida e material (Jameson, 1985: 23).

O tratamento dado ao tempo na obra dos escritores selecionados vincula-se à dimensão esquizofrênica da pós-modernidade, que Jameson caracteriza no ensaio citado. No universo romanesco, a temporalidade é fragmentada. A narrativa, operando o colapso da continuidade, não apresenta apenas uma linha de sucessão de acontecimentos, mas muitas linhas coexistindo potencialmente. O tempo, em constante estado de montagem e fluidez, é só presente para os personagens, é um agora provisório e prestes a envelhecer.

O colapso da temporalidade promove o apagamento do sentido da história. O sujeito, nesse caso, não se distancia do mundo exterior nem tampouco mergulha na interioridade em busca de reconstituir um senso de identidade pessoal. Tal procedimento não se dá, precisamente porque o sujeito, nessas narrativas, não é senão um feixe de presentes, uma coleção de percepções e estilhaços de memórias, sem unidade e continuidade. Personagens e narradores estão irremediavelmente no mundo: por um lado, sujeitos a um vertiginoso processo de informações e imagens, por outro, arrastados pelo turbilhão dos acontecimentos de natureza situacional e ocasional que avança inexoravelmente sobre eles, atropelando-os e desagregando-lhe a memória.

 

Referências bibliográficas

COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos. São Paulo: Perspectiva, 1991.

HAAG, Ernest Van Den. Da felicidade e do desespero não temos medida. In: ROSENBERG, Bernard [et alii]. Cultura de massa. São Paulo: Cultrix, 1957.

JAMESON, Fredric. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios de Fredric Jameson . Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.

LASCH, Christopher. O mínimo eu. São Paulo: Brasiliense, 1990.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 1990.

MORICONI Jr., Italo. Um filho esperto do “boom”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 de março de 1989. Caderno Idéias, p. 10.

NOLL, João Gilberto. Hotel Atlântico. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

––––––. Rastros do verão. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.

SANT’ANNA, Sérgio. A tragédia brasileira. Romance-teatro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

––––––. Confissões de Ralfo (Uma autobiografia imaginária). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

––––––. Contos e novelas reunidos. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

––––––. O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro: São Paulo: Ática, 1982.

––––––. Simulacros. Rio de Janeiro: Bertrand, 1992.

––––––. Um romance de geração (Comédia dramática em um ato). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

SANTIAGO, Silviano. A gargalhada imprevista diante da morte. Jornal da Tarde, 8 de abril de 1989.